quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Vita Christi – Circuncisão de Nosso Senhor Jesus Cristo – Ludolfo da Saxônia, O.Cart.

 


Oito dias após o nascimento do Salvador, a criança foi circuncidada de acordo com o preceito da Lei, e como foi durante esta cerimônia que o nome da criança foi imposto, o Senhor foi chamado Jesus, ou seja, Salvador. Este nome tinha sido indicado pelo anjo antes do Verbo ter sido concebido no ventre da Virgem pela operação do Espírito Santo. O ritual da circuncisão começou com o bem-aventurado patriarca Abraão, quando esta pessoa santa recebeu o complemento do seu nome. Com o selo da circuncisão mereceu uma elevação e mudança de nome, de modo que aquele que antes se chamava Abrão (pai elevado), passou a ser chamado, pelo mérito da sua fé, Abraão, que significa pai de muitas nações. Depois a venerável esposa de Abraão também recebeu um aumento no nome. Ela chamava-se Sarai, isto é, a minha princesa (a princesa da sua família); doravante chamava-se Sara, isto é, a princesa de todas as mulheres que têm verdadeira fé. Daí surgiu o costume de dar nomes às crianças quando eram circuncidadas, e isto também foi feito para Jesus Cristo. Ao receber a circuncisão, Jesus começa por praticar a humildade, que é a raiz e guardiã de todas as outras virtudes. Ele é circuncidado para que não demore a derramar o seu sangue por nós, para provar que é o verdadeiro Salvador, anunciado aos Patriarcas por tantas profecias e figuras, semelhantes a eles em tudo exceto na ignorância e no pecado. Duas grandes coisas são feitas neste dia. Primeiro, o nome de Jesus é manifestado ao mundo, um nome decretado desde toda a eternidade, pronunciado pelo anjo perante a Santíssima Virgem concebeu o seu Filho divino; pois o anjo Gabriel, enviado a Maria, disse-lhe: “conceberás no teu ventre e darás à luz um filho, a quem darás o nome de Jesus, no momento da sua circuncisão, porque este nome lhe é dado desde toda a eternidade nos desígnios do seu Pai”. É por isso que Isaías disse: “Serás chamado por um novo nome que a boca do Senhor falou”.

         Segundo Orígenes, o nome de Jesus é doce e glorioso e digno de toda nossa adoração. Não era apropriado que este nome, que está acima de qualquer nome, fosse pronunciado e trazido ao mundo primeiro pelos homens; tinha de vir primeiro de uma natureza mais excelente. Em primeiro lugar, este nome é como que inato à Pessoa encarnada do Verbo, uma vez que a sua missão é salvar. Embora este nome tenha sido dado a outros homens que tinham trazido a salvação do seu país nesta ou naquela circunstância antes da Encarnação, no entanto é novo para Cristo, no sentido de que só Cristo realiza tudo o que este nome diz, uma vez que ele é o Salvador de todos; e esta propriedade pertence apenas a ele. Jesus, portanto, é chamado de Salvador, e a este respeito este nome cabe-lhe desde toda a eternidade; segundo, por causa da constante vontade e hábito de salvar; por esta razão o anjo impôs-lhe este nome, e este cabe-lhe desde o primeiro momento da sua concepção; terceiro, por causa do próprio ato da nossa redenção, e este nome, que lhe foi dado no momento da sua circuncisão, cabe-lhe acima de tudo por causa da sua paixão. Diz São Crisóstomo:

“Assim, o nome de Jesus, que lhe foi imposto desde o ventre da sua mãe, não é novo para Ele, mas antigo, pois Jesus é chamado Salvador segundo a carne, e Ele foi chamado Salvador segundo a divindade”.

         Consideremos, pois, a dignidade deste nome, ordenado e consagrado desde toda a eternidade, que saiu da boca do próprio Deus, desejado pelos Patriarcas, predito pelos Profetas, figurado por Josué (em Jesus Nave [↓1]), anunciado pelo anjo a Maria e José, publicado pela Santíssima Virgem, imposto hoje por José, difundido pelos Anjos, glorificado pelos Apóstolos, do qual tantos mártires deram testemunho, que tantos confessores glorificaram, que tantas virgens santas saborearam e que todos os fiéis veneram! Segundo Santo Agostinho, há uma diferença entre o nome de Jesus e o de Cristo. O nome de Jesus é um nome próprio; o nome de Cristo é um nome comum e misterioso. O nome de Cristo é um nome de graça, mas o nome de Jesus é um nome de glória. Assim, tal como depois de receber a graça do batismo de Cristo somos chamados cristãos, assim, tendo alcançado a pátria celestial de Jesus, seremos chamados jesuítas, ou seja, salvos pelo Salvador. Assim, existe uma diferença tão grande entre o nome de Cristo e o de Jesus, como entre a graça e a glória. Moralmente, de acordo com São Beda, como Cristo, na sua circuncisão corporal, recebe o nome de Jesus, assim os eleitos, na sua circuncisão espiritual, participam desse nome; e como os fiéis são chamados cristãos, pelo nome de Cristo, assim os santos serão chamados salvos pelo nome do Salvador. E este nome está predestinado para eles desde toda a eternidade nos desígnios do Criador, muito antes de terem entrado no seio da Igreja.

         O nome de Jesus está acima de qualquer nome, e não há outro nome no céu dado aos homens pelo qual tenhamos de ser salvos. Diz São Bernardo:

“Este nome é um mel na boca, uma melodia nos ouvidos, uma alegria no coração. Este nome, quando pregado, brilha como um farol; quando meditado, nutre; quando invocado, amolece e fortalece”.

Diz Pedro de Ravena:

“Este nome deu visão aos cegos, audição aos surdos, fala aos mudos, vida aos mortos; fez andar o coxo; a virtude deste nome expulsou o demônio dos corpos que atormentava”.

Diz Santo Anselmo:

“Jesus é um nome doce, um nome encantador, um nome que fortalece o pecador, um nome de esperança abençoada”.

Ó Jesus, sê Jesus por mim! O nome de Jesus tem uma virtude admirável, segundo as palavras do Apóstolo Sois lavado, santificado e justificado em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. O nome de Jesus tem a virtude de lavar a mancha do pecado; tem a virtude de santificar, limpando o pecado, e a virtude de justificar, perdoando a pena devida ao pecado. Agora, como em cada pecado há três coisas, a mancha, os pecados e o castigo devido ao pecado, estas três coisas são perdoadas, destruídas pelo nome de Jesus. É por isso que São João diz: “Os teus pecados são te perdoados por causa do seu nome”, “Com este nome todos os joelhos se dobram no céu, na terra e no inferno”. Quem invocar este nome será salvo. O próprio Senhor disse do seu nome: “Tudo o que pedirdes ao meu Pai em meu nome, Ele vos dará”. Devemos, portanto, usar este nome em todas as nossas orações, dirigir todas as nossas súplicas em nome de Cristo, e é por isso que a Igreja termina todas as suas orações com esta fórmula ou outra semelhante: “Por Cristo, Nosso Senhor”. Aquele que pede algo contrário à vontade divina, à sua própria salvação ou à do seu próximo, não pede em nome de Jesus; é mesmo evidente que pede contra este santo nome. Jesus é, portanto, devida e verdadeiramente chamado Jesus (Salvador), porque só podemos obter a salvação em seu nome; é por isso que ele diz de si mesmo: “Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim”. Assim, tal como todas as coisas foram feitas pelo Verbo eterno, também todas as coisas são feitas reparadas, elevadas e finalizadas pelo Verbo unido à carne.

         E este é o segundo mistério realizado neste dia: Jesus começou a derramar o seu sangue sagrado por nós, uma vez que a sua carne foi cortada com a faca da circuncisão. Jesus Cristo começou cedo a sofrer por nós, e aquele que nunca cometeu pecado começa agora a suportar a pena do pecado. Não foi apenas como homem adulto, mas desde a sua infância, que o Senhor quis derramar o seu sangue por nós. Assim, o menino Jesus chorou hoje; chorou por causa da dor que sentiu na sua carne, pois tinha carne verdadeira, carne que era real como outros homens. Mas quando o viu a chorar, acha que a mãe dele conseguia conter as lágrimas? Então ela própria chorou. Partilhemos a sua dor e choremos com Aquele que hoje chorou amargamente. Devemos regozijar-nos com estas solenidades por causa da nossa salvação, que o Senhor sempre teve em vista; mas devemos também lamentar e simpatizar com a angústia que Ele suportou por nós. Suportemos também as provações pelos nossos próprios pecados que estão na ordem da Providência, quando vemos o nosso Salvador sofrer tanto pelos pecados dos outros. Diz São Bernardo:

“Quem não enrubesceria ao evitar o menor castigo pelos seus próprios defeitos, quando sabe que Cristo sofreu, não pelos seus próprios defeitos, mas pelos defeitos dos outros, torturas tão horríveis?”

         É de notar que Jesus derramou o seu sangue por nós seis vezes diferentes. Primeiro, na sua circuncisão (e este foi o início da nossa redenção); segundo, na sua agonia (onde mostrou o desejo extremo que tinha pela nossa salvação); terceiro, na flagelação; quarto, quando foi coroado com espinhos; quinto, na crucificação (eis o preço da nossa redenção, pois Jesus pagou uma dívida que não tinha contraído); sexto, quando o seu lado foi aberto (eis o sinal e o sacramento da nossa redenção). Pois devemos ser purificados pela água do batismo, que é tornada eficaz pelo sangue de Cristo. Seis lições emergem para nós destas seis circunstâncias: devemos ser espiritualmente circuncidados e banir o pecado das nossas almas; devemos sofrer para trabalhar a nossa salvação; devemos domar a nossa carne; devemos adornar as nossas almas com todas as virtudes; os nossos membros devem ser escravos dos mandamentos do Senhor para os cumprir; finalmente, devemos ter um coração ferido pelo amor de Deus.

         Vedes quantas vezes Cristo derramou o seu sangue pela nossa redenção. Onde estão agora as suas lágrimas, os seus gemidos, a sua ação de graças por tanto derramamento de sangue? Vinde, adoremos, prostremo-nos perante Ele, choremos perante o Senhor que nos fez e nos redimiu tão generosamente, pois, como diz São Bernardo:

“Embora uma única gota deste sangue preciosíssimo foi o suficiente para redimir todo o universo, Cristo quis derramá-lo em abundância, para nos mostrar o seu amor e excitar a nossa gratidão; n'Ele a redenção é abundante”.

         Como já dissemos, a instituição da circuncisão remonta a Abraão. Foi o primeiro a confessar a sua fé num só Deus, e recebeu a circuncisão, que foi doravante o sinal que distinguiu os fiéis dos infiéis. Abraão acreditou antes da circuncisão que teria um filho, segundo a promessa do Senhor, e como sinal da sua fé recebeu a circuncisão, para que entendesse que a sua fé o tinha justificado. A circuncisão foi, portanto, dada primeiramente a Abraão como recompensa pela sua fé, e para que este patriarca, que diferia das outras nações na sua fé, pudesse diferir delas também pelo sinal da circuncisão; para que o povo que deveria nascer da sua estirpe pudesse ser reconhecido como o povo de Deus, pelo sinal particular da circuncisão, distinguido de todas as outras nações, e considerado como os descendentes legítimos daquele que tinha recebido a circuncisão como recompensa pela sua fé. Se algum homem circuncidado era morto em batalha, era facilmente distinguido dos gentios, e sabia-se que era descendente de uma raça santa, e que lhe era dado enterro. No deserto, onde os descendentes de Abraão viviam sem se misturarem com os gentios, a circuncisão não era praticada.

         A circuncisão também foi dada como remédio para o pecado original e para reprimir a concupiscência da carne. Era uma preparação para a graça da fé, pois a circuncisão era uma certa profissão da lei de Moisés que se desejava observar, pois o batismo é a profissão da lei evangélica; e a circuncisão era uma preparação para a recepção da lei da graça. A circuncisão era, portanto, o mandamento da velha Lei, o sinal do Cristo prometido, e tinha de ser observada até ao nascimento daquele que tinha sido prometido a Abraão. Então, quando a promessa foi cumprida, este mandamento teve de cessar. A circuncisão foi realizada com facas de pedra, porque Cristo é a verdadeira pedra de fundação.

         Cristo desejava ser circuncidado, como se tivesse sido obrigado a observar esta lei, por várias razões. Primeiro, para mostrar que Ele era da raça de Abraão, que recebeu primeiro o comando da circuncisão, e a quem foi prometido o Cristo que viria. Em segundo lugar, ser como os seus pais, para satisfazer os judeus, para lhes retirar todo o escândalo e todo o pretexto para não acreditarem n’Ele e para não o receberem. Em terceiro lugar, aprovar a Lei antiga e a circuncisão que Deus tinha estabelecido, para mostrar que ela era santa, justa e boa. Em quarto lugar, para nos dar um exemplo notável das virtudes da obediência e da humildade, mantendo uma lei que não o obrigava. Em quinto lugar, para cumprir o mandamento que Ele tinha dado aos outros, e não para depreciar o remédio pelo qual a criatura devia ser purificada do pecado, Aquele que tinha vindo, não na carne do pecado, mas na semelhança da carne do pecado. Sexto, libertar outros do fardo da lei que não podiam suportar, colocando-se sob o jugo da lei; pois está escrito, “Ele estava sob a lei para libertar aqueles que estavam sob a lei”. Sétimo, para que possa derramar o seu sangue por nós desde a sua juventude mais precoce, e começar a sofrer cedo. Oitavo, que Ele poderia provar que tinha verdadeira carne humana, e que Ele poderia confundir os hereges que afirmavam que Ele tinha apenas um corpo fantástico. Nono, a fim de recomendar, pelo próprio ato da circuncisão, a castidade e de reprovar a concupiscência da carne. Décimo, pôr fim à circuncisão da carne, e começar a circuncisão espiritual, da qual o primeiro foi apenas uma figura, para nos provar que devemos ser espiritualmente circuncidados; pois, como diz o apóstolo, “Cristo é o fim da lei em justiça para todo aquele que acredita”. Hoje, portanto, a circuncisão cessa, e temos no seu lugar o batismo, que confere uma graça maior e é menos doloroso; pois, a graça do batismo que ocorre, tornou vã a cerimônia da circuncisão; de modo que as flores caem e o fruto nasce e amadurece.

         Segundo São Gregório, o que a água do batismo faz em nós hoje foi produzido em tempos passados em crianças pela fé dos seus pais, nos grandes pela virtude do sacrifício, e naqueles que eram da raça de Abraão pelo mistério da circuncisão. Mas, de acordo com a observação de São Beda, se a circuncisão forneceu um remédio para a ferida do pecado original, como o batismo fez neste tempo de graça, há esta imensa diferença de que a circuncisão não abriu a porta do céu, que o batismo abre hoje. O batismo não teria por si só esta virtude sem o mérito da paixão do Salvador, e a circuncisão, com este mesmo mérito, teria tido o mesmo poder que o batismo.

         A circuncisão foi praticada na parte do corpo onde predominou a concupiscência, e através da qual o pecado original foi propagado, pois o remédio deve ser aplicado onde o mal está.

         A circuncisão da carne figura a circuncisão do espírito, pela qual a nossa alma é purificada do pecado, e assim devemos ter a circuncisão espiritual em todas as coisas, tanto dentro como fora, numa palavra, ser inteiramente separados de todos os vícios, pois Cristo foi circuncidado hoje para ensinar aos homens que devem afastar de si mesmos todas as superfluidades das paixões e do pecado. De acordo com São Bernardo, devemos ter uma dupla circuncisão, uma circuncisão interior e uma circuncisão exterior. A circuncisão externa consiste na decência das nossas roupas, na retidão das nossas ações, na temperança da nossa língua. A circuncisão interior também consiste em três coisas: que os nossos pensamentos sejam santos, os nossos afetos puros, e a nossa intenção correta. Devemos, portanto, ser circuncidados nos nossos corações, ou seja, devemos estar longe de todos os pensamentos pecaminosos e impuros, de julgamentos falsos e precipitados, de intenções e desejos injustos, e devemos ter medo de pensar perante Deus o que teríamos vergonha de dizer ou fazer perante os homens, pois os pensamentos estão perante Deus, assim como as palavras e ações estão perante os homens. Devemos também ser circuncidados da língua, ou seja, devemos abster-nos de todas as palavras vergonhosas, caluniosas, mentirosas, ociosas e supérfluas, pois no dia do julgamento daremos conta de uma palavra ociosa, mesmo que falada na ignorância, como do pensamento mais leve. Devemos também ser circuncidados em todos os nossos sentidos e em todos os membros do nosso corpo, ou seja, devemos evitar todas as ações ilícitas, todos os prazeres proibidos, todas as diversões inúteis, e não apenas o pecado, mas as ocasiões de pecado, pois aquele que não evita as ocasiões de pecado, peca por esse mesmo fato, e acaba por cair no pecado. É esta circuncisão que remove todos os vícios, que apaga todos os pecados. A circuncisão foi corretamente realizada no oitavo dia, porque é neste dia que a ressurreição final terá lugar, quando o homem circuncidado em todos os seus membros, purificado de todas as suas paixões e defeitos, lavado das suas menos manchas e inteiramente renovado, se erguerá para a imortalidade. O oitavo dia tornou-se assim o primeiro, porque foi neste dia que o mundo começou a existir, foi neste dia que Jesus Cristo ressuscitou, e é neste dia que a ressurreição universal terá lugar. Há portanto seis épocas na nossa vida durante as quais devemos trabalhar para o Senhor, e a fim de obter o descanso eterno. Na sétima época dormimos no túmulo até ao tempo da ressurreição de todos os homens; a oitava época é o dia da própria ressurreição, desta ressurreição, desta vida abençoada que não terá fim. Então não só os santos serão circuncidados, limpos de todos os pecados e vícios, mas também puros e imaculados, receberão um nome e uma herança eterna. Ele é, portanto, verdadeiramente circuncidado, ou seja, circuncidado interna e externamente, que evita todo o pensamento, palavra e ação maléficos. Faz pouco bem a um homem ser circuncidado apenas em parte, pois, como diz o Papa Pio:

“De nada serve jejuar, rezar e realizar outros atos de religião, se não guardarmos a mente da iniquidade e a sua língua da calúnia.”.

São Beda, explicando o segundo capítulo do Evangelho segundo São Lucas, diz:

“Quando alguém ouvir falar de circuncisão, que tenha cuidado ao pensar que basta ter um membro circuncidado, abster-se, por exemplo, de fornicação, respeitar a santidade do casamento, ou manter a castidade, sem praticar as outras virtudes. Temos de circuncidar todos os nossos sentidos, tanto internos como externos. Então, é verdadeiramente circuncidado aquele que fecha os seus ouvidos a palavras maléficas, recusa-se a ver o mal, evita pecar com palavras, vigia o seu coração para que este não se torne pesado em embriaguez e libertinagem, evita toda a sociedade maléfica, afasta os seus passos de todos os maus caminhos, castiga o seu corpo em todas as coisas, e leva-o à escravidão; deve também rodear o seu coração de fiel guarda, pois do coração vem a vida. Uma boa ação feita em segredo não precisa de menos circuncisão; por isso, quando jejuo, rezo, e dou esmolas, tenho de evitar o amor-próprio. Por conseguinte, o Apóstolo apela à circuncisão oculta do coração, que recebe a sua recompensa não dos homens mas de Deus. Devemos, portanto, evitar todo o pecado, seja interno ou externo, e ser espiritualmente circuncidados em todos os nossos sentidos”.

         Sempre que o homem regressa do pecado ao arrependimento, à penitência, ele é circuncidado. Oito iluminações espirituais da graça divina precedem esta circuncisão, depois esta circuncisão é operada na alma. Estas oito iluminações espirituais foram representadas pelos oito dias que precederam a circuncisão do primogênito. Primeiro o pecador volta-se para Deus; depois reconhece o seu pecado, arrepende-se dele, confessa-o, entra no caminho de satisfação; odeia as suas faltas, forma um ato de boa vontade; finalmente, no oitavo lugar, é justificado pela infusão da graça, o pecado é apagado, e assim, no oitavo dia, ou na oitava iluminação da graça divina, a circuncisão é forjada na alma do pecador arrependido, no momento da justificação. Esta circuncisão nada mais é que a amputação dos vícios, com a faca da penitência. Como a circuncisão do corpo consistiu em cortar uma parte supérflua da carne, a circuncisão do espírito consiste em cortar as paixões e pecados, que são as únicas coisas supérfluas em nós, pois todas as coisas que Deus criou no homem são muito boas. E se esta circuncisão não for feita na alma, a alma é uma filha da perdição, pois está escrita: “O menino que não for circuncidada será excluída do meu povo”. Os oito dias que precederam a circuncisão podem também representar os sete dons do Espírito Santo, as sete virtudes principais com a perseverança final, representadas pelo oitavo dia. E como os pecados só podem ser apagados através de Cristo, pois Ele é o Cordeiro de Deus sem mancha que tira os pecados do mundo, a circuncisão foi feita com facas de pedra, como já dissemos, porque Cristo é a pedra fundamental. A circuncisão dos judeus era, portanto, uma figura; em qualquer outro caso, nada ganharíamos em meditar sobre ela, e Cristo foi circuncidado para chamar a nossa atenção para o significado da circuncisão. Pois como Ele nasceu, foi batizado, e sofreu por nós e não por Ele próprio, assim Ele foi circuncidado por nós. Esforcemo-nos, pois, por possuir esta primeira circuncisão espiritual, representada pela circuncisão corporal, a fim de obter aquela outra circuncisão espiritual que terá lugar em nós no oitavo dia, na oitava época, no momento da ressurreição, e que será eternamente isenta de qualquer castigo, de qualquer culpa, de qualquer corrupção. Existem, portanto, na realidade três circuncisões: a primeira foi sacramental, aquela que foi feita ao corpo; as outras duas são a realização da figura; é a circuncisão do pecado que é feita todos os dias na alma, e a circuncisão do pecado e de todo o castigo devido ao pecado que terá lugar tanto na alma como no corpo, no momento da ressurreição geral.

 

 

 Notas:

[↑1] N.T.: Nos Santos Padres o livro de Josué era denominado Jesus Nave, nome que surgiu no tempo de Orígenes ao traduzir do hebraico “filho de Num” para υιός Ναυή. A partir do termo Nave, os Santos Padres interpretavam como a palavra navio, ou seja, Josué seria uma figura de Jesus como um navio que salva o mundo (Catholic Encyclopedia).