terça-feira, 27 de setembro de 2022

Vida do Venerável Frei Tomás de Torquemada, O.P. – Rev. Pe. Fr. Paulino Alvarez, O.P. (1922)

“Martelo dos hereges,
Luz de Espanha,
Salvador de sua pátria,
 honra da sua ordem”
Sebastián de Olmedo
 
 
 Venerável Tomás de Torquemada
Primeiro Inquisidor-Geral da Espanha
Confessor e conselheiro dos Reis Católicos

 

O Padre Frei Tomás de Torquemada, Inquisidor-Geral, conhecido pelo título de prior de Santa Cruz de Segóvia, foi natural da vila de Torquemada na diocese de Palência, filho de pais nobres e ilibados, parente do Cardeal Frei João de Torquemada, ambos filhos do convento de São Paulo de Valladolid. Foi um homem muito religioso e de muito exemplo. Obteve formação na sagrada teologia e foi um homem muito douto e humilde, que não quis admitir o grau de mestre que sua província diversas vezes o ofereceu.

          No governo de Santa Cruz de Segóvia se deu muito a conhecer, fazendo o ofício de prior mui religiosamente e prudentemente, que foi reeleito muitas vezes, não havendo naqueles tempos lei que o proibisse. Vivia o servo de Deus atento somente ao governo de seus frades, quando a Sereníssima Rainha Católica Dona Isabel, de santa memória, o mandou vir à Corte e o fez seu confessor e um integrante de seu Conselho. Estava a rainha bem informada da grande prudência, integridade e santidade de Frei Tomás, porque uma dama do palácio – de quem Sua Alteza tinha muito crédito – havendo se confessado algumas vezes com o servo de Deus, fez descobrir à Sua Alteza os diversos dons do Prior. Passaram alguns dias para que o Rei Católico soubesse que podia confiar e esperar em Frei Tomás. A rainha prestava conta de tudo a seu marido, demonstrando a importância da presença e dos conselhos de Frei Tomás para que os negócios do reino fossem bem sucedidos e realizados com satisfação. Com isso, o Rei o fez seu confessor e, ao começar o ofício, teve uma esperança certa em sua pessoa.

          Exerceu seu ofício com grande autoridade e com tal liberdade, valor e coragem, que poderia cansar e desagradar aos príncipes menos católicos, porém era um singular consolo aos que eram verdadeiramente católicos e santos. Que embora dizer verdades não apraz todas as consciências, mas os que vivem com desejo de servir a Deus, de nenhuma coisa fazem mais caso. Porque sendo o desengano comum para todos os homens, para aqueles que são reis mais importam que menos vezes ouçam palavras de desengano.

          Exerceu o ofício com prazer e afeição e com isso entendeu que Suas Altezas muito se alegrariam se livremente dissesse o que sentia nos negócios que com ele se tratavam. Assim o fazia, dizia integralmente o que muitos confessores não diriam nem a um penitente comum. Assim, os Reis Católicos estavam dispostos a receber com humildade tudo o que Frei Tomás dizia santamente, dando seu parecer, ainda em coisa que puderam reparar muitos reis que tinham muitos gastos e viviam pobres. Contudo rompia o desejo de seguir o parecer do confessor, de quem se escreve que era com os Reis Católicos o que Santo Ambrósio, arcebispo de Milão, foi com ele imperador Teodósio; em que a determinação do santo e a sujeição dos reis são mais caras. Em certa ocasião, falando no Palácio com a Rainha e representando à Sua Alteza que era homem e que podia errar nas consultas, embora o seu zelo fosse bom, Sua Alteza respondeu: “Confessor, parece-me que estou somente com um anjo do céu ao estar convosco e que não errareis”. Palavras que dão a entender que os conselhos do Prior de Santa Cruz serviam como oráculos do céu. Tanta era a estima que havia ganhado o confessor com esses príncipes!

          Tratou o Pe. Fr. Alonso Ojeda, do convento de São Paulo de Sevilha, com os pontífices e os reis do perigo em que vivia o Reino de Espanha com os mouros e judeus, e Suas Altezas resolveram que em Espanha se instituísse o Santo Ofício da Inquisição. Após o estabelecimento do tribunal os ânimos na Espanha começaram a se acalmar, mas não de modo que fosse o suficiente para deter os males que estavam sendo descobertos e assim foi necessário dar mais fervor ao Santo Ofício do que tinha outrora. Houve a necessidade de buscar e nomear pessoas, que com zelo e virtude se opusesse a tão graves danos, um homem que intrépido na execução do trabalho e zeloso em honrar a Deus. Entenderam os príncipes que não havia em seus reinos outra pessoa mais apropriada que Frei Tomás de Torquemada, cuja virtudes, dons e valor tinha pela grande experiência. Assim, com esse crédito que sua pessoa havia, resolveram dar-lhe o ofício de Supremo e Geral Inquisidor em seus reinos. Foram do mesmo parecer os do Conselho de Estado, na qual se tratava que a causa da Fé devia-se encomendar ao zelo, letras e cuidados dos religiosos da Ordem de nosso Santo Pai Domingos.

          Quiseram os Reis Católicos consultar esta sua decisão com Sua Santidade o Papa Sisto IV, o qual vendo a justiça que era proposta, emitiu uma bula e deu o cargo principal da Inquisição ao Rev. Pe. Fr. Tomás de Torquemada, confessor dos Reis Católicos e Prior do Convento de Santa Cruz de Segóvia. Mandou o papa que houvesse inquisidores em todos os reinos do Rei e da Rainha, cujo cargo estivessem as causas da Fé.

          Deus viu a calamidade em que se encontrava estes reinos e os perigos que viriam pelo principiar de tal diversidade de heresias no Ocidente. Assim, devido aos presentes danos Sua Majestade deu o ofício de Inquisidor-Geral a Frei Tomás de Torquemada e, pelos perigos vindouros, estabeleceu-se o Santo Ofício com a autoridade que tem hoje. Foi Frei Tomás, senão o que mais, um dos que com mais zelo serviram sua nação e a Espanha não teve mais que obrigação com a Ordem de São Domingos ao tirar de seu claustro o Santo Inquisidor, algo que muito deve ser grato e, desta forma, deve-se honrar muito o Santo Tribunal da Inquisição por ter tido tal início.

          Este servo de Deus não mudou no seu proceder por causa do trabalho, dos cuidados e dos perigos que a administração do Santo Ofício traz consigo, sendo aborrecido pelas gentes perdidas aquele tem na mão a espada em defesa da fé. Ele havia amamentado (como dizem) nos seios de sua Ordem e herdado do bem-aventurado São Domingos, seu Pai, o seu santo zelo, com o qual superou todas as dificuldades que o novo cargo trouxe consigo. Deus lhe deu coragem e valor, com os quais, e com sua graça, ele suavizou coisas tão difíceis e as colocou no estado em que está agora o Supremo Tribunal da Inquisição, tão temido pelos maus e tão reverenciado por todos os bons.

          O primeiro documento para a introdução do Santo Ofício nos reinos e coroa de Aragão (como já tinha nos de Leão e Castela) foi despachado pelo Papa Sisto IV em Roma, em 16 de outubro de 1483, que era o terceiro ano de seu pontificado, dizendo assim: «Amado Filho: Saudação e Bênção Apostólica. Nossos caríssimos filhos em Cristo, o Rei e a Rainha de Castela, Leão e Aragão, que assim como está em Castela e Leão, tenha também Inquisidor da pravidade herética nos reinos de Aragão e Valência e no Principado da Catalunha. Nós, que muito confiamos na vossa circunspecção, probidade e integridade, para cumprir os desejos dos ditos Príncipes e os deveres do Nosso Pastoral ofício, nós vos delegamos, constituímos e ordenamos Inquisidor da pravidade herética nos ditos reinos de Aragão e Valência e no Principado da Catalunha. E porque não ignoramos os muitos negócios em que estarás ocupado, pelo teor dos presentes, concedemos-te que possas exercer o cargo por homens idôneos, sábios Mestres em Teologia, que desejas escolher para isso, e nós vos exortamos no Senhor e estritamente ordenamos que, tendo sempre em mente Deus, trabalheis e façam com que trabalhem com tanto cuidado e diligência, quanto a excelência, grandeza e importância do cargo exigem”.

          Um outro breve do mesmo Papa, datado em 10 de junho de 1484, no qual ele expressa a opinião que tinha dele e qual era o valor de sua autoridade, e o que ele podia com os reis, e a coragem com o qual dizia a Suas Altezas seu parecer. Que em certas divergências e encontros que a Câmara Apostólica teve com os Reis, o Papa, por meio de sua bula, agradece muito ao Inquisidor por assumir a causa da Câmara Apostólica e a sua intercessão com os Reis Católicos, entendendo que a virtude e as letras do confessor mantinham o negócio em ótimo estado, ordenando-lhe que continuasse sempre o ofício que o Senhor se serviria.

          Em outro breve do mesmo Pontífice e do mesmo ano, no qual se diz que o Pontífice mantinha uma relação com o Vice-Chanceler Dom Rodrigo de Borja, Cardeal e Bispo de Portuense, da diligência e cuidado com que Frei Tomás desempenhou o cargo de Inquisidor-Geral nos reinos de Castela e Leão, pelo qual o Papa agradece, e ordena que continue o referido cargo, para o qual Deus escolheu um homem de letras e autoridade; que necessitava de tal negócio que é direcionado à honra de Deus e ao aumento da Fé. Representai-lhe o quanto a Santa Sé Apostólica será sempre consolada ao ouvir estas notícias, e que procurará agradecer-lhes, já que os seus serviços são tão aceitos ​​pelo Romano Pontífice.

          Do Papa Inocêncio VIII há alguns outros breves, na qual deixaremos de citar, porque os anteriores bastam para compreender o crédito e a opinião que tinha junto dos Sumos Pontífices.

          A autoridade com que o Santo Inquisidor iniciou o ofício é vista por uma provisão que os Reis Católicos despacharam na cidade de Granada em 4 de janeiro de 1492, e pelo poder que lhe deram de alienar e vender tudo o que foi confiscado, para despesas da Santa Inquisição e coisas relacionadas com o serviço real, para ajudar as despesas e os salários dos inquisidores e seus ministros e outras despesas extraordinárias.

          Frei Tomás de Torquemada, como verdadeiro filho de Santo Domingo, e seguindo seus exemplos, desprezando todas as coisas temporais, conservou-se na santa pobreza que havia professado. Os santos Reis Católicos ofereceram-lhe, entre muitas dignidades, o arquiepiscopado de Sevilha; porque eles conheciam suas muitas virtudes e queriam que as igrejas se provessem de pessoas dignas. Quando o nomearam para a igreja de Sevilha, deram-lhe a entender que lhe dariam a de Toledo (Primaz da Espanha) quando esta ficasse vacante. Coisas tão grandes e que traziam consigo os desejos e pensamentos de muitos, mas para o servo de Deus, que tinha o hábito dominicano que usava como a maior honra, nada do que lhe ofereciam o fazia mudar de ideia, nem de estilo e nem de nome, contentando-se ele mesmo como Prior de Santa Cruz. Com este sobrenome sua memória foi preservada em toda a cristandade até o presente e será preservada para sempre.

          Pudera com os confiscos e bens dos hereges, que seriam inumeráveis, tornar-se muito rico e tentar enriquecer os seus parentes, e não o fez, só recebeu o que os Reis lhe deram para os conventos da sua Ordem, assim como em Ávila, Segóvia e Granada. Em sua pessoa conservou a pobreza em que sua Ordem o havia criado. Não se tratava com grandeza, mas no meio de tantos negócios e cuidados era mais frade do que muitos frades. E embora pudesse deixar grandes heranças e rendimentos aos conventos que reconstruiu e construiu, não o fez, por considerar correto deixá-los mais necessitados do que excedentes.

          A velhice o sobreveio rapidamente, e isso se deu mais pelo trabalho e a diligência para com ofício do que o passar dos anos. A gota pesou-lhe muito e atacou-o tanto, que lhe tirou as forças de tal maneira que não podia usar-se nos exercícios do seu ofício com a pontualidade e diligência que eram necessários. Tratou de renunciar e tentou fazer com que os Reis o fizessem Arcebispo de Sevilha Dom Frei Diego de Deza, filho do convento de São Ildefonso de Toledo, frade de sua Ordem, para que o Santo Ofício da Inquisição continuasse com ele. E com isso, dois anos antes de morrer, retirou-se para o convento de Santo Tomás de Ávila, onde viveu com muita humildade, com muita paciência e sofrendo na dor da gota que muito o afligia.

          Mas, embora tivesse renunciado ao ofício e se retirado para sua casa onde vivia com grande clausura, onde somente estava atento aos negócios de sua alma, referindo-se a forças maiores as que por tanto tempo haviam passado por suas mãos, com tudo isso a privacidade com os Reis foi a de sempre. O carinho que tinha por eles era tal que, em meio às suas doenças e enfermidades, vivia com grande desejo de que tivessem sucesso em seu governo, como fora zeloso ao bem público, sempre buscou o bem comum. Com este zelo, estando os Reis no convento de Santo Tomás de Ávila, advertiu-os de coisas sérias e muito urgentes, que importavam muito ao governo dos seus reinos. Certa vez se queixou de que os Reis que passavam por Ávila, porque estavam com pressa, não o viram nem entraram na cidade, que enviou as suas queixas à Rainha por meio de um amigo de Sua Alteza. No regresso alojaram-se em Santo Tomás no seu quarto real e ambos, Rei e Rainha, vieram à sua cela com o qual se produziu um grande efeito, que por justas razões não se refere a história.

          Aproximava-se a partida deste bem-aventurado Padre, apertando-lhe a sua longa e dolorosa doença, e assim, recebendo com grande devoção os Santíssimos Sacramentos, dois dias depois da Exaltação da Santa Cruz, a 16 de Setembro, dia da Santa Virgem Eufêmia, partiu deste mundo para o céu. Sua morte foi no ano de 1498. Foi sepultado no Capítulo do convento, onde também trouxeram os corpos de seus pais. Há um retrato muito natural do santo Inquisidor no referido convento. Ele tinha um rosto moreno e corado que declara o valor de sua pessoa, mas seu semblante é devoto e humilde.

          No martirológio do convento de São Ildefonso de Toro, o santo Inquisidor é lembrado com estas palavras:

“No 16 das calendas de outubro do ano de 1498 faleceu o Reverendo em Cristo, Padre e homem de feliz memória Frei Tomás de Torquemada, Prior de Santa Cruz, Inquisidor Geral da Pravidade Herética, Conselheiro e Confessor das Majestades Reais. Este Reverendo Padre levantou o nosso convento de Santo Tomás de Ávila desde as suas fundações e reconstruiu completamente o convento de Segóvia, no qual foi prelado durante vinte e dois anos contínuos, de onde veio o renome de Prior de Santa Cruz. Na eleição de Alexandre VI, ele fez com que muitos cardeais o aclamassem como Pontífice. Ele queimou mais de seis mil hereges e reconciliou mais de cem mil deles. Ele foi um homem na defesa da fé claríssima, na vida e nas virtudes adornadíssimos, esclarecido, segundo se afirma, nos milagres, notadamente em exalar um odor maravilhoso. Honra dos Pregadores. Encontra-se em uma sepultura humilde no meio do Capítulo de Ávila”.

          Nesta memória do servo de Deus que se encontra neste calendário, e provável que está em muitos outros, vê-se a opinião que o bem-aventurado Padre teve na Ordem, a parte que teve na eleição do Sumo Pontífice à cátedra de São Pedro, o Papa Alexandre VI, o rigor e o zelo com que se realizou a execução do Santo Ofício da Inquisição, cujos milagres se falavam na Província, dando-lhe o nome de claríssimo devido o zelo que tinha pela conservação das coisas da fé. Ele era um homem muito religioso e observante que na morte não quis maior grandeza do que teve em vida, contentando-se em ser enterrado como os outros religiosos sob uma pedra de granito, embora depois os frades tenham colocado sob um túmulo de alabastro.

          Ele sempre foi considerado um santo, para confirmar o ocorrido, que sendo Provincial da Província da Espanha, o Pe. Fr. Esteban Coello, filho do convento de São Paulo de Valladolid, em certa ocasião foi aberto o túmulo, estando presente todo o convento e muitos dos Cavaleiros da cidade de Ávila. Quando a pedra foi removida, havia tanta fragrância por todo o Capítulo, que os presentes ficaram maravilhados e um deles, que se chamava Juan Fernández, cônego da santa igreja de Salamanca, exclamou: “Verdadeiramente este homem era santíssimo. Embora a pedra do seu túmulo seja igual às outras, prometo colocar adornos de ouro que autoriza e diferencia o túmulo deste santo”. A fragrância durou muitos dias no Capítulo mesmo com túmulo fechado com sua pedra.

          Vindo depois para visitar o convento de Santo Tomás, o Padre Frei Domingo de Ulloa, no mês de junho, notou muito que o reverendíssimo Frei Tomás de Torquemada não estava sepultado com a decência e autoridade que a pessoa de um homem tão qualificado e tão santo e que tinha uma fama tão grande em toda a Espanha exigia; e assim mandou preparar uma peça que responda ao referido Capítulo. Abriram-se duas janelas muito grandes, ergueram-se dois vitrais, e tudo foi disposto e arranjado de tal forma que se fez uma honrosa capela. Ordenou que se construísse um túmulo de pedra lavrada de meio metro de altura, para onde foi transladado o corpo do bem-aventurado Padre. E assim, segunda-feira depois da festa do Santíssimo Sacramento do ano de 1579, o Vigário Geral ordenou que não fossem demolidos os claustros e os altares que o convento havia feito para a festa que a Ordem celebra no domingo das oitavas de Corpus Christi até que seja feita a trasladação dos santos ossos. Isso foi na segunda-feira entre quatro e cinco da tarde e uma procissão soleníssima foi feita entre dois claustros, o “Real” e o que chamavam de “silêncio”, carregando nele com grande autoridade e grandeza o corpo do Reverendíssimo Frei Tomás de Torquemada. Toda a cidade de Ávila assistiu a esta procissão, Autoridades, Cónegos, Cavaleiros, Senhores e muitos outros, divulgando aos presentes a santidade do Bem-aventurado Padre, conformando este testemunho com o cheiro muito doce e fragrância que saía dos ossos, que era sentida sempre que a sepultura era aberta.

[N.T. As relíquias desse Santo Frade foram roubadas de sua sepultura em 1832 pelos inimigos da Santa Religião e, pelo ódio satânico, destruíram as relíquias incinerando os santos ossos.]

 

ALVAREZ, P. Santos, Bienaventurados, Venerables da la Orden de los Predicadores. Vol. 3. Bergara: El Santisimo Rosario, 1922.