domingo, 25 de junho de 2023

Vita Christi – IV Domingo depois de Pentecostes – Ludolfo da Saxônia, O.Cart.

 


Assim, o divino Salvador partiu da Judeia para a Galileia. O esplendor da sua pregação e as notícias dos milagres que ali tinha realizado atraíram para si uma imensa multidão que seguia avidamente os seus passos para ouvir a palavra de Deus, a ponto de quase o sufocar. Quando chegou ao lago de Genesaré, que também se chama mar da Galileia, já não conseguia aguentar a multidão que o rodeava. Então viu dois barcos no lago, um de Simão e do seu irmão André, e outro de Tiago e João. Os pecadores tinham ido a terra para lavar e limpar as redes, a fim de as recolhe-las, porque, depois de terem trabalhado toda a noite, não tinham apanhado nada. Jesus entrou no barco de Simão e pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra, para poder falar à multidão e ser ouvido, sem ser incomodado. Sentado na barca e revestido de toda a autoridade de um doutor, dá instruções às pessoas que ficaram em terra. Admiramos aqui a doçura e a humildade do nosso divino Salvador; podia ter mandado, pois era o Mestre soberano, mas contentou-se em rezar, dando assim o exemplo aos prelados que devem conduzir com doçura os que lhes são confiados, e procurar ser amados em vez de temidos; pois, como diz Sêneca, a alma nobre deixa-se conduzir, mas não quer ser arrastada. Por outro lado, como diz o profeta Ezequiel, os arrogantes e orgulhosos comandam com império e dureza.

Num sentido místico, o lago de Genesaré representa a antiga lei, fora da qual Jesus Cristo se encontrava, pois as suas prescrições legais já começavam a ser abolidas para dar lugar à nova lei que Ele veio dar ao mundo. Os dois barcos representam os dois povos, os judeus e os gentios, que Jesus viu de longe e entre os quais chamou muitos à luz da fé cristã. Os pescadores são os pregadores e os mestres da Igreja que, envolvendo-nos nas redes da sua pregação e da sua fé, nos atraem para a margem da terra dos vivos, isto é, para a salvação. Como os pescadores que descem dos seus barcos para limpar as redes, eles devem, de vez em quando, deixar as suas ocupações sérias para meditar na sua própria fraqueza e lavar nas águas do arrependimento as manchas que possam ter contraído no exercício dos seus santos deveres; porque muitas vezes o desejo de ganhos temporais, os elogios lisonjeiros e a vanglória desvanecem o brilho e alteram o mérito dos mais santos pregadores. Aquele que verdadeiramente lava as suas redes é aquele que sabe afastar de si todas as ambições terrenas, a complacência consigo mesmo e o desejo de brilhar aos olhos dos homens. A barca de Simão, na qual Jesus se sentou e a partir da qual instruiu o povo, representa a Igreja primitiva dos judeus, da qual São Pedro foi o primeiro pregador e com cuja autoridade continua a instruir os homens ao longo dos tempos. A outra barca significa a Igreja dos gentios, aos quais o apóstolo São Paulo foi enviado para os instruir, porque todos os predestinados à fé cristã e à vida bem-aventurada da eternidade não deviam ser escolhidos apenas entre o povo judeu, mas entre todos os povos. Jesus Cristo, instruindo o povo nesta barca a pouca distância da terra, quer mostrar-nos que devemos ensinar as coisas celestes, de tal modo que os homens ainda carnais possam compreendê-las e aderir a elas pela fé, e, sem usar uma linguagem demasiado humana, usar, todavia, a palavra divina com sobriedade para que, não afastando-nos demasiado das coisas ordinárias da vida e mergulhando nas santas profundezas da graça, sejamos compreendidos.

Podemos também outra interpretação desta passagem. Assim, o lago de Genesaré, que também chamado mar, refere-se ao mundo, que, como um mar, está inchado pelo orgulho pela soberba, borbulha pela avareza, espuma pela moleza. Para atravessar o para atravessar o mar deste mundo, Jesus Cristo viu, ou melhor, mostrou-nos, duas barcas. A primeira representa o caminho comum e ordinário dos mandamentos que todo o cristão é obrigado a observar. A segunda, que se diz pertencer a Simão, cujo nome significa obediente, mostra-nos a prática dos conselhos evangélicos e o estado dos religiosos, cujo voto principal é a obediência. Jesus desceu à barca, sentou-se nela, instruiu o povo dali, e quis que ela ficasse um pouco afastada do chão, para nos ensinar com esta imagem que Ele próprio, pela sua graça, desce ao coração dos religiosos que e amam os conselhos evangélicos; que habita nele pela contemplação; que o instrui pela abundância dos dons do Espírito Santo que lhe são comunicados; e ao mesmo tempo que pede que aqueles que estão na Religião se afaste dos bens terrenos pelo menos no coração, se não inteiramente no corpo. De fato, os homens, mesmo os mais santos, são obrigados a permanecer ligados às coisas da terra, para poderem manter a vida do seu corpo. Mas, infelizmente, quantos não vemos hoje em dia que, ao entrar na Religião, não só não renunciam aos bens terrenos, mas parecem apegar-se a eles com mais ardor do que antes.

Estas duas barcas indicam também os dois caminhos que Jesus Cristo nos mostrou e que Ele próprio quis seguir: um é o caminho da inocência, o outro o caminho da penitência. Qualquer bem pode ser obtido de duas maneiras, ou por direito de herança ou por compra; da mesma forma, o céu pode ser obtido ou por inocência, isto é, por direito de herança, ou por compra, isto é, por penitência. Jesus Cristo quis chegar ao céu por estes dois meios: pela inocência, pois não cometeu nenhum pecado e nenhuma mentira contaminou os seus lábios; e pela penitência, que praticou até à morte. Assim, com a ajuda destes dois barcos ou destes dois caminhos, podemos atravessar o mar deste mundo e chegar ao céu. A Igreja é a nossa barca, a cruz o nosso leme, Jesus Cristo o nosso piloto, o Espírito Santo o nosso vento, a graça a nossa vela, os apóstolos e os profetas os nossos timoneiros. Lancemo-nos sem ansiedade nas profundezas deste mar para procurar essa pérola escondida que é a vida eterna e bem-aventurada.

Quando Jesus acabou de falar ao povo, quis confirmar a verdade dos seus ensinamentos com um milagre. Por isso, dirigiu-se a Simão e disse: “Leva o teu barco para o mar alto, para o lugar mais fundo e melhor para pescar, e lança as redes para apanhar peixe”. Simão respondeu: “Mestre, nós devemos-te toda a nossa obediência, mas depois de trabalharmos toda a noite, apesar dos nossos cuidados e esforços, não apanhámos nada. No entanto, cheio de confiança em Ti, por tua palavra lançarei as redes”. A sua obediência foi imediatamente recompensada, e apanharam uma enorme quantidade de peixes. O soberano Mestre da terra e das águas, aquele a quem obedecem as aves do céu e os peixes do mar, tinha submetido ao seu poder estas fracas criaturas. Diz Santo Anselmo:

“Estes que não têm medo de contrariar a vontade do Altíssimo com as suas más ações, não têm poder sobre as criaturas”.

Esta obediência dos discípulos do Salvador deve servir de exemplo aos religiosos, e ensinar-lhes a submeterem-se à menor palavra, ao menor sinal dos seus superiores, sem esperar uma ordem ou uma ameaça. Notemos aqui que Jesus Cristo, ao mandar lançar as redes, se dirige a todos os que estavam no barco, mas só a Pedro quando diz: “Conduz o barco para águas abertas”, isto é, para as profundezas das Sagradas Escrituras e da sã doutrina. Pois o que pode ser maior e mais profundo do que conhecer o Filho de Deus? Concluamos também daqui que os ministros inferiores só se devem ocupar em instruir o povo nas coisas ordinárias e simples da religião, e que só aos bispos e prelados compete resolver as dificuldades de doutrina que possam surgir na Igreja. Encontramos também aqui as três principais qualidades que todo o pregador deve ter. Em primeiro lugar, deve falar apenas de assuntos sérios e elevados; os seus discursos devem ser claros e estar ao alcance daqueles a quem se dirige; finalmente, deve agir com uma intenção reta e para a edificação dos fiéis a quem se dirige e não com o objetivo de obter elogios lisonjeiros, satisfazer a sua vaidade ou amor-próprio e atrair alguma recompensa temporal. “Apanharam tantos peixes”, acrescenta o Evangelho, “que as redes se romperam”. Aqui temos de admirar dois milagres: um pela quantidade prodigiosa de peixes, para além do que é humanamente possível; o outro pelo fato de todos esses peixes estarem presos por redes. Então Simão e André fizeram sinal aos filhos de Zebedeu que estavam no outro barco para que os ajudassem; mas eles não fizeram mais do que acenar-lhes, pois, como diz Teófilo, o espanto que se apoderara deles impedia-os de falar. Então eles vieram e encheram as duas barcas até quase as submergirem. Mas não tenhamos medo: a Igreja pode, de fato, ser agitada pelas ondas e batida pelas tempestades, mas não pode falhar nem afundar-se. Simão Pedro e os seus companheiros estavam atônitos e maravilhados com as coisas extraordinárias que Jesus tinha acabado de fazer; então Pedro, percebendo que havia mais do que o poder humano em ação, lançou-se humildemente aos pés de Jesus, reconhecendo-o como seu mestre, e disse-lhe: “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou apenas um pecador, indigno de gozar da tua presença. Afasta-te de mim, porque sou apenas um homem e tu és o Homem-Deus; sou um pecador e tu és santo; sou apenas um escravo e tu és o Rei dos reis; que a distância dos lugares te separe de mim, tanto quanto a fragilidade da minha natureza, a minha fraqueza e os meus crimes me separam de ti”; pois, de facto, ele julgava-se indigno de permanecer na presença de alguém tão santo. Concluamos daí o quanto o pecador deve temer tocar nas coisas santas, frequentar o altar e aproximar-se da sagrada Eucaristia. Mas o divino Mestre, querendo consolar São Pedro e explicar-lhe o significado desta pesca milagrosa, disse-lhe: “Não vos deixeis espantar nem atemorizar, mas acreditai e alegrai-vos; estais destinados a uma pesca mais importante; ser-vos-ão confiadas outra barca e outras redes. Até agora só apanhaste peixes nas tuas redes, mas a partir de agora, ou seja, num futuro não muito distante, serás pescador de homens; serás responsável por instruir os teus irmãos e conduzi-los pela sã doutrina nos caminhos da salvação”. A palavra de Deus é justamente comparada ao anzol do pecador. Porque, assim como o anzol só apanha o peixe na medida em que o próprio anzol é absorvido pelo peixe, assim também a palavra de Deus só conduz o homem à vida eterna na medida em que o próprio homem recebe essa palavra no seu coração. Ou, “o que acaba de acontecer mostra que um dia tomarás os homens; ou, porque assim te humilhaste, serás investido da função de tomar os homens. Porque a humildade tem um grande poder de atração; e merecem comandar os outros aqueles que sabem não se orgulhar do poder”. Assim, Pedro não é elevado ao apostolado, mas a sua futura eleição é anunciada; e o fato que se passa aqui com estas circunstâncias figura o que acontece na Igreja de que Pedro é a cabeça.

Pedro, depois de ter trabalhado toda a noite com os seus companheiros sem ter apanhado nenhum peixe, lança as redes à palavra de Jesus Cristo e apanha peixes em abundância. E não o atribui a si próprio, reconhece em si mesmo apenas o pecado: “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador”. É este o modelo do pregador do Evangelho. Se ele se apoiar na sua própria virtude, não terá resultados na sua pregação; mas se se apoiar na virtude divina, os resultados serão imensos.

Pedro, depois de ter apanhado um grande número de peixes e de se ter prostrado aos joelhos de Jesus, dá-nos a entender que o pregador que, pela sua palavra, conseguiu conquistar um grande número de almas, deve humilhar-se perante Deus, atribuindo-lhe tudo, reconhecendo em si mesmo apenas a imperfeição. Então, Deus fortalece-o dizendo-lhe: “Coragem”, e é-lhe prometido um resultado mais frutuoso: por isso, a vossa captação será muito maior.

E tendo trazido as suas barcas para terra, isto é, tendo-as atracado com a intenção e a esperança de as levar de volta; tendo deixado tudo por um momento, as suas barcas e as suas redes, seguiram o Senhor, isto é, acompanharam-no um pouco por respeito e deferência; eram Pedro e André, Tiago e João; mas voltaram ao seu trabalho habitual e às suas barcas. Isto prova uma coisa: ainda não tinham renunciado totalmente aos seus bens, e não estavam completamente ligados a Jesus Cristo nesta vocação.

O mar da Galileia e Tiberíades é a mesma coisa que o lago de Genesaré, situado entre Jerusalém e Damasco; fica a três medidas de cada uma dessas duas cidades. Tem doze milhas de comprimento e cerca de cinco milhas de largura. Está rodeado de bosques; a sua margem é arenosa; é rico em peixes de todas as espécies; o seu aspeto é agradável à vista e as suas águas são excelentes para beber. Embora as águas sejam doces, este lago é chamado mar, segundo o costume da língua hebraica, que dá o nome de tarsis a um grande volume de água doce ou salgada, de acordo com a passagem do Génesis: e chamou “mar” às águas.

Este lago é chamado Mar da Galileia porque se situa dentro dos limites da província com esse nome. Chama-se Mar de Tiberíades por causa da cidade com o mesmo nome situada na sua margem. Chama-se lago porque as suas águas são calmas e formadas pelo fluxo e refluxo do Jordão e pelo borbulhar das correntes deste rio que o atravessam. Não tem leito fora do qual se possa estender.

Genesaré vem de uma palavra grega, genezar, e significa “aquilo que por si só produz o vento”, porque muitas vezes uma brisa ligeira vem à superfície do lago a partir dos desfiladeiros das montanhas circundantes, que se transforma num vento veemente produzido pelas ondas inchadas, agitadas e furiosas; assim, o lago é muitas vezes virado e os barcos submergidos pelos golpes de um furacão e pelo rugido das ondas.

Segundo Josefo, o nome deste lago provém de um pequeno país que ele banha, cujo clima é muito ameno e favorável ao cultivo de todas as espécies de árvores. Esta palavra é também interpretada como Jardim ou Terra do Nascimento. Por vezes, é também chamado Lago Salgado, devido aos poços existentes nas suas margens, de onde se extraía sal.

O Jordão nasce no sopé do Líbano, perto de Cesareia de Filipe, nas duas nascentes, Ior e Dã, de onde lhe vem o nome. Desce até ao lago de Genesaré, atravessa-o e, depois de o deixar, rega os países adjacentes durante um longo período através do famoso vale chamado Vale das Salinas, depois desagua no Mar Morto, não muito longe de Jericó, para desaparecer para sempre no Oceano.

Depois deste chamado, os discípulos acima mencionados, tendo regressado, como dissemos, às suas redes e à sua pesca, Jesus, estando nas margens do mar da Galileia, viu de novo Pedro e André lançando as redes ao mar, e disse-lhes: “Segui-me, amando-me e imitando-me; andai como eu ando, e eu farei de vós pecadores de homens; enviar-vos-ei a conquistar não prebendas, não dízimos, mas almas”. E, de fato, com a rede da santa pregação, os apóstolos tiraram os peixes, isto é, os homens, das profundezas do oceano, isto é, da infidelidade, para os trazer à luz da fé, que é a margem da salvação. Teófilo diz:

“Como é admirável esta pesca! De fato, na ordem ordinária, traz-se o peixe para a praia e ele perece. Mas aqui os apóstolos levam os homens pela sua pregação, e eles adquirem uma superabundância de vida”.

Diz São Crisóstomo:

“Jesus chama os apóstolos no meio do seu trabalho para nos mostrar que devemos deixar tudo para o seguir. Por isso, se és pescador e pastor da Igreja, teme que não sigas perfeitamente o Senhor, isto é, renunciando a ti mesmo e carregando a sua cruz. Eles deixaram imediatamente as suas redes e a sua barca e seguiram Jesus Cristo completamente, isto é, não só corporalmente, mas sobretudo pelo afeto e pela obediência, sem nunca mais voltarem ao que lhes pertencia”.

Um pouco mais adiante, Jesus vê Tiago e João num barco, com o seu pai Zebedeu, que já era velho e tinha o leme. Estavam a remendar as redes, o que prova a sua grande pobreza. Diz São Crisóstomo:

“Vede com que cuidado o Evangelho assinala a pobreza dos apóstolos. Encontrou-os, diz, a remendar as redes; eram tão pobres que remendavam as redes velhas e rompidas; não podiam comprar novas nem ter redes melhores. E vejam a sua piedade filial! No meio da sua miséria, ajudam o seu velho pai. Levam-no consigo no barco, não para serem ajudados, mas para o consolar, deixando-o gozar da sua presença. Oh, que grandes lições de virtude para nós: suportar pacientemente todas as pobrezas, viver do trabalho honesto, estar unidos pelo amor mútuo, ter conosco o nosso pai velho e pobre e trabalhar para o ajudar. Por exemplo, às vezes é preciso fazer uma pausa na pesca e na pregação para consertar as redes. Fazei isso, reuni as autoridades da Sagrada Escritura que vos ajudaram a triunfar sobre a avareza e sobre uma série de outros vícios; consertai as vossas redes, nas quais envolvestes tantas almas pecadoras”.

E Jesus chamou-os a si para os transformar de pescadores de peixes em pescadores de homens. Segundo São Crisóstomo, Jesus escolheu propositadamente os pescadores; pelo tipo da sua obra, anunciou a dignidade futura com que seriam honrados. Por uma transformação maravilhosa, passaram de pescadores terrestres a pescadores celestes, para tirar a humanidade das profundezas do abismo do erro e trazê-la de volta às margens da salvação. Deixaram imediatamente tudo o que lhes pertencia, até os pais, e seguiram Jesus Cristo, imitando-o e vivendo a vida de perfeição. Assim, os seus corações mudam, mas continuam a ser pescadores: as suas redes tornam-se a sua doutrina, a sua avareza transforma-se em amor pelas almas; o seu mar é o mundo, o seu barco é a Igreja, os seus peixes são os bons e os maus.

Estes apóstolos são o modelo para todos aqueles que querem seguir Jesus Cristo. Assim, Pedro, André, Tiago e João, deixando as redes, a barca e o pai para seguir o Senhor que os chamou, ensinam-nos que nem a vontade da carne, nem a cobiça dos bens deste mundo, nem os afetos familiares devem impedir-nos de seguir o Salvador; pois o seu perfeito imitador abandona as redes do pecado, a barca dos bens e até os pais, pelo menos do ponto de vista dos afetos de sangue, para o seguir imediatamente. Diz São Crisóstomo:

“Vós, que vindes a Jesus Cristo, deveis renunciar a três coisas: às obras da carne, representadas pelas redes; aos bens deste mundo, representados pela barca; aos vossos pais, representados por Zebedeu”.

Assim, os apóstolos deixaram os seus barcos para se tornarem pilotos do barco da Igreja; deixaram as suas redes, já não para levar peixe às cidades da Judeia, mas para levar almas para o céu; deixaram os seus pais, para se tornarem os pais espirituais de todos os homens. Segundo o relato evangélico, Pedro e André lançam as suas redes ao mar, e João e o seu irmão remendam as suas. Porque é que eles fizeram isto? Porque Pedro pregava o Evangelho, mas não o escrevia, e João escrevia-o, mas não o pregava. Um é a figura da vida ativa e o outro da vida contemplativa; porque Pedro era o mais zeloso e ávido dos apóstolos; João o mais sublime escritor.

Consideremos agora a grandeza da obediência destes quatro bem-aventurados discípulos. Ao primeiro mandamento, despojando-se imediatamente de tudo, até da vontade e da intenção de possuir de novo, seguiram o Senhor Jesus Cristo. Nisto, diz São Crisóstomo, mostram-se verdadeiros filhos de Abraão; ao seu convite e à sua voz, seguem o Salvador. Renunciam imediatamente às vantagens temporais para conquistar os bens eternos; deixam o pai terreno para se entregarem ao pai celeste; e foi isto que lhes valeu merecidamente a eleição. Em seguida, considerai a fé e a pronta obediência desses pescadores. Sabeis quanta cobiça e paixão há no pescador. E, no entanto, embora no meio do seu trabalho mal vissem Jesus a ordenar-lhes que o seguissem, não hesitaram um momento, não disseram: “Vamos para casa, vamos despedir-nos dos nossos pais”. Seguindo o exemplo de Eliseu, chamado por Elias, a sua renúncia é quase instantânea. É esta a obediência que Jesus Cristo deseja de nós; não devemos demorar um segundo a obedecer-lhe, mesmo que sejamos travados por uma grande consideração. É por isso que, quando um homem se aproximou dele e lhe pediu que o deixasse voltar para enterrar o pai, Jesus respondeu negativamente, para nos mostrar que ele deve ser preferido a tudo. São Gregório diz:

“Como sabeis, à primeira ordem dada, os discípulos seguem o Redentor e esquecem tudo o que possuem. Oh, que lhe diremos nós no dia do juízo, nós que fazemos ouvidos moucos à voz que nos chama; nós a quem o amor deste mundo impede de nos deixarmos dobrar pelos preceitos e corrigir pela desgraça? Eles seguiram o Senhor, imitando as suas ações e praticando as suas virtudes. É a isto que se chama seguir Jesus Cristo. Não basta segui-lo pessoalmente, é preciso segui-lo no espírito e no amor”.

Diz Santo Hilário:

“Estes discípulos são os nossos modelos. Como eles, sigamos Jesus Cristo; afastemo-nos das preocupações da vida deste mundo, renunciemos às comodidades da casa paterna. É verdade que os discípulos possuíam pouco, mas a sua renúncia era grande, porque se esforçavam por não guardar nada e por não amar nada deste mundo”.

Diz São Gregório:

“Aqui, devemos considerar o sentido: deixa muito aquele que, tendo pouco, renuncia a tudo o que possui; deixa muito aquele que nada guarda para si; deixa muito aquele que renuncia ao desejo de possuir; deixa muito aquele que, com o que possui, renuncia à concupiscência. Assim, a renúncia desses discípulos foi tão completa quanto a avareza dos que não seguiram Jesus Cristo, pois Deus considera o coração, não o bem que se sacrifica; não pesa o valor do sacrifício, mas a intenção que o determina; e, no entanto, esse pequeno sacrifício vale o reino dos céus, pois Deus tem sempre a recompensa na mão, se vê a boa vontade no santuário do nosso coração, que é o mais rico presente que lhe podemos oferecer”.

domingo, 11 de junho de 2023

Vita Christi – II Domingo depois de Pentecostes – Ludolfo da Saxônia, O.Cart.

 


Como a maior parte das pessoas, apegadas aos bens terrenos e atraídas pelos prazeres do mundo, não desejam os bens celestes e não se esforçam por obtê-los, apesar de acreditarem na realidade desses bens, o Salvador, para lhes mostrar que só a indiferença as torna indignas deles, propõe-lhes uma parábola. Nessa parábola, faz-nos sentir a imensa bondade de Deus para com os homens e, ao mesmo tempo, censura a ingratidão dos Judeus, que, de preferência a todas as outras nações, tinham sido convidados para essa bem-aventurança celeste, primeiro pelos profetas, depois pelo próprio Jesus Cristo e, por fim, pelos seus apóstolos, mas que tinham recusado aceitar esses convites repetidos, abandonando assim o seu lugar aos Gentios.

E o Salvador disse-lhes: Um homem, isto é, Jesus Cristo, Deus e homem ao mesmo tempo, pois quis revestir-se da nossa humanidade, preparou uma grande ceia, isto é, a glória e a bem-aventurança celestial e duradoura que Deus desde toda a eternidade reservou às almas dos justos. Este banquete chama-se ceia, porque, tal como a refeição da noite é a última do dia, assim também a bem-aventurança celeste só é concedida no fim da vida atual, depois da qual não há mais nada a esperar. O Mestre chamou um grande número de convidados, pois Deus deseja a salvação e a felicidade de todos os homens. Chamou uns pelo ministério dos anjos, dos patriarcas e dos profetas; outros por si mesmo, pelos seus apóstolos e pelos pregadores do Evangelho; outros por inspirações salutares, pelos benefícios da prosperidade ou pelas dores da adversidade. Chegada a hora da ceia, isto é, na última idade do mundo e no tempo da graça, enviou o seu servo, representado pelos pregadores do Evangelho, que, embora numerosos e diferentes em estado e posição, devem, no entanto, formar um só, pois devem estar todos unidos pelos laços da fé e da caridade.

Jesus Cristo enviou, pois, o seu servo a dizer aos convidados que viessem ou que se preparassem para este banquete com as suas boas obras, porque tudo estava pronto para os receber. Mas quando o Cordeiro imaculado foi morto na cruz, abriram-se as portas do céu; então Jesus Cristo, que tinha sido enviado por seu Pai para convidar todos os homens, enviou também os seus apóstolos e os seus sucessores para os chamar (porque tudo estava pronto) a este banquete celeste, que consiste sobretudo na visão beatífica das Pessoas divinas, na companhia dos anjos e dos santos. Mas então todos começaram a desculpar-se, ou melhor, a tornarem-se indignos dele pela sua má conduta, preferindo os bens sensuais e terrenos aos espirituais e celestes.

Quando o Evangelho diz todos devemos entender o maior número; com efeito, poucos são os que se salvam em relação a toda a massa do gênero humano. Diz São Gregório:

“Muitos são convidados para esse banquete, mas muito poucos são admitidos, porque a maioria se faz indigna dele, entregando-se voluntariamente ao orgulho, à avareza ou à volúpia”.

O primeiro começa a desculpar-se, dizendo: “Comprei a minha casa nos campos e tenho de a ir ver” designa assim os orgulhosos e amantes do mundo, cuja ambição e amor às honras e dignidades são marcados por esta casa.

O segundo diz: “Comprei cinco juntas de bois e vou pô-las à prova” é a imagem do homem ganancioso e avarento que só pensa nos bens terrenos e mundanos, de que os bois destinados a lavrar a terra são o emblema.

O terceiro diz: “Estou casado e não posso ir” mostrando-nos com isto os homens voluptuosos e sensuais, cuja inteligência, segundo o pensamento de São Basílio, entorpecida pelos prazeres carnais, é incapaz de se elevar à contemplação das coisas divinas. Todos eles são indignos de assistir ao banquete nupcial do Cordeiro imaculado.

Os três vícios que acabamos de mencionar são a fonte de tudo o que nos pode afastar desta bem-aventurança celeste, pois, como diz o apóstolo São João: “Tudo o que há no mundo ou é concupiscência da carne, ou concupiscência dos olhos, ou soberba da vida”. Diz Santo Agostinho:

“Ó vós que quereis assistir a este banquete do Altíssimo, não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo; o amor dos bens terrenos é causa de dores espirituais; tudo o que há neste mundo ou é concupiscência da carne, ou concupiscência dos olhos, ou soberba da vida! Fujamos, pois, de todas estas desculpas vãs e ridículas; que o orgulho, a ambição e a volúpia não nos detenham, mas vamos a Deus sem distrações, e as nossas almas ficarão abundantemente satisfeitas”.

O servo voltou para o seu senhor e contou-lhe tudo o que tinha acontecido”: são os ministros do Evangelho que, depois de se terem entregue à pregação, voltam ao silêncio da contemplação e aí, nas suas conversas interiores com Deus, lhe comunicam tudo o que aconteceu; então Jesus Cristo, cuja família é constituída pelos anjos e pelos eleitos, irritado com os homens tépidos e negligentes que desprezaram o seu banquete celeste, preferindo assim os bens temporais e perecíveis à felicidade eterna, diz aos seus servos fiéis: “Saí depressa”; deixai os trabalhos do estudo, abandonai as doçuras da contemplação para ir pelas ruas e praças públicas da cidade, indicando-nos com isto a vocação dos judeus. Tal como as ruas e as praças de uma cidade estão fechadas dentro dos seus muros, assim os judeus estavam fechados dentro das observâncias legais a que estavam sujeitos como cidadãos de Deus que lhes tinha dado a sua lei. Ide, pois, e chamai os pobres em graça e em virtude, os fracos e carentes de boas obras, os cegos que não conhecem a verdade, os coxos por falta de afeto reto e de boa intenção, isto é, os pequenos e os humildes que se julgam desprezíveis, e trazei-os. São estes que o Senhor quer chamar à penitência e introduzir no seu banquete. Os chefes dos sacerdotes e os doutores da lei foram rejeitados por causa da sua soberba e ingratidão, mas os simples e os cobradores de impostos foram admitidos, como vemos nos apóstolos, nos discípulos e em muitos outros mencionados no Evangelho. Diz São Gregório:

“Porque os ricos recusaram o convite do Mestre, foram chamados os pobres, pois Deus escolhe os fracos aos olhos do mundo para confundir os fortes, e prefere o pecador que se humilha ao justo orgulhoso. O Senhor toma para si aqueles que o mundo despreza; muitas vezes o desprezo do mundo atrai o pecador para dentro de si e chama-o de novo à virtude, e quanto menos satisfação se tem cá em baixo, mais se está disposto a ouvir a voz de Deus e a ir ter com Ele”.

Diz Santo Agostinho:

“Quem são os que participam no banquete do Senhor, senão os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos? Os ricos, os sãos e cheios de si não são admitidos, porque quanto mais orgulhosos são, mais Deus os despreza. Vinde, pobres, sois convidados por Aquele que quis fazer-se pobre por vós, apesar de ser o soberano Mestre de todas as coisas, para vos enriquecer com a sua própria pobreza. Vinde, vós que estais doentes e a definhar; o médico não é para os que estão bem. Vinde, coxos, e dizei-lhe: ‘Senhor, torna os meus pés firmes no caminho dos teus mandamentos’. Vinde, cegos, e dizei-lhe: ‘Ilumina os meus olhos, para que não adormeçam na morte eterna’”.

O servo, voltando para o seu senhor, disse-lhe: “Senhor, fiz o que me mandaste e como me mandaste”, mostrando assim a sua perfeita obediência, tanto na ação como no modo; “mas ainda há lugares vazios”. É como se dissesse: “Muitos judeus vieram a teu convite, mas ainda há lugar para receber os gentios”, mostrando-nos que a Igreja está sempre pronta a receber aqueles que querem entrar no seu seio. Então o Mestre disse ao seu servo: “Vai pelos caminhos e arbustos e obriga todos os que encontrares a entrar”. Quer dizer: “Sai da Judeia, vai ter com os pagãos e, com as tuas instruções, os teus apelos e as tuas solicitações, obriga-os a entrar na minha ceia celeste para que a minha casa”, isto é, o céu, “se encha e o número dos predestinados e se torne perfeita”.

Por aqueles que são chamados, entendemos os judeus que tinham a lei e os profetas, e para os quais um simples convite deveria ter bastado; por aqueles, pelo contrário, que são constrangidos, entendemos os gentios ou os hereges que a Igreja atinge com os seus lampejos para os reconduzir ao seu rebanho; ou ainda todos aqueles que Deus, através das provações da adversidade, reconduz ao seu amor e à prática do bem. Uma feliz necessidade que nos obriga a viver melhor! Muitos, de fato, se são prósperos, só pensam no mundo e nas coisas do mundo, mas, na desgraça e no perigo, voltam para Deus. Diz São Crisóstomo:

“É mais difícil triunfar das paixões quando se vive em paz, do que desprezar as riquezas quando se está em perigo. O medo do perigo ajuda a alma e facilita o triunfo sobre os prazeres dos sentidos”.

De fato, quantas pessoas que não teriam querido ser pobres em paz, preferem renunciar às suas riquezas em tempos de perseguição a perecer com elas. Deus conhece-os e permite que lhes sejam retirados os seus bens, para que permaneçam fiéis a Ele ou regressem mais facilmente a Ele.

Por fim, para concluir, Jesus Cristo acrescenta: “Em verdade vos digo que nenhum dos que foram convidados e recusaram vir provará a minha ceia”. Como é terrível esta sentença do nosso divino Mestre! Que ninguém se recuse, pois, a aceitar o seu convite, para que, com a sua recusa, não se exclua para sempre do banquete celeste. Diz São Crisóstomo:

“Esforcemo-nos incessantemente por conservar em nós a dignidade de cristãos em que fomos estabelecidos; lutemos continuamente pelo reino de Deus, considerando as coisas presentes como uma sombra passageira que vai e como fumo que se desfaz no ar. Se um rei da terra nos tirasse da nossa miséria e nos adotasse como seus filhos, lamentaríamos a cabana de onde nos tirou? Do mesmo modo, aprendamos a desprezar os bens presentes deste mundo, considerando os bens futuros que Deus nos reserva e para os quais somos chamados”.