quinta-feira, 30 de maio de 2019

CAPÍTULO I – DA RENÚNCIA E MENOSPREZO DO MUNDO – ESCADA DO CÉU - SÃO JOÃO CLÍMACO





                Deus em sua incompreensível bondade infinita, houve por bem honrar com a dignidade do livre arbítrio as suas criaturas racionais. Destas, umas podem ser chamadas amigos seus, outras fiéis e legítimos servos, outras de todo ponto inúteis, outras bárbaros e apartados dele, outras seus inimigos e adversários. Amigos de Deus são aquelas intelectuais e espirituais substâncias que com ele moram. Servos fiéis são aqueles que, sem preguiça ou sem cansaço, obedecem a sua santíssima vontade. Servos inúteis são aqueles que, depois de haver sido lavados com a água do santo batismo, não guardam o que nele assentaram e capitularam. Bárbaros são aqueles que estão arredados de sua santa fé. Adversários e inimigos são aquelas que, não contentes de ter sacudido de si o jugo da Lei de Deus, perseguem aos que procuram guardá-la. Cada uma destas classes de pessoas requer especial tratado, mas o nosso propósito é tratar somente daquelas que justamente merecem ser chamadas fidelíssimos servos de Deus. Foram estes que, com a força potentíssima da caridade, nos impeliram a tomar esta carga e, por obediência, sem tergiversar, estenderemos a nossa rude mão, tomaremos a pena, molhá-la-emos na tinta da humildade, para escrever em seus brandos e piedosos corações, como em tábuas espirituais, as palavras de Deus. Todavia, e antes de tudo, consignemos que Deus se oferece e propõe, por verdadeira vida e saúde, a todos os que têm vontade e livre arbítrio, sejam fiéis ou infiéis, justos ou injustos, religiosos ou irreligiosos, seculares ou monges, sábios ou ignorantes, sãos ou enfermos, moços ou velhos, como a comunicação da luz, a vista do sol e o curso do tempo, que são feitos para todos. E começaremos pelas definições de alguns vocábulos que mais aproveitam ao nosso propósito.
                Irreligioso é a criatura racional e mortal, que por sua própria vontade foge à vida, tratando de tal maneira com o seu Criador como se acreditara que ele não existe. Iníquo é aquele que violentamente torce o entendimento da Lei de Deus, para conformá-la com seu apetite e, sendo de contrário parecer, pensa que crê na palavra de Deus. Cristão é aquele que trabalha, quanto ao homem é possível, por imitar a Jesus Cristo, tanto em suas obras, como em suas palavras, crendo firmemente na Santíssima Trindade. Amante de Deus é aquele que, ordenadamente e como deve, usa de todas as coisas naturais e nunca deixa de fazer o bem que pode. Continente é aquele que, no meio das tentações e laços, trabalha, com todas as suas forças, para alcançar paz e tranquilidade de coração e bons costumes. Monge é uma ordem e modo de viver de anjos, estando em corpo mortal; monge é aquele que traz sempre os olhos da alma postos em Deus e faz oração em todo o tempo, lugar e negócio; monge é uma perpétua contradição e violência da natureza e uma vigilantíssima e infatigável guarda dos sentidos; monge é um corpo casto, uma boca limpa e um ânimo esclarecido com os raios da divina luz; monge é um ânimo aflito e triste, o qual, trazendo sempre diante dos olhos a memória da morte, sempre se exercita na virtude.
                Renúncia e desamparo do mundo é um ódio voluntário e um abandono das coisas da natureza, pelo desejo de gozar do sobrenatural. Todos os que abandonam voluntariamente as comodidades, prazeres e mais bens da vida presente, devem fazê-lo, ou pela esperança da glória futura, ou pela memória de seus pecados, ou pelo amor de Deus. Se alguém tal fizesse por outras causas, sua renúncia seria indiscreta e temerária, contudo, qual for o fim e termo de nossa vida, tal será o prêmio que recebemos de Jesus Cristo, juiz e remunerador de nossos trabalhos. Aquele que saiu do mundo para descarregar-se do peso de seus pecados, trabalhe por imitar os que estão sobre as sepulturas chorando os mortos e não deixe de derramar contínuas e fervorosas lágrimas e de gemer profundamente do íntimo do coração, até que Jesus Cristo levante a pedra do sepulcro (que é a dureza do coração) e ressuscite Lázaro (que é nosso cego espírito), livrando-o dos pecados, isto é, ordenando aos ministros (que são os anjos) que o desatem das ataduras dos vícios e deixem-no ir para a bem-aventurada liberdade da alma, isto é, para a santa tranquilidade de consciência.
                Todos nós que desejamos sair do Egito e da sujeição de faraó, temos necessidade de algum Moisés, que nos sirva de medianeiro para com Deus, o qual medianeiro, guiando-nos por este caminho, com a ajuda, tanto de suas palavras, como de suas obras e de sua oração, levante por nós outros as mãos para Deus, a fim de que, guiados por tal capitão, passemos o mar dos pecados e façamos volver as espadas a Amaleque, príncipe dos vícios. Alguns, fiados em si mesmos, acreditam não ter necessidade de guia e ficaram enganados.
                Os que saíram do Egito, tiveram Moisés por capitão; os que saíram de Sodoma, tiveram um anjo guia. Os primeiros, isto é, os que saíram do Egito, são figura daqueles que procuram sanar as enfermidades de sua alma com a cura e diligência do médico espiritual, mas os segundos, isto é, os que saíram de Sodoma, significam aqueles que, estando cheios de imundícies e torpezas corporais, desejam grandemente ver-se livres delas, os quais tem para isso necessidade de um homem que seja semelhante aos anjos, porque, segundo a corrupção das chagas, assim temos necessidade de sapientíssimo médico para a curas delas.
                E, verdadeiramente, aquele que, vestido desta carne mortal, deseja subir ao Céu, tem necessidade de suma violência, contínuos e infatigáveis trabalhos, especialmente nos princípios, para conseguir desabituar-se de deleites e para que o coração, que antes era impassível ao sentimento de seus males, venha a afeiçoar-se a Deus e a ser santificado com a castidade, mediante o atentíssimo estudo e exercício das lágrimas e da penitência. Trabalho, grande trabalho e amargura de penitência, eis o necessário especialmente para aqueles que estão mal habituados, até que o nosso miserável ânimo, acostumado a carniçaria e a guloseima dos vícios, torne-se amante da contemplação e da castidade, ajudando-nos para isso das virtudes da simplicidade, da mortificação da ira e de uma grande e discreta diligência. Porém, com tudo isso, nós, que somos combatidos de vícios, conquanto não tenhamos alcançado bastantes forças contra eles, confiemos em Jesus Cristo e, com fé firmíssima, lhe apresentemos humildemente a fraqueza e a enfermidade de nossa alma, e, sem dúvida, alcançaremos seu favor e graça, procurando sumir perpetuamente o nosso merecimento no abismo da humildade. Saibam com certeza os que nesta formosa, dura e arriscada batalha entram, que vão meter-se em um fogo, se desejam inflamar seu coração com o fogo do divino amor. Portanto, prove cada um a si mesmo, e desta maneira chegue-se a comer deste pão com amargura e a beber deste suavíssimo cálix com lágrimas, a fim de que não entre nesta milícia para seu juízo e condenação. Se é verdade que nem todos os batizados se salvam, vigiemos com temor e atenção, que não corram também este mesmo perigo os que professam em Religião. Por isso, os que desejam fazer firme fundamento de virtude, todas as coisas deste mundo negarão, todas desprezarão, todas porão debaixo dos pés e todas examinarão; e, para que este fundamento seja tal, há de ter três colunas com que se sustente, as quais são: jejum, castidade e inocência. Todos os que são principiantes em Jesus Cristo, começaram por estas três coisas, tomando para exemplo os que são crianças na idade, pois, nas criancinhas, não há dobrez, nem dureza de coração, nem fingimento, nem desmedida cobiça, nem ventre insaciável, nem movimento de vícios desonestos, porque de um se segue o outro e, conforme a cheia dos manjares, assim se acende o fogo da luxúria.
                É coisa aborrecida e mui perigosa que aquele que começa, comece com frouxidão e brandura, porque sói ser isto indício manifesto de futura queda. Por isto, é coisa mui proveitosa começar com grande ânimo e fervor, ainda que depois seja necessário conter algum tanto rigor.
                A alma que começou a pelejar varonilmente e depois algum tanto se debilitou e enfraqueceu, muitas vezes é ferida e provocada ao bem com a memória da antiga virtude, e diligência, como com um aguilhão e açoite, e alguns, por estes caminhos, voltaram ao passado vigor e renovaram as primeiras asas.
                Tantas quantas vezes a alma se achar fora de si, por haver perdido aquele benemérito e amável calor da caridade, faça diligente inquirição, investigue por que causa o perdeu e arme-se contra essa causa com todas as suas forças, porque não poderá introduzi-lo por outra porta que não seja aquela por onde saiu.
                Aqueles que, somente por temor, começam o caminho da renúncia, por ventura parecerão semelhantes ao incenso que se queima, o qual ao princípio cheira muito e depois para em fumaça; aqueles que, somente tendo em vista o galardão, sem outro móvel, se resolvem a isto, são como pedra de atafona, que sempre anda no mesmo sítio, sem dar passo adiante, nem aproveitar mais. Mas, aqueles que deixaram o mundo só por amor de Deus, estes, desde logo, mereceram o acrescentamento deste fogo, que, como se estivesse no meio de um grande bosque, sempre vai alastrando cada vez mais.
                Há uns que edificam com pedras sobre ladrilhos; há outros que sobre terra levantam colunas; há outros que caminham a pé, esquentados os membros e nervos, mais ligeiramente andam. Quem lê, entenda o que significa esta parábola. Os primeiros, isto é, aqueles que sobre ladrilhos assentam pedras, são aqueles que sobre excelentes obras de virtudes se elevam a contemplação das coisas divinas, mas que, não estando bem fundados em humildade e paciência, caem, por alta de segurança nos alicerces, quando se desencadeia uma grande tempestade. Os segundos, que sobre terra edificam colunas, são aqueles que depois de haver passado pelos exercícios e trabalhos da vida monástica, querem logo voar a vida solitária, os quais, por falta de virtude e de experiência, são facilmente enganados por inimigos invisíveis. Os terceiros são aqueles que pouco a pouco caminham a pé com humildade, debaixo de obediência, nos quais o Senhor infunde o espírito da caridade, com a qual, inflamados e esforçados, acabam prosperamente o caminho.
                E já que somos chamados por Deus, que é nosso Rei e Senhor, corramos alegremente, para que, se por ventura o prazo de nossa vida for curto, não nos achemos estéreis e pobres a hora da morte e não venhamos a morrer de fome. Procuremos agradar nosso Rei e Senhor, como os soldados ao seu; porque, depois de professados nesta milícia, mais estreita conta se nos há de pedir. Temamos a Deus, ao menos como os homens temem alguns animais ferozes, pois, vi alguns que, querendo furtar, deixaram de fazê-lo, não por temor de Deus, mas de medo dos cães que ladravam, de modo que aquilo que não foi evitado pelo temor de Deus, o foi pelo temor dos cães. Amemos a Deus, ao menos como amamos aos amigos, pois, também vi muitas vezes alguns que, havendo ofendido a Deus e provocado a sua ira, nenhum cuidado tiveram de recuperar sua amizade com a mínima ofensa, trabalharam com toda a diligência e indústria, e com toda a aflição e confissão de sua culpa, para reconciliarem-se, metendo neste empenho terceiros, dentre outros amigos e parentes, e oferecendo muitas dádivas e presentes.
                No princípio da renúncia não se praticam as virtudes sem trabalho, amargura e violência, mas, depois que começamos a aproveitar, com muita pouca ou nenhuma tristeza as praticamos, e depois que a natureza está já absorvida e vencida com o favor e alegria do Espírito Santo, então obramos já com gozo, alegria, diligência e fervor na caridade. Quanto mais dignos são de louvor os que, logo ao princípio, abraçam as virtudes e cumprem os mandamentos de Deus com fervor e alegria, tanto são mais de chorar os que, tendo vivido muito neste exercício, as exercitam com trabalho e pesadume, se porventura as exercitam.
                Não devemos condenar aquelas maneiras de renúncia, que parecem ter sido feitas por acaso, pois, tenho visto alguns delinquentes que, fugindo, encontraram por acaso o Rei, foram recebidos em seu serviço, contados entre seus cavalheiros e recebidos em seu palácio e a sua mesa. Vi também algumas vezes caírem, descuidadamente, alguns grãos de trigo da mão do semeador, os quais se apoderaram muito bem da terra e vieram depois dar grande fruto. Vi também alguns irem a casa do médico para outro negócio, os quais acertaram em receber nela saúde que não tinham e recuperam a vista quase perdida. E deste modo acontece, que, algumas vezes, são mais firmes e estáveis as coisas que sucedem sem nossa vontade do que as que de propósito tivessem sido feitas.
                Ninguém, considerando os seus muitos pecados, diga que é indigno da profissão e vida dos monges, nem se engane com esta cor e aparência de humildade, para deixar de seguir a senda estreita da virtude e dar-se a vícios: isto é embuste do demônio e ocasião para perseverar nos pecados. Aliás, onde as chagas estão mais fistulosas e purulentas, aí é assinaladamente necessária a diligência e destreza de sábio médico.
                Se um rei mortal e terreno, nos chamando a seu serviço ou a sua milícia, não há coisa que nos detenha, nem buscamos ocasião para escusar-nos e, ao contrário, deixamos tudo, e vamos servi-lo e obedecer com suma alegria, não recusemos obedecer ao Rei dos reis, ao Senhor dos senhores, a Deus, que nos chama a ordem desta milícia celestial, porque será depois difícil a escusa diante daquele seu terrível e espantoso tribunal.
                Pode ser que aquele que está preso e aferrolhado aos negócios do século, dê alguns passos e ande, ainda que com impedimento e trabalho, pois também acontece que aquele que tem grilhões ou cadeias nos pés, ande, ainda que mal e trabalhosamente. Aquele que vive no mundo sem mulher, mas com cuidados e negócios, é semelhante ao que tem algemas nas mãos, por isso, ainda pode, se quiser, correr livremente a vida monástica, ou solitária, mas, aquele que tem mulher é semelhante ao que está de pés e mãos atados.
                Ouvi uma vez a certos negligentes que, vivendo no mundo, me diziam: “Como poderemos nós, morando com nossas mulheres e cercados de cuidados e negócios de república, viver vida monástica? ”, aos quais respondi: “Fazei todo o bem que puderes, não injurieis ninguém, não digais mentira, não tomeis o alheio, não queirais mal a ninguém, não vos levanteis contra ninguém, frequentais as igrejas e os sermões, usais da misericórdia com os necessitados, não escandalizeis, nem deis mau exemplo a ninguém, nem sejais favorecedores de bando de malfeitores, nem vos empregueis em meter discórdias, senão em desfazê-las e contentai-vos com o uso legítimo de vossas mulheres, porque, se isto fizerdes, não estareis longe  do reino de Deus”.
                Preparemo-nos com alegria e sem temor para esta gloriosa batalha, não acobardando-nos, nem desanimando pelo temor de nosso adversários, pois, Deus está conosco. Os nossos adversários, posto que de nós não sejam vistos, veem muito bem a figura de nossas almas, e, se nos virem acobardados e medrosos, tomam armas mais fortes contra nós, apesar de contarem com a nossa fraqueza e covardia. Portanto, com grande ânimo devemos tomar contra eles as armas da alegria e coragem, porque ninguém é poderoso para vencer a quem alegre e animosamente peleja.
                Nosso Senhor costuma a usar de uma maravilhosa concessão aos principiantes e novos guerreiros, temperando e moderando-lhes as primeiras batalhas, a fim de que não voltem ao mundo, espantados da grandeza do perigo. Portanto, gozai sempre no Senhor e tomai isto por sinal de chamamento, e da piedade e providência paternal que ele tem de vós outros. Outras vezes também acontece que este mesmo Senhor, quando vê as almas fortes no princípio, lhes aparelha mais fortes batalhas, desejando mais cedo coroá-las.
                Sói o Senhor esconde aos homens do século as dificuldades desta milícia (posto que, sob outro respeito, melhor se poderiam chamar facilidades), porque, se isto conhecessem, não haveria quem quisesse deixar o mundo.
                Oferece os trabalhos de tua juventude a Jesus Cristo e na velhice te alegrarás com as riquezas de uma quietíssima paz e tranquilidade, pois, as coisas que recolhemos e ganhamos na mocidade, depois nos sustentam e consolam, quando estamos fracos e debilitados na velhice. Trabalhem os moços, ardentemente, e corram com toda a sobriedade e vigilância, pois, a morte, tão incerta, nos está aguardando a cada hora. Além disto, temos inimigos perversíssimos, fortíssimos, astutíssimos, potentíssimos, invisíveis e despidos de todos os impedimentos corporais e que nunca dormem, os quais, tendo fogo nas mãos, trabalham com todo o estudo por abrasar e queimar o templo vivo de Deus. Ninguém, por ser moço, dê ouvidos aos demônios, que costumam dizer: “Não maltrates tua carne para que não venhas cair em enfermidades e doenças”, pois, deste modo, sob a cor da discrição, muitas vezes fazem o homem mui brando e piedoso para consigo. E nesta idade dificilmente se encontra quem de todo mortifique sua carne, ainda que se abstenha de muitos e delicados manjares, porque uma das principais astúcias de nosso adversário é tornar brando e fraco o princípio da nossa profissão, para depois fazer o fim semelhante ao princípio.
                Aqueles que fielmente desejam servir a Jesus Cristo devem, antes de tudo, com grandíssima diligência, buscar os lugares, os costumes e a quietude, assim como os exercícios, que acharem mais acomodados a seu propósito e espírito, segundo o conselho dos padres diretores espirituais, e segundo lhes der a entender a experiência de si próprios, pois, nem a todos convém morar nos mosteiros, especialmente aqueles que são tocados no vício da gula no comer e no beber, nem a todos convém seguir a quietude da vida solitária, especialmente aqueles que são inclinados a ira. Observe cada um diligentemente, como dito é, o estado que mais se lhe coaduna, porque três maneiras de estados e profissões contém a vida monástica: o primeiro é o da vida solitário, o estado dos monges anacoretas; o segundo é o da companhia de dois ou três que vivem em soledade; o terceiro é o dos que servem na obediência dos mosteiros. Ninguém, pois, se desvie, como diz o Sábio, destes estados, nem para a direita, nem para a esquerda, siga pelo caminho real. Entre estas três maneiras de estados, a do meio foi mui proveitosa para muitos, porque ai daquele que está só, que se cair em tristeza espiritual, ou no sono, ou na preguiçam ou na desconfiança, não terá entre os homens quem o levante, ao passo que onde estão ajuntados dois ou três em meu nome, diz o Senhor, aí estou no meio deles. Enfim, será fiel e prudente monge aquele que, guardando seu fervor inteiro até o fim da vida, persevere sempre, acrescentando cada dia fogo a fogo, fervor a fervor, desejo a desejo e diligência a diligência.

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Anotações

                Para inteligência deste capítulo, leitor cristão, hás de pressupor, que se colige da doutrina dos Santos Padres, a renúncia tem três graus: o primeiro é deixar, por amor de Deus, todas as coisas do mundo, como o Salvador o aconselhava àquele mancebo do Evangelho; o segundo é deixar-te a si mesmo, que é deixar a própria vontade, com todos os apetites e paixões de nossa alma, para fazer de nós mesmos verdadeiro sacrifício, holocausto a Deus; o terceiro é que nosso espírito puro e inteiramente se ofereça a Deus, se transporte para Deus, se junte com Deus, que é o fim dos graus passados, porque tanto mais se ajuntará nosso espírito com Deus, quanto mais apartado estiver das coisas do mundo e de si mesmo. Do primeiro destes três graus se trata neste primeiro capítulo, do segundo, que é o da mortificação das paixões, se trata no seguinte e do terceiro se trata consequentemente no capítulo terceiro, conquanto em cada um se toque algo do que pertence ao outro. Porque familiar coisa é a este santo (como o é a todos os que, escrevendo, seguem o instinto e o magistério do Espírito Santo), não ter tanto em conta o fio e consequência das matérias e a ligação das cláusulas e sentenças, quanto seguir o ditame e movimento deste espírito divino que os ensina, como se mostra no autor daquele tão espiritual livro – Contemptus mundi, e em outro muitos.
                O que muito há de notar neste capítulo e em quase todo este livro, é o rigor, trabalho e diligência, que este insigne mestre pede a todos os que verdadeiramente se determinam a buscar Deus, especialmente nos princípios de sua conversão, até desfazerem-se os maus hábitos da vida passada, para que se veja claro por autoridade de tão grande varão, que esta empresa não é de frouxos e folgazões, mas de valentes e esforçados cavaleiros, conforme aquele sentença do Salvador, que diz: “O reino dos Céus padece força e os esforçados são os que o arrebatam”.