segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Vita Christi - XII Domingo depois de Pentecostes - Ludolfo da Saxônia, O.Cart.


O nosso divino Mestre tinha explicado as razões pelas quais Deus esconde os mistérios da fé e os segredos da sua sabedoria divina aos soberbos e os revela aos humildes; e, por conseguinte, abandonando os judeus à sua cegueira, tinha iluminado os discípulos, porque eram pequenos e humildes, e tinha-lhes revelado o mistério da sua vinda. Por isso, proclamou-os bem-aventurados, porque neles se cumpriram as promessas feitas aos antigos patriarcas. “Bem-aventurados os olhos que veem o que vós vedes”. De fato, são bem-aventurados, porque foram considerados dignos de ver Jesus Cristo não só com os olhos exteriores do corpo, mas também com os olhos interiores da inteligência. Aqueles que veem Cristo, o Filho de Deus, pela fé, nascida e formada pelo amor, são felizes neste mundo pela esperança e, se perseverarem, serão felizes no outro, de fato e na realidade. Depois acrescenta: “Em verdade vos digo que muitos profetas e reis desejaram ver o que vedes e não o viram, ouvir o que ouvis e não o ouviram”. Profetas, isto é, pessoas poderosas em conhecimento, e reis ou justos poderosos em santidade, pois São Lucas chama reis àqueles a quem São Mateus chama justos, e de fato são grandes reis, pois souberam triunfar sobre todas as tentações e governar como quiseram as paixões e inclinações da natureza. Esses profetas e justos desejavam ver e ouvir o que os discípulos tinham visto e ouvido, e da mesma maneira, mas foram privados dessa vantagem. Os discípulos, de fato, não só viram Jesus Cristo com os olhos do corpo na sua humanidade, mas descobriram interiormente a divindade escondida sob o exterior humano na sua pessoa; não só ouviram a sua voz e as suas instruções, mas abraçaram a sua doutrina com o ardor da sua fé. Os profetas, por outro lado, e os patriarcas viram o Salvador apenas à distância, como uma figura, através dos véus da fé e como num espelho, e não corporalmente como os apóstolos. Jesus Cristo não felicita os seus discípulos pelo fato de terem gozado da sua presença corporal, pois os judeus também gozaram dessa presença e, no entanto, persistiram na sua incredulidade; mas felicita-os pelo fato de, descobrindo a sua divindade oculta, terem acreditado nele e o terem adorado como Filho de Deus. Como eles, também nós podemos merecer ser proclamados bem-aventurados, pois, embora já não possamos ver o Salvador com os olhos do corpo na sua humanidade, podemos olhá-lo com os olhos do espírito e, tendo-o contemplado através das obscuridades da fé nesta vida, vê-lo-emos face a face na eternidade. Notemos aqui que Jesus Cristo se manifesta de quatro maneiras diferentes. Primeiro, aos olhos do corpo, através da sua humanidade, mas esta visão não é a verdadeira felicidade, pois judeus e gentios podem ter visto Jesus Cristo durante a sua vida mortal, mas nem por isso foram menos condenados. Em segundo lugar, pela fé; de fato, desta visão material nasce no nosso coração uma claridade, um sentimento interior que nos faz crer que Jesus Cristo é verdadeiramente o Filho de Deus. “Porque me viste” - disse o Salvador ao apóstolo São Tomé – “acreditaste”; como se dissesse: “Porque tocaste o meu corpo, porque sentiste as cicatrizes das minhas chagas, a fé iluminou o teu coração e creste em mim”. Esta fé não é ainda a verdadeira bem-aventurança, é apenas o caminho que nos conduz a ela. Em terceiro lugar, Jesus Cristo manifesta-se à alma pela contemplação ou pelo êxtase; este sentimento de devoção afetuosa faz-nos sentir, é verdade, a doçura do Senhor, mas não é ainda a bem-aventurança celeste, é apenas o seu antegozo. Em quarto lugar, Jesus Cristo manifesta-se na sua glória, mostrando-se aos eleitos tal como é, e esta visão trará a suprema felicidade ao entendimento, assim como a caridade perfeita trará a suprema felicidade à vontade.

Enquanto o Salvador falava assim com os seus discípulos, um doutor da lei, que interpretava melhor o sentido literal das Escrituras do que o seu sentido espiritual e oculto, levantou-se e dirigiu-se a Jesus, dizendo-lhe como que para o tentar: “Mestre, que devo fazer para obter a vida eterna?”. Este doutor levantou-se para se fazer entender, ou melhor, para chamar a atenção e glorificar-se aos olhos dos presentes. Interrogou Jesus, não para aprender, mas para o pôr à prova e com a intenção maliciosa de criticar a sua resposta. Chamou-lhe Mestre e não Senhor, porque, embora estivesse disposto a aprender por aprender, não queria dobrar a sua mente sob o jugo da obediência. Ao chamar Mestre àquele de quem não quer ser discípulo, representa-nos os cristãos que se comprazem em elogiar a conduta dos santos, mas que não têm a coragem de os imitar. Diz, e com razão, “que devo fazer”, pois não é aos que ouvem, mas aos que cumprem a lei que está reservado o céu, o reino de Deus não é prêmio de belas palavras, mas de boas obras. Então Jesus disse-lhe: “O que está escrito e o que lês na lei?”. Esta lei divina, que está acima de todas as outras no que diz respeito à vida eterna, esta lei sobre a qual seremos examinados, sobre a qual teremos de responder no grande dia do juízo, de acordo com as palavras do Apóstolo: “Aqueles que violam a lei serão punidos de acordo com a lei”. Apliquemo-nos, pois, a estudar esta lei, sobre a qual seremos julgados, seguindo o exemplo do homem justo de que fala o Salmista, que meditava noite e dia na lei do Senhor. Diz São Jerônimo:

“Mas, infelizmente nos nossos dias, as pessoas estudam os decretos e ordenações dos imperadores e negligenciam os preceitos de Jesus Cristo. Preferem as leis humanas ao Evangelho, que desprezam”.

Diz São Beda:

“Esse doutor pergunta a Jesus Cristo sobre a vida eterna, na esperança de que Ele responda contrariamente à lei mosaica, mas o Salvador o confunde usando, em sua resposta, as próprias palavras de Moisés, e assim nos mostra que os contemporâneos da fé católica serão confundidos por sua própria lei; os judeus, pelas Escrituras; os muçulmanos, pela própria lei de Maomé”.

O doutor respondeu-lhe então dizendo o que lia na lei, mas não o que punha em prática: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de todas as tuas forças”. “Amarás o Senhor”, porque Ele te criou pelo seu poder; “o teu Deus”, porque Ele te ensinou pela sua sabedoria; Ele é teu, porque, por efeito da sua bondade, te redimiu e te fez um dos seus filhos. “Amá-lo-ás com todo o teu coração”, isto é, com toda a força da tua vontade, porque – assim como do coração partem os movimentos de todas as outras partes do corpo – assim também a vontade é o princípio de todas as operações da alma. “Amá-lo-ás com toda a tua alma”, isto é, com todo o ardor sensível que se desperta na alma por efeito da vontade; “amá-lo-ás com toda a tua mente”, isto é, com toda a força da inteligência, que também é movida pela vontade a aderir a todos os artigos de fé, a refletir em Deus e a meditar nas obras divinas. Por fim, “amá-lo-eis com todas as vossas forças”, isto é, com todas as potências motrizes e executivas que, despertadas no homem pela vontade, o levam a realizar com amor e prontidão todas as obras agradáveis a Deus. Diz São Máximo:

“A lei divina prescreve três modos pelos quais devemos amar a Deus, que nos distanciam das três grandes tentações a que estamos expostos neste mundo, e que Jesus Cristo quis pôr à prova, a saber: O amor das riquezas, o amor da glória e o amor dos prazeres sensuais”.

Deves, pois, “amar o teu próximo”, isto é, todos os homens como a ti mesmo, com o mesmo afeto e ternura com que te amas a ti mesmo, procurando obter-lhes todas as graças neste mundo e a glória eterna no outro. Diz São Basílio:

“O primeiro e principal mandamento consiste no amor a Deus, e o segundo, que é apenas o complemento do primeiro, consiste no amor ao próximo”.

Diz São Crisóstomo:

“Reparai que o nosso Salvador coloca, por assim dizer, no mesmo plano e recomenda com o mesmo ardor a prática dos dois preceitos do amor de Deus e do amor do próximo. Falando do primeiro, Ele diz: ‘Amarás a Deus de todo o teu coração’, e do segundo ele diz: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Se observássemos atentamente este duplo preceito, já não haveria distinção entre o senhor e o escravo, entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, e o pecado permaneceria desconhecido cá em baixo, porque este duplo amor de Deus e do próximo, que vive no coração do homem, torna-o invulnerável a todos os ataques do demônio, e seria mais fácil uma palha resistir ao fogo do que o pecado apagar o ardor desta caridade”.

Diz São Gregório:

“Está escrito que deves amar o teu próximo como a ti mesmo, pois como poderia ser bom e compassivo para com os outros aquele que é bastante cruel para consigo mesmo para viver no pecado?”.

Jesus disse-lhe: “Respondeste perfeitamente, faze isto e viverás”, ou seja, ama a Deus e ama o teu próximo. Jesus disse: “faze isto”, porque não basta amar, é preciso demonstrar esse amor com atos. As obras são a prova mais evidente do amor: “Fazei isto e vivereis para sempre”. O amor a Deus e o amor ao próximo é o caminho que conduz infalivelmente à vida eterna, mas vós contentais-vos em dizer e não fazeis nada, e é por isso que não o conseguis. O doutor, querendo justificar-se, isto é, parecer justo aos olhos dos outros, e pensando, além disso, que estava a falar a um homem comum que só vê o exterior e não a Deus que penetra no fundo dos corações, disse a Jesus: “Mas quem é o meu próximo?” Ao fazê-lo, prova contra si próprio que o amor ao próximo não está nele, pois admite não o conhecer. Talvez tenha imaginado que Jesus lhe diria que os judeus eram o seu próximo e que ele poderia então responder que amava Deus e os judeus, e assim pareceria justo aos olhos dos homens. Então Jesus ergueu os olhos e contou-lhe a parábola de um homem que ia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos ladrões. Jesus levanta os olhos para o céu para nos mostrar que vai falar de coisas sérias e importantes, nomeadamente da queda do homem que, devido ao seu pecado, foi expulso do paraíso terrestre. Alguns autores afirmam que se trata apenas de uma parábola; outros, pelo contrário, pensam que o Salvador está a contar um acontecimento que teve lugar, com base no fato de que, entre Jerusalém e Jericó, havia um deserto onde os viajantes eram frequentemente atacados, roubados, maltratados e, por vezes, mortos por ladrões que aí se tinham escondido. No sentido alegórico, este homem que caiu nas mãos dos ladrões representa todo o gênero humano. De fato, o gênero humano, na pessoa dos nossos primeiros pais, desceu de Jerusalém, que significa visão de paz, ou seja, do paraíso terrestre onde gozava da paz e da felicidade divina, e veio para Jericó, que significa lua, ou seja, mutabilidade e inconstância. Por outras palavras, como castigo pelo seu pecado, o homem foi expulso do paraíso, onde devia estar a contemplar as obras de Deus num estado de paz e felicidade, e foi lançado nesta terra de exílio, cheia de inconstância, miséria e tribulação. Caiu nas mãos dos ladrões, isto é, no poder dos demônios, e foi submetido às tentações da carne, das quais teria sido isento, se não fosse o seu orgulho que o tornou culpado; pois, como diz a Escritura, o coração orgulhoso prepara a sua própria ruína e destruição eterna. Os ladrões, ou demônios, despojaram-no do seu manto de inocência e imortalidade. Ele sabia então que estava nu; mas Deus o vestiu com peles de animais, que constantemente o lembravam do estado de mortalidade a que estava agora reduzido. Tendo-o coberto de feridas e chagas por causa dos pecados que o fizeram cometer e tendo enfraquecido as suas boas qualidades naturais, os demônios retiraram-se; não deixaram de o perseguir por essa razão, mas atacaram-no de uma forma mais oculta. Primeiro, o demônio, disfarçado de serpente, apresentou-se visivelmente ao homem para o seduzir, mas depois só lhe preparou armadilhas secretas e ocultas. “Deixaram-no meio morto”; de fato, embora pelo pecado o homem tivesse perdido o privilégio da imortalidade, conservava, no entanto, luzes suficientes através das quais podia ainda conhecer Deus e voltar para Ele.

Diz São Beda:

“O demônio deixou o homem meio morto, roubando-lhe, pelo pecado, a imortalidade bem-aventurada a que estava destinado, mas não pôde privá-lo do uso da razão, com a qual pode ainda conhecer Deus e voltar a Ele”.

Diz São Teófilo:

“O homem é imortal na sua alma e mortal no seu corpo; mas quando, pelo pecado, perdeu a imortalidade da sua alma e conserva apenas a vida do seu corpo, está apenas meio vivo”.

Diz Santo Agostinho:

“Está meio morto aquele que conserva apenas a vida natural, mas cujo livre arbítrio está tão enfraquecido pelo pecado que já não pode recuperar a vida eterna que perdeu”.

Por isso se diz que ele estava deitado no chão, porque já não tinha forças para se levantar e recorrer ao verdadeiro médico, Deus, o único que o podia curar. Ou ainda: os demônios deixaram o homem meio morto, tendo-lhe tirado a vida da graça, deixando-o apenas com a vida natural, segundo a linguagem do apóstolo: “Já não vivo”, ou melhor, já não sou eu que vivo a vida do crime, “mas é Jesus Cristo que vive em mim”, vive em mim a vida da graça. Porque Deus criou o homem à sua imagem, dando-lhe a razão, e à sua semelhança, transmitindo-lhe o seu amor, para que pelo amor e pelo entendimento se unisse a Deus, e por esta união gozasse da mais alta felicidade. Mas o demônio, invejoso dos privilégios e da felicidade do homem, ataca-o tanto no seu amor como na sua inteligência: no seu amor, corrompendo o seu coração com a concupiscência do mal; na sua inteligência, esquecendo e ignorando o bem. No entanto, o homem ainda estava meio vivo, pois se o demônio podia corromper o seu coração a ponto de o tornar incapaz de amar o bem, não podia obscurecer a sua razão e a sua inteligência a ponto de o privar da capacidade de conhecer qualquer verdade.

Ora, um sacerdote e um levita iam pelo mesmo caminho, mas quando viram este infeliz despido e coberto de chagas, passaram sem se preocuparem em ajudá-lo. Isto mostra-nos que os sacerdotes e os ministros da antiga lei só podiam fazer conhecer os pecados, mas eram impotentes para os curar, porque o sangue dos bodes e dos touros, que ofereciam a Deus como sacrifícios, era insuficiente para lavar os crimes dos homens. Ou ainda, pelo sacerdote e pelo levita podemos entender a Lei e os profetas, que se contentavam em apontar e repreender os pecados, mas não os curavam. Passou então um samaritano, isto é, Jesus Cristo, o verdadeiro guardião das almas durante a peregrinação desta vida; aproximou-se do homem ferido, fazendo-se semelhante a ele pela sua Encarnação; ao ver a sua miséria, compadeceu-se e, na sua bondade, atou-lhe as feridas, envolvendo-o com as suas graças e repreendendo os seus pecados. Derrama sobre as suas feridas o óleo da doçura, fazendo-o esperar o perdão dos seus crimes, e o vinho da compunção, inspirando-lhe o temor dos castigos que lhes estão reservados. O Salvador ata as feridas dos pecadores quando lhes diz: “Fazei penitência”; deita-lhes óleo nas feridas quando diz: “O reino dos céus será a recompensa do vosso arrependimento”; e vinho quando diz: “Toda a árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo”. Jesus Cristo quis também ensinar-nos como devemos tratar os pecadores que se aproximam da resignação. Fazemos-lhes ataduras nas feridas quando lhes ordenamos que se abstenham de todo o mal; deitamos-lhes óleo quando os consolamos e lhes prometemos o perdão dos seus pecados; deitamos-lhes vinho quando lhes prescrevemos o jejum e a mortificação dos sentidos. Nunca devemos esquecer que o vinho deve ser combinado com o óleo e o óleo com o vinho, por isso São Gregório diz:

“Devemos combinar a doçura com a severidade e temperar uma com a outra, para que os pecadores não sejam desencorajados nem desanimados por demasiado rigor, nem abatidos por demasiada indulgência”.

Diz São Bernardo:

“Castigar sempre é crueldade; usar sempre de misericórdia é fraqueza, mas quem sabe temperar a severidade com a doçura é digno de louvor”.

O samaritano tomou então nos braços o homem ferido, colocou-o sobre o seu cavalo e conduziu-o à estalagem, onde cuidou dele. O cavalo do samaritano representa a humanidade de Jesus Cristo, sob a qual Ele se digna vir até nós e que, no seu corpo, carregou os nossos pecados no madeiro da cruz, ou que, segundo uma outra parábola, carrega aos ombros a ovelha perdida para a reconduzir ao redil. E leva-a para a estalagem. De fato, Jesus conduz o pecador para o seio da sua Igreja, onde, depois de ter sido aliviado do peso dos seus crimes, pode descansar da fatiga da viagem e reparar as suas forças com um alimento saudável. A Igreja não é referida aqui como morada ou casa, mas como estalagem, ou lugar de passagem, ensinando-nos, por um lado, que está destinada a receber-nos na nossa miséria e imperfeição espiritual, e, por outro, que é apenas um lugar de exilio ao qual o homem não se deve apegar e deve ansiar incessantemente pela sua verdadeira pátria. Mas, no dia seguinte, isto é, depois da sua ressurreição, quando tinha realizado a obra de redenção da humanidade, deu dois denários, isto é, os dois Testamentos, nos quais estavam inscritos o nome e a imagem do Rei eterno, e que deviam servir para pagar a nossa cura. Deu-os ao estalajadeiro, ou seja, aos seus apóstolos, a quem revelou o conhecimento das Sagradas Escrituras para que pudessem ensinar e instruir o povo, bem como aos prelados e àqueles que são chamados a governar a sua Igreja e a cuidar dos pecadores. Além disso, ordenou-lhes que acrescentassem dos seus próprios meios o que fosse necessário. Isto mostra-nos que os pregadores não devem contentar-se em anunciar as verdades contidas nos dois Testamentos, mas devem também servir-se da tradição, dos escritos dos santos mestres que os precederam, das suas próprias inspirações, numa palavra, fazer tudo o que for possível para a conversão dos pecadores. Aquele que, seguindo o exemplo dos apóstolos, prega livremente a santa doutrina aos homens, sem esperar ou receber deles qualquer recompensa temporal, também dá dos seus próprios recursos. Também dá dos seus, aquele que não só cumpre em tudo os mandamentos de Deus, mas também observa os conselhos evangélicos. Assim, no grande dia do juízo, quando o soberano Mestre vier retribuir a cada um segundo as suas obras, dirigir-se-á ao bom servo e dir-lhe-á: “Porque foste fiel nas pequenas coisas, far-te-ei senhor de coisas maiores, entra na alegria do teu Senhor e Mestre”. Todo o homem culpado de pecados mortais desce, por assim dizer, de Jerusalém para Jericó, isto é, deixa Deus, que é a nossa paz e o nosso soberano bem, para se agarrar a bens frágeis e perecíveis. Quando assim cai nas mãos dos seus inimigos, que são os demônios, quando está despojado, coberto de feridas, abandonado, que lhe resta senão a oração? Peçamos, pois, ao verdadeiro samaritano, ao guardião das nossas almas, Jesus, nosso divino Redentor, que venha ao caminho onde definhamos, que afaste de nós os demônios, que nos restitua a graça de que nos roubaram, que cure as nossas feridas, que reavive em nós a vida que está prestes a escapar, e que nos conduza com Ele à Jerusalém celeste.

Em sentido moral, este homem que desce de Jerusalém para Jericó é a figura do pecador que cai do estado de justiça no pecado; os ladrões são os demônios que lhe roubam a graça que é a verdadeira vida e o deixam apenas com a vida natural do corpo. O sacerdote e o levita que ignoram isto são os maus ministros da Igreja; o samaritano representa o bom confessor ou pregador, que, movido pela compaixão, se aproxima do pecador, ata as suas feridas dando-lhe conselhos bons e salutares, derrama sobre as suas feridas o óleo da misericórdia e o vinho da justiça, depois conduz o pecador à estalagem, isto é, à Igreja, onde recebe o pão da palavra divina e o da santa Eucaristia, que representam a graça nesta vida e a glória eterna na outra. Finalmente, o estalajadeiro é o pastor em cujas mãos o pecador é colocado e que, por sua vez, deve fazer progressos e suprir o que falta para a sua completa recuperação, tendo em vista as recompensas eternas que são prometidas ao seu zelo e devoção.

Depois desta parábola, Jesus perguntou ao doutor que o tinha interrogado primeiro qual dos três era o próximo do homem que tinha caído nas mãos dos ladrões. Diz São Cirilo:

“Nem o sacerdote, nem o levita eram os próximos desse infeliz, mas sim quem o ajudou. A dignidade do sacerdócio e o conhecimento das Sagradas Escrituras são inúteis se não forem confirmados pelas boas obras”.

Diz São Beda:

“Destas palavras do nosso divino Mestre resulta que só é verdadeiramente nosso próximo aquele que vem em nosso auxílio nas nossas dores e aflições, quer seja sacerdote, clérigo ou leigo, amigo ou inimigo, estrangeiro ou concidadão”.

O Salvador tirou então a conclusão natural da sua própria resposta: “Vai”, disse Ele, “e faze o mesmo”. Seguindo o exemplo do samaritano, mostra-te bondoso, generoso e compassivo para com todos os homens, mesmo para com os teus inimigos, e assim provarás que amas o teu próximo como a ti mesmo. Diz São Crisóstomo:

“Como se dissesse: se vires alguém em dificuldade, não digas: ‘É um malvado, um judeu ou um gentio’, porque, seja quem for, a partir do momento em que é um infeliz, tem direito à tua compaixão e à tua caridade”.

Jesus Cristo tirou ainda outra conclusão da resposta deste doutor: não são os laços de sangue ou de pátria, mas as obras de misericórdia que constituem o nosso próximo. Assim, se quereis cumprir este duplo preceito do amor a Deus e do amor ao próximo, amai-me, porque sou as duas coisas; esforçai-vos por socorrer os vossos irmãos nas suas necessidades, corporais ou espirituais, e provareis que sois o seu próximo. Diz São Bernardo:

“Tenho no meu coração o amor de Deus e do próximo, quando vos amo, ó doce Jesus, porque sois o meu próximo, uma vez que vos dignastes fazer-vos homem como eu e por mim; sois também o meu Deus, vós que me cumulastes de todos os vossos dons”.

De acordo com estas duas conclusões, o doutor está abertamente convencido de que não está a observar o duplo preceito do amor, pois não ama Jesus Cristo, que merece todo o nosso amor e afeto de duas maneiras. Se quisermos fomentar e manter o amor de Deus nos nossos corações, meditemos frequentemente nos benefícios com que Ele nos abençoou. A verdadeira misericórdia consiste em considerar todos os homens como nossos próximos, sejam eles quem forem, conhecidos ou estranhos, e só isso nos pode dar a vida e a felicidade eterna. É verdadeiramente vosso próximo aquele de quem vos compadeceis, mas aquele que endurece o seu coração às desgraças e aos sofrimentos dos outros não tem próximo. Este mandamento consiste no cumprimento da lei natural que nos diz para não fazermos aos outros o que não queremos que nos seja feito, e para fazermos aos outros o que queremos que nos seja feito. Diz Santo Ambrósio:

“Ninguém é mais verdadeiramente nosso próximo do que aquele que, pela sua bondade para conosco e pela sua graça, curou as nossas feridas e sarou as nossas chagas, amemos, pois, o nosso divino Salvador, amemo-lo como nosso próximo; amemo-lo como a cabeça de quem somos membros. Amemos também aqueles que seguem os seus passos, imitando as suas virtudes. Não é o parentesco mas a caridade que faz o próximo; a misericórdia está na própria natureza, e nada é mais conforme à natureza do que ir em auxílio do próximo”.

Diz Santo Agostinho:

“Enquanto estivermos nesta terra de exílio, ajudemo-nos mutuamente a suportar as nossas penas e fardos, para chegarmos à vida onde não haverá mais fadiga nem miséria. A verdadeira afeição consiste em partilhar as dores e as aflições da pessoa amada; é a marca evidente da amizade sincera e verdadeira. E se quisermos que este dever se torne doce e fácil para nós, consideremos tudo o que Deus esteve disposto a suportar por nós. Não nos diz o apóstolo S. Paulo: ‘Provai e fazei pelo vosso próximo o que Jesus Cristo quis fazer e sofrer por vós’? Lembremo-nos também de que somos homens, e que as enfermidades e doenças espirituais ou corporais que vemos nos outros podem também nos afetar e então estaremos prontos a compadecer-nos dos seus males e a ir em seu auxílio, tal como gostaríamos que os outros se comportassem para conosco se estivéssemos no seu lugar. Foi assim que agiu o grande apóstolo: ‘Fiz-me tudo para todos a fim de ganhar todos para Jesus Cristo’. Pensava que ele próprio poderia estar no estado deplorável do qual queria libertá-los. Acreditemos também que cada homem, seja ele quem for, pode ter alguma qualidade secreta, alguma virtude oculta que o torne melhor do que nós, e este pensamento bastará para abater, comprimir o nosso orgulho, excitar em nós a caridade e fazer-nos suportar não só com paciência e resignação, mas também com bom coração e alegria as imperfeições e faltas dos nossos irmãos”.

Diz São Gregório:

“Quem considera cuidadosamente tudo o que os outros têm de suportar das suas próprias faltas e imperfeições, estará mais disposto a suportar as imperfeições e faltas do seu próximo [...] A Jerusalém celeste, esta cidade dos eleitos, é formada e composta de anjos e santos. As pedras, ou melhor, as almas destinadas a entrar nesse edifício celeste, são lapidadas e polidas aqui na terra por dores, sofrimentos e tribulações de toda espécie. Num edifício material, as pedras sobrepostas apoiam-se umas às outras, e as que são apoiadas apoiam outras por sua vez. Na Igreja de Deus, portanto, os cristãos devem apoiar os seus irmãos e irmãs, se eles próprios quiserem ser apoiados pelos outros; deste modo, o edifício da verdadeira caridade é construído sobre um único fundamento, e este fundamento é o nosso divino Redentor, que, segundo o Apóstolo São Paulo, é o verdadeiro fundamento sem o qual nada pode ser construído. Este alicerce suporta tudo e não é suportado por nada; por outras palavras, só Jesus Cristo suporta todas as nossas imperfeições e faltas, e não nos deixa suportar nada d’Ele, porque Ele é a própria perfeição”.

Destas palavras de São Gregório devemos concluir que quanto mais tivermos de sofrer cá em baixo por amor de Deus em favor dos outros, mais próximos estaremos do fundamento do edifício, que é Jesus Cristo, e quanto menos tivermos de sofrer, mais longe estaremos dele. Meditemos atentamente estas palavras, e então estaremos prontos a suportar as faltas e imperfeições do nosso próximo, não só com paciência, mas também com alegria, em vista de Deus.

Diz Santo Anselmo:

“Aquele que alegra com os bens dos outros, consente com a vontade dos santos e aquele que os inveja é semelhante aos demônios. Verdadeiramente penso que é mais seguro se salvar por pouco que faça, que aquele que faça muito e tem inveja dos outros”.

Também diz Santo Anselmo:

“A caridade que recolhe e vivifica todos os membros da Igreja, quando percebe que um dos membros se alegram da queda do próximo, logo corta-o do corpo. Assim que quando não nos doemos da queda de nossos irmãos é porque estamos cortados do corpo, que se verdadeiramente estivéramos unidos na caridade, sem dúvida nos compadeceríamos, como se dói e sente o braço unido e se fora cortado nunca mais sentirá dor. E destas coisas pode o homem entender se é membro de Jesus Cristo, redentor nosso, ou se está cortado do corpo místico de sua Santa Igreja. E o que é dito da compaixão que devem uns haver de outros e da alegria que devem ter do bem, que os outros fazem, se há de entender dos bens do corpo e da alma, de modo que em tudo e por tudo amemos uns aos outros e nos procuremos ajudar em todas nossas necessidades. Isso mesmo se deve entender da concórdia e paz que há de haver entre os filhos da Igreja, porque como membros entre si mesmos, se ajudam com tanta concórdia de amor que por nenhuma razão, nem por alguma ocasião se possa entrar em desacordo. E isso mesmo se deve entender no sofrimento e paciência que devemos ter uns com os outros, para que assim como o braço sofre e padece dor para que a mão seja curada e a mão sofre para que não padeça a cabeça, assim o devemos nós fazer por caridade”.


 

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

O Pequeno Número dos que se Salvam – São Leonardo de Porto Maurício, O.F.M.





I - Isso que encheu de terror os maiores santos

Graças a Deus, o número de discípulos do Redentor não é tão pequeno que de tal forma que a maldade dos escribas e dos fariseus venham triunfar. Embora eles se esforcem em caluniar o Inocente e de derrubar a multidão por seus pérfidos sofismas, desacreditando a doutrina e o caráter de Nosso Senhor, achando manchas até no sol, muitos reconheceram n’Ele o Verdadeiro Messias, e sem receio das punições e nem das ameaças, abraçaram abertamente Seu partido. Malgrado as imposturas de Seus inimigos: «De turba autem multi crediderunt in Eum». Mas todos aqueles que seguiram o Cristo o seguiram até na Sua Glória? Oh! É aqui que, venerando esse profundo mistério, eu adoro em silêncio os abismos dos decretos divinos, antes que decidir com temeridade um tão grande ponto! É um grave tema aquele de que devo tratar hoje; ele fez tremer mesmo as colunas da Igreja, encheu de terror os mais grandes santos e os população dos anacoretas dos desertos. Essa instrução, na qual se trata de decidir se o número dos cristãos que se salvam é maior ou menor que o número de cristão que se perdem, vos inspirará, eu espero, um receio salutar dos julgamentos de Deus.



II - Aquele que se perde, se perde por sua própria malícia

Meus irmãos, eu queria, por causa do amor que eu vos tenho, poder vos assegurar por prognósticos de uma felicidade eterna, dizendo a cada um de vós: o paraíso vos está assegurado; [se] grande parte dos cristão se salvam, então vocês irão se salvar também. Mas, como poderia eu vos dar essa doce segurança, se, inimigos de vós mesmo, vós vos revoltais contra os decretos de Deus? Eu percebo em Deus um sincero desejo de vos salvar, mas eu vejo em vós uma inclinação decidida a se perderem. Que farei eu, pois, hoje, se eu falo claramente? Eu vos desagradarei. Mas, se eu não falar, eu desagradarei a Deus. Eu partirei então esse tema em dois pontos: no primeiro, para vos aterrorizar, deixarei os teólogos e os Padres da Igreja decidirem a questão, e pronunciar que a maior parte dos cristãos adultos se danam; e, adorando em silêncio esse terrível mistério, eu deixarei escondido meu próprio sentimento. No segundo ponto, tentarei vingar contra os ímpios a bondade de Deus, provando-vos que aqueles que se perdem, se perdem por sua própria malícia, porque eles quiseram se condenar. Aqui estão, pois, duas verdades muito importantes. Se a primeira vos assusta, não a tomeis de mim, como se eu quisesse estreitar o caminho do Céu. Pois, eu quero ser neutro nessa questão: tomeis disso vos, antes, dos Teólogos e dos Padres da Igreja, que, por força de razões, vos imprimirão essa verdade no coração. Se vocês estão corrigidos pela segunda, rendei graças a Deus, que não quer alguma coisa a não ser que vós Lhe deis inteiramente vossos corações. Enfim, se vós me forceis a dizer claramente o que eu penso, eu o farei para vossa consolação.



III - Isso não é uma curiosidade, mas uma pregação

Isso não é uma vã curiosidade, mas uma pregação salutar, fazendo soar do alto do púlpito certas verdades que servem maravilhosamente para reprimir a insolência dos libertinos, às quais, falando sempre da misericórdia de Deus e da facilidade de se converter, vivem mergulhados em toda sorte de pecados e dormem com segurança no caminho da perdição. Para os desiludir e os acordar de seu torpor, examinemos hoje essa grande questão: o número de cristãos que se salvam é maior que aquele de cristãos que se perdem? Almas piedosas, retirai-vos, este sermão não é para vós: ele tem unicamente por objetivo reprimir o orgulho desses libertinos que, matando em seus corações o santo temor de Deus, se ligam ao demônio, o qual, no sentimento de Eusébio, perde as almas tranquilizando-as «immittit securitatem ut immittat perditionem». Para resolver essa dúvida, colocai de um lado os Padres da Igreja, tanto gregos como latinos, e de outros os teólogos mais sábios, os historiadores mais eruditos e ponha no meio a Bíblia exposta ao olhar de todos. Escutai, pois, não o que eu vou dizer-vos, pois eu vos declarei que não queria tomar eu mesmo a palavra nem decidir a questão, mas sim o que vos dirão esses grandes espíritos que servem como de faróis na Igreja de Deus, para esclarecer os outros afim de que eles não percam o caminho do céu. Dessa forma, guiados pela tripla luz da Fé, da Autoridade e da Razão, nós poderemos resolver seguramente essa grave questão.

Observai bem que não se trata aqui de todo o gênero humano, nem de todos os católicos sem distinção, mas somente dos católicos adultos que, tendo o livre arbítrio, podem cooperar na grande obra de sua salvação. Consultemos em primeiro lugar os teólogos no qual reconhecemos que examinaram as coisas de mais perto e não exageraram em seus ensinamentos; escutemos dois sábios cardeais, Caetano e Belarmino: eles ensinam que a maior parte dos cristãos adultos de perdem, e, se eu tivesse o tempo de vos expor as razões sobre as quais eles se apoiam, vocês delas estariam convencendo a vós mesmos. Eu me contentarei em citar aqui Suarez que, depois de ter consultado todos os teólogos, depois de ter estudado atentivamente a questão, escreveu essas palavras: «o sentimento mais comum toma que no meio cristão há mais reprovados que predestinados».

Se, diante da autoridade dos teólogos, vocês quiserem juntar aquela dos Padres gregos e latinos, achareis em quase todos dizem a mesma coisa. É o sentimento de São Teodoro, de São Basílio, de Santo Efrém, de São João Crisóstomo. Mais ainda, na exposição de [cardeal] Barônio, era uma opinião comum entre os Padres Gregos que essa verdade foi expressamente revelada a São Simão estilita e que era para assegurar o negócio de sua salvação que ele decidiu, logo após essa revelação, viver em pé durante quarenta anos sobre uma coluna, exposta a todas às variações do tempo, modelo para todos de penitência e de santidade. Consultai agora os Padres Latinos, e vos escutareis São Gregório Magno dizer-vos em termos claros: «Muitos vem a obter a fé, mas poucos o reino celeste». «São poucos que se salvam», diz Santo Anselmo, e Santo Agostinho fala ainda mais claramente: «São, pois, poucos que se salvam em comparação com aqueles que se perdem». O mais terrível, no entanto, é São Jerônimo que, no fim de sua vida, em presença de seus discípulos, pronunciou essa terrível sentença: «De cem mil, no qual a vida foi sempre má, acharás neles um apenas que merece a indulgência».



IV - Testemunhos da Santa Escritura


Mas por que procurar as opiniões dos Padres e dos Teólogos, quando a Santa Escritura define tão claramente essa questão? Percorrei o Antigo e o Novo Testamento e vós nele encontrareis uma multidão de figuras, de símbolos e de palavras que fazem destacar claramente essa verdade: são muito poucos os que se salvam. No tempo de Noé, todo o gênero humano foi submergido pelo dilúvio, e oito pessoas apenas foram salvas na arca. «No entanto, essa arca», diz São Pedro, «era a figura da Igreja», «e essas oito pessoas que se salvaram», retoma Santo Agostinho, «significam que há muito poucos cristãos salvos, porque são muito poucos que renunciam sinceramente ao século, e que aqueles que não o renunciam mais do que por palavras, não pertencem portanto ao mistério representado por essa arca». A Bíblia nos diz ainda que dois hebreus somente, de dois milhões, entraram na terra prometida depois da saída do Egito; quatro pessoas somente escaparam do incêndio de Sodoma e das outras vilas infames que pereceram com ela. Tudo isso significa que o número de reprovados, que devem ser jogados ao fogo como a palha, supera, e muito, o número dos que eleitos que o Pai Celeste deve recolher um dia, como um precioso trigo no seu celeiro.

Eu não terminaria, portanto, se começasse a falar aqui todas as figuras pelas quais os livros santos confirmam essa verdade. Contentemo-nos de escutar o Oráculo Vivo da Sabedoria Encarnada. Que respondeu Nosso Senhor aos curiosos do Evangelho que Lhe perguntaram: «Senhor, serão poucos que se salvarão?» Guardou Ele o silêncio? Respondeu Ele hesitando? Dissimulou Ele seu pensamento com receio de aterrorizar a multidão? Não, interrogado por um só, Ele se endereçou a todos aqueles que estavam presentes. «Você me pergunta», disse-lhes Ele, «se são poucos os que se salvam. Aqui está minha resposta: "Esforçai-vos em entrar pela porta estreita, pois muitos, eu vos digo, procurarão entrar e não poderão"». Quem Fala aqui?! É o Filho de Deus, a Verdade Eterna, que diz mais claramente ainda em uma outra ocasião: «muitos são chamados, mas poucos são eleitos». Ele não diz: «Todos são chamados, e entre todos os homens poucos são eleitos». Mas diz: «muitos são chamados», quer dizer, como explica São Gregório, «que entre todos os homens, muitos são chamados à verdadeira fé, mas entre eles são poucos os que se salvam». Essas palavras, meus irmãos, são de Nosso Senhor Jesus Cristo; são elas claras? Elas são verdadeiras. Diga-me agora se é possível de ter a Fé em seu coração, e não tremer.



V - Exame dos diversos estados

Ah! percebo que falando assim de todos em geral, eu falto com meu objetivo: Apliquemos então essa verdade aos diversos estados, e vós compreendereis que é preciso ou renunciar a razão, a experiência e ao senso comum dos fiéis, ou confessar que a maior parte dos católicos se perdem. Existe no mundo um estado mais favorável à inocência, onde a salvação parece mais fácil e no qual nós temos uma mais alta ideia que aquele dos Padres, que são os tenentes de Deus? Que não acreditará, de primeira impressão , que a maior parte dentre eles são não somente bons, mas ainda perfeitos; e, no entanto, eu estou tomado de horror, quando escuto um São Jerônimo adiantar que, embora o mundo seja pleno de padres, deles apenas um sobre cem padres vivem de uma maneira conforme o seu estado; quando ouço um servo de Deus atestar que aprendeu por revelação que o número de padres que caem diariamente no inferno é tão grande, que não lhe parecia possível restar ainda tantos padres sobre a terra; quando eu escuto São João Crisóstomo escrever com lágrimas nos olhos: «Eu não creio que tenha muitos padres que se salvam, mas eu creio no contrário, que o número daquele que se perdem é bem maior».

Olhai mais alto ainda; veja os prelados da Santa Igreja, os párocos tendo o encargo das almas: o número daqueles que se salvam entre eles é maior que o número dos que se perdem? Escutai Tomás de Cantimpré, ele vos recordará um fato, isto será encarregado a vós de dele tirar as consequências. Teve um sínodo em Paris: um grande número de prelados e de párocos encarregados de almas ali se achavam; o rei e os príncipes vieram ainda acrescentar por sua presença a centelha dessa assembleia. Um célebre pregador foi convidado a pregar; e durante a preparação de seu sermão, um horrível demônio apareceu-lhe e disse-lhe: «Deixai de lado todos teus livros; se você quer fazer um sermão útil a esses príncipes e prelados, contentai-vos em dizer-lhes de nossa parte: “Nós, príncipes das trevas, vos rendemos graças, a vós príncipes, prelados e pastores de almas, pois, por vossa negligência, o maior número de fieis se perde; assim, nós nos reservamos de recompensar esse favor, quando vocês estiverem conosco no inferno”».

Infelizes de vós que comandeis aos outros: se tantos se perdem por vossa culpa, o que será de vós? Se entre aqueles que são os primeiros na Igreja de Deus, são poucos que se salvam, o que virá a ser de vós? Tomai todos os estados, todos os sexos, todas as condições, maridos, esposas, viúvas, jovens moças, jovens rapazes, soldados, comerciantes, artesãos, ricos, pobres, nobres, plebeus; que diremos de todas essas pessoas que vivem tão mal em outros lugares? São Vicente Ferrer vos mostrará por um fato o que vós deveis pensar. Ele relata que um subdiácono de Lyon, tendo renunciado à sua dignidade e estando retirado em um deserto para lá fazer penitência, morreu no mesmo dia e na mesma hora que São Bernardo. Aparecendo a seu bispo depois de sua morte, disse-lhe: «Sabei, meu senhor, que na mesma hora que eu expirei, trinta e três mil pessoas morreram. Sobre esse número, Bernardo e eu subimos ao céu sem demora, três entraram no Purgatório, e todos os outro caíram no inferno».

Nossas crônicas testemunham um fato mais assustador ainda. Um de nossos religiosos franciscanos, célebre por sua doutrina e sua santidade, pregando na Alemanha, representou com tanta força a feiura do pecado da impureza que uma mulher caiu morta de dor à vista de todos. Depois, voltando à vida, ela disse: «quando eu fui apresentada diante do Tribunal de Deus, sessenta mil pessoas chegaram lá ao mesmo tempo de todas as partes do mundo; sobre esse número, três foram salvas passando pelo purgatório, e todo o resto foi condenado».

Ó abismo dos julgamentos de Deus! De trinta e três mil, cinco somente se salvaram! De Sessenta mil não tiveram senão três que foram ao céu! Pecadores que me escutais, de qual número sereis vós? ... Que tendes a dizer? ... O que pensais?...



VI - Os dois caminhos

Eu vejo que quase todos vós abaixais a cabeça, apreendidos de surpresa e de horror. Retirai, porém, vosso estupor, e ao invés de nos aliciarmos, tentemos tirar de nosso receio alguma vantagem. Não é verdade que existem duas vias que conduzem ao Céu, que são a inocência e o arrependimento? Ora, se eu vos demonstro que são pouquíssimos que tomam uma dessas rotas, vós concluís disso, como homens racionais, que são pouquíssimos que se salvam. E para disso vir as provas, qual idade, qual emprego, qual condição vos encontrais onde o número de comerciantes não seja cem vezes mais considerável que aquele dos bons, e do qual pudéssemos dizer: «os bons ali são raros e os comerciantes numerosos»? Podemos dizer de nossos tempos o que São Salviano disse de seu tempo: «é mais fácil achar uma multidão inumerável de pecadores mergulhados em toda sorte de iniquidades que alguns inocentes. Quantos há entre eles, entre os servidores, que sejam inteiramente honestos e fieis em seu ofício? Quantos entre os mercadores, que são justos e equitativos em seu comércio? Quantos, entre os artesãos, são exatos e verídicos? Quantos, entre os negociantes, são desinteressados e sinceros? Quantos, entre os homens da lei, que não traem a equidade? Quantos soldados que não calcam com os pés a inocência? Quantos chefes que não retém injustamente o salário daqueles que os servem ou que não procuram dominar seus inferiores? Em toda parte, os bons são raros e os perversos numerosos. Que não sabe que hoje existe tanto libertinagem entre os jovens rapazes, tanta malícia entre os homens maduros e tanta liberdade entre as jovens moças, de vaidade entre as mulheres, de licenças na nobreza, de corrupção na burguesia, de dissolução do povo, tanta audácia entre os pobres, que podemos dizer o que Davi disse de seu tempo: “Todos parecem extraviados... e não há quem faça o bem, nem mesmo um só”» (Ps. XIII e LII)

Nós chegamos, ai de nós! Chegamos a esse dilúvio universal de vícios predito por Oseias: «maledictum et mendacium et furtum et adulterium inundaverunt».

Percorrei as ruas e as praças, os palácios e as casas, as vilas e os campos, os tribunais e os cursos, e mesmo os templos de Deus, onde achareis vós a virtude? «Ai de nós!», diz São Silvano, «à exceção de um grande pequeno número que fogem do mal, o que é a assembleia dos cristãos, senão um porão de todos os vícios?» Não achamos em toda parte senão interesse, ambição, gula e luxúria. Não é verdade que a grande parte dos homens se contaminaram pelo vício da impureza, e São João? Não tinha razão de dizer que o mundo, se é que podemos chamar assim alguma coisa também tão imunda, está inteiramente posto no mal? Não sou eu quem vos diz, é a razão que vos força a crer que entre tantas pessoas que vivem assim tão mal, são pouquíssimos os que se salvam.



VII - As confissões

Mas a penitência (o sacramento), dizeis vós, não pode ela reparar com vantagem a perda da inocência? É verdade, concordo: mas sei também que a penitência é tão difícil, na prática, que ou se perdeu extremamente o uso ou os pecadores abusam extremamente dela, que isso só basta para vos convencer que são poucos os que se salvam por esta via. Oh! Que esse caminho é de difícil acesso, estreito, semeado de espinhos, horrível de ver, duro para subir! Temos nele visto em toda parte traços de derramamento de sangue, e de coisas que lembram tristes lembranças. Quantos fracos nada chegaram a ver! Quantos desistem no começo! Quantos caem fatigados no meio, quanto se abandonam miseravelmente no fim! E, quão poucos são os que nele perseveram até a morte! Santo Ambrósio declara que é mais fácil achar homens que guardaram a inocência que entre eles achar quem tenha feito uma penitência conveniente: «Facilius inveni qui innocentiam servaverint, quam qui congruam poenitentiam egerint».

Se vós considereis a penitência enquanto Sacramento, quantas confissões censuradas, quantas apologias estudadas, quantos arrependimentos enganosos, quantas promessas falsas, quantos propósitos ineficazes, quantas absolvições inválidas! Por acaso olhai como válida a confissão daquele que se acusa de seus pecados desonestos do qual ele não se guarda das ocasiões próximas de levá-lo ao pecado, ou daquele que se acusa das injustiças manifestas sem ter intenção de os reparar o tanto que ele pode; ou daquele que, apenas tendo confessado, recai nas mesmas iniquidades? Oh! Abusos horríveis de um tão grande Sacramento!

Um se confessa para evitar a excomunhão, o outro para dar-se a si mesmo a reputação de um penitente. Aquele se livra de seus pecados para acalmar seus remorsos, esse aqui os esconde por vergonha; certos pecados ele acusa imperfeitamente por malícia, outros descobre por hábito. Aquele não se propõe, pois, ao verdadeiro fim do sacramento; aquele falta-lhe a dor necessária; ao outro falta um firme propósito. Pobres confessores, quanto esforços não vos é preciso para convencer a grande parte dos penitentes à essas resoluções, a esses atos, sem os quais a confissão é um sacrilégio, a absolvição uma condenação e a penitência uma ilusão!

Onde estão agora aqueles que acreditam que o número dos eleitos entre os cristãos é maior que aquele de reprovados e que, para autorizar a opinião deles, convencem assim a maior parte dos católicos adultos que morrem em seus leitos, munidos de Sacramentos da Igreja, então, pois, a maior parte dos católicos adultos são salvos? Oh! Que belo raciocínio! É preciso dizer totalmente o contrário. A maior parte dos católicos adultos se confessam mal durante toda a vida, então, ainda com mais forte razão eles se confessam mal no momento da morte; concluímos, pois, que a maior parte é condenada. Digo, com mais razão, porque quando algum moribundo que não se confessou bem enquanto estava com boa saúde, terá ele ainda mais dificuldade em bem se confessar quando ele estiver no leito de morte, com o coração oprimido, com a cabeça vacilando, e com a razão sonolenta; [nesse momento] quando será combatido de várias formas pelos objetos ainda vivos, pelas ocasiões ainda se produzirão, pelos hábitos contraídos, e sobretudo pelos demônios que buscam todos os meios de precipitá-lo no inferno? No entanto se a todos esses falsos penitentes vós acrescentardes tantos outros pecadores que morrem de improviso no pecado, ou pela ignorância dos médicos, ou pela falta dos pais, que morrem envenenados ou enterrados em um terremoto, ou atacados de um derrame cerebral, ou em uma queda, ou em um campo de batalha, ou em uma rixa, ou pegos em uma armadilha, ou atacados por um relâmpago, ou queimados, ou afogados, não é forçoso concluir que a maior parte dos cristãos adultos são condenados? É o raciocínio de São João Crisóstomo. «A maior parte dos cristãos», disse esse santo, «não caminham eles toda sua vida no caminho do inferno? Por que, pois, vos surpreendeis de que a grandes partes deles vá para o inferno? Para chegar à porta é preciso pegar o caminho que a ela nos leva». Que tendes vós para responder assim a um tão forte argumento?



VIII - Como as areias do mar ... Como as estrelas do firmamento...

A resposta, vós me direis, é que a misericórdia de Deus é grande. Sim, mas para aquele que o teme: «Misericordia Domini super timentes eum», diz o Profeta; mas Sua justiça é grande para aquele que não o teme, e ele reprova todos os pecadores teimosos: «Discedite a Me, omnes operarü iniquitatis».

Mas então, vós me direis, para quem é, então, o Paraíso, se ele não é para todos os cristãos? Ele é para os cristãos, sem dúvida, mas para aqueles que não desonram esse seu carácter e que vivem como cristãos. E, além disso, se ao número de cristãos adultos que morrem na graça de Deus vós acrescentardes aquela multidão inumerável de crianças que morreram depois do Batismo, antes de terem chegado ao uso da razão, vós não vos surpreendereis mais do que o Apóstolo São João disse falando dos eleitos: «Eu vi uma grande multidão que ninguém poderia contar».

E é aí que erram aqueles que pretendem que o número dos eleitos entre os católicos é maior que o de reprovados. É certo que, se vós tomardes todos os católicos juntos, a maior parte se salva, porque, após as observações que foram feitas, a metade das crianças sobre as que morrem depois do batismo, morreram antes do uso da razão. No entanto, se a esse número vós ajuntardes os adultos que conservaram o vestido da inoscência, ou que, após ter contaminado, lavaram-se nas lágrimas da penitência, é certo que a maior parte está salva; e é isso que explica essas palavras do Apóstolo São João: «Eu vi uma grande multidão», e essas outras de Nosso Senhor: «Muitos virão do Oriente e do Ocidente, e se repousarão com Abraão, Isaac e Jacó no reino dos Céus», e essas outras figuras que temos costume de citar em favor dessa opinião. Mas se falamos dos cristãos adultos, a experiência, a razão, a autoridade, a conveniência e a Escritura se concordam em provar que a maior parte se condena. Não acrediteis por isso que o paraíso seja deserto; é, antes, o contrário, é um reino muito populoso; e se os reprovados são também tão numerosos quanto as areias do mar, os eleitos os são o tanto quanto as estrelas do firmamento, quer dizer então que tanto uns como os outros são inumeráveis, embora em proporções muito diferentes. São João Crisóstomo, pregando um dia na catedral de Constantinopla e considerando essa proporção, não pode conter-se de tremer de horror: «Quantos», diz ele, «entre esse povo tão numeroso, acrediteis vós que haverão de eleitos?». E sem esperar a resposta, acrescentou: «Entre tantos milhares de pessoas ou não acharás cem que se salvem, e entre esses cem eu ainda tenho dúvida». Que coisa terrível! O grande santo acreditava que em um povo tão numerosos teria apenas cem que deveriam se salvar, e ainda não estava ele certo desse número. Que acontecerá de vós que me escuteis? Ó Grande Deus, não posso nisso pensar sem tremer. É uma coisa bem difícil, meus irmãos, o negócio da salvação; pois segundo a máxima dos teólogos, quando um fim exige grandes esforços, poucos somente o atingem. «Deficit in pluribus, contingit in paucioribus».

É por isso que o Doutor Angélico Santo Tomás, depois de ter, com sua imensa erudição, pesado todas as razões prós e contras, conclui no fim que a maior parte dos católicos adultos se perdem: «A beatitude eterna excede o estado comum da natureza, sobretudo desde que ela está privada da graça original, e por isso é pequeno o número dos que se salvam».



IX - Deus, Pai Justo

Tirai, pois, dos vossos olhos essa venda no qual vos cega o amor-próprio, e que vos impede de crer em uma verdade assim evidente, dando-vos as ideias mais falsas sobre a justiça de Deus. «Pai Justo! O mundo não vos conheceu portanto», diz Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele não diz Pai Todo-Poderoso, Pai Bondosíssimo, Misericordioso, Ele diz: «Pai Justo», para nos fazer entender que de todos os atributos de Deus, nenhum é tão pouco conhecido como Sua Justiça, porque os homens recusam crer no que eles têm receio de experimentar. Tirai pois o véu que vos cobre os olhos, e diga com lágrimas: Ai de mim! A maior parte dos católicos, a maior parte dos habitantes desse lugar, e talvez mesmo desse auditório, será condenada. Qual tema merece mais vossas lágrimas? O rei Xerxes, vendo do alto de uma colina seu exército composto de cem mil soldados dispostos em ordem de batalha, e considerando que de tudo isso não haveria um só homem vivo em cem anos, não pôde conter suas lágrimas. Não temos nós muito mais razão de chorar pensando que, de tantos católicos, a maior parte será condenada?

Esse pensamento não deveria ele tirar de nossos olhos córregos de lágrima ou ao menos excitar em nossos corações o sentimento de compaixão que provou certa vez o venerável Marcelo de São Domingos, religioso Agostiniano? Como ele meditava um dia sobre as penas eternas, o Senhor mostrou-lhe quanto almas iam naquele momento ao inferno e fez-lhe ver um caminho muito largo onde vinte dois mil reprovados corriam em direção ao abismo, batendo-se uns nos outros. A essa vista, o servo de Deus, estupefato, exclamava: «Oh! Que número! Que número! E ainda vem outros. Ó Jesus! Ó Jesus! Que loucura!». Deixai-me, pois, repetir com Jeremias: «Quem dará água à minha cabeça e uma fonte de lágrimas aos meus olhos, e eu chorarei aqueles que a filha de meu povo perdeu». Pobres almas! Como correis vós assim tão ansiosos para o inferno? Parem por favor, e escutem-me um instante. Ou vós compreendeis isso que eu quero dizer, se salvar e se perder por toda a eternidade, ou bem, vós não compreendeis. Se vós o compreenderes, e se malgrado isso vós não vos decidirdes hoje a mudar de vida, a fazer uma boa confissão, e calcar o mundo aos pés, em uma palavra, a fazer todos os vossos esforços para ser do pequeno número daqueles que se salvam, eu digo que vós não tendes a Fé. Se vós não o compreendeis, vós sois mais desculpáveis; pois, é preciso dizer que você perdeu o sentido. Se salvar durante toda a eternidade! Se perder [danado ao inferno] por toda a eternidade! E não fazer todos seus esforços para evitar um e assegurar o outro, é uma coisa que não se pode conceber.

Talvez não acrediteis ainda as verdades terríveis que eu venho vos ensinar. Mas esses são os teólogos mais consideráveis, os Padres mais ilustres que vos falou pela minha boca. Como podeis vós, pois, resistir à essas razões fortificadas por tantos exemplos, por tantas palavras da Escritura? Se, malgrado isso, vós hesiteis ainda, e se vosso espírito pende para a opinião oposta, essa só consideração não é suficiente para vos fazer tremer? Ah! Vós fazeis ver por isso que vós haveis pouca preocupação com a vossa salvação! Nesse negócio importante, um homem de bom senso é mais atacado pela dúvida do perigo que ele corre pela evidência de uma ruína completa em seus outros negócios onde a alma não é, pois, interessada. Também, um de nossos religiosos, o bem-aventurado Egídio de Assis, tinha costume de dizer que, se um só homem fosse se condenar, ele teria feito todo o possível para assegurar que [este homem] não seria ele. Que devemos nós, pois, fazer, nós que sabemos que, não somente entre todos os homens, mas ainda entre os católicos, a maior parte será condenada? O que devemos nós fazer? Tomar a resolução de pertencer ao pequeno número daqueles que se salvam. Se o Cristo, dizeis vós, queria me condenar, por que ele me colocou no mundo? Cale a boca, língua temerária! Deus não criou ninguém, nem mesmo os Turcos, para os condenar; mas, quem quer que se condena, se condena porque ele bem quis. Eu quero, pois, empreender agora a defesa da bondade de meu Deus, e de a vingar de toda blasfêmia: esse será o tema do segundo ponto.

Antes de ir mais longe, recolhei de um lado todos os livros e todas as heresias de Lutero e de Calvino, e do outro os livros das heresias dos Pelagianos, dos semi-pelagianos, e colocai no fogo. Uns destroem a graça, outros a liberdade, e todos são cheios de erros; jogai-os, pois, ao fogo. Todos os reprovados trazem gravados em suas frontes o oráculo do Profeta Oséias: «Tua perda vem de ti, afim de que eles possam compreender que quem quer que se condene, se condena por sua própria malícia, e porque ele quer se condenar».

Peguemos em primeiro lugar por base essas duas verdades incontestáveis: «Deus quer que todos os homens se salvem». «Todos têm necessidade da graça de Deus». No entanto, se eu vos demonstro que Deus tem a vontade de salvar todos os homens, e que por isso Ele lhes dá, a todos, Sua graça, com todos os outros meios necessários para obter esse fim sublime, vós sereis forçados a concordar que quem quer que se condene deve a responsabilidade à sua própria malícia, e que, se o maior número de cristãos é reprovado, é porque eles querem. «Tua perda vem de ti; em Mim está somente o seu seguro»

Que Deus tenha verdadeiramente vontade de salvar todos os homens, Ele nos declara em cem lugares dos livros santos. «Eu não quero a morte do pecador, mas antes que ele se converta e que ele viva. Eu vivo», diz o Senhor, «eu não quero a morte do ímpio – convertei-vos e vivei». Quando alguém deseja muito uma coisa, dizemos que ele morre de desejo, é uma hipérbole. Mas, Deus quis, e quer ainda, tão fortemente a nossa salvação que Ele por ela morreu de desejo, e Ele sofreu a morte para nos dar a vida: «et propter nostram salutem mortuus est». Essa vontade de salvar todos os homens não é, pois, em Deus, uma vontade afetada, superficial e aparente, é uma vontade verdadeira, efetiva e benfeitora, pois Ele nos fornece todos os meios mais perfeitos para nos salvar, Ele nos dá, não para que eles não tenham então seu efeito ou porque Ele quer que eles não tenham; mas Ele nos dá com uma vontade sincera, com a intenção de que elas obtenham seus efeitos e, se eles não o obtém, ele se mostra aflito e ofendido. Ele ordena aos reprovados a que eles mesmos empreguem a obra de sua salvação, Ele para isso os exorta, para isso os obriga, e, se eles não fazem, eles pecam. Eles podem, pois, o fazer e assim se salvarem.

Bem mais, Deus, vendo que sem Sua ajuda nós não poderíamos mesmo nos servir de Sua graça, nos dá outros socorros e se eles ficam algumas vezes ineficazes, a culpa disso é nossa, porque com esses mesmos socorros, in actu primo, como dizem os teólogos, com esses mesmos socorros no qual um o abusa e com os quais ele se condena, um outro pode fazer o bem e se salvar; ele o poderia mesmo com socorros menos poderosos. Sim, pode acontecer que um abuse de uma graça maior e se perca, enquanto outro que coopera com uma graça menor se salve.

«Se, pois, alguém se afasta da justiça (santidade)», exclama Santo Agostinho, «ele é arrebatado por seu livre arbítrio, incitado por sua concupiscência, enganado por sua própria persuasão. Mas para aqueles que não escutam a teologia, aqui está o que eu tenho a dizer-lhes: Deus é tão bom que, quando Ele vê um pecador correndo para sua perdição, Ele corre atrás dele, chama-o, suplica-lhe e o acompanha até as portas do inferno; e o que não faz Ele, então, para o converter? Ele envia-lhe boas inspirações, santos pensamentos, e, se ele não aproveita, Ele se zanga, se indigna, e o persegue. Vai Ele ferir-lhe? Não, Ele deixa isso de lado, e o perdoa. Mas o pecador não se converte ainda: Deus envia-lhe uma doença mortal. Tudo está acabado para ele, sem dúvida. Não, meus irmãos, Deus o cura; o pecado se obstina no mal, Deus procura na Sua Misericórdia algum novo meio; Ele lhe dá ainda um ano, e, o ano acaba, e aceita dar ainda um outro. Mas se, malgrado tudo isso o pecador quer se lançar no inferno, que faz Deus? O abandona? Não: ele o toma pela mão, e enquanto ele tem um pé no inferno e outro fora, ele o exorta ainda, e suplica-lhe a não abusar de Suas graças. No entanto, eu vou pergunto, se esse homem se condena, não é verdade que ele se condena contra a vontade de Deus e porque ele que se condenar?» Venham dizer-me agora: se Deus queria me condenar, por que colocou-me Ele no mundo?...



X - Não tem desculpa

Pecador ingrato, aprendei hoje que se vós vos condenais, não é, pois, a Deus que é preciso responsabilizar, mas a vós e à vossa própria vontade. Para vos convencerdes disso, descei até as portas do abismo, de lá vos farei vir alguém desses infelizes reprovados que queimam no inferno, a fim de que ele vos explique essa verdade. E aqui está um: «Dizei-me, quem és tu? - Eu sou um pobre idólatra, nascido em uma terra desconhecida; eu nunca escutei falar nem do céu nem do inferno, nem do que eu sofro agora. - Pobre infeliz! Vai-te, não és tu que procuro». Que algum outro venha; ei-lo aqui; «Quem és tu? - Eu sou um cismático dos últimos confins da Tartária, eu vivi sempre em um estado selvagem, sabendo apenas que há um Deus. - Isto não é o que eu pergunto, retornai ao inferno». E aqui está um outro: «E tu, quem és? - Eu sou um pobre herético do Norte. Eu nasci sobre o polo, sem jamais ter visto nem a luz do sol nem a luz da Fé - Isso não é ainda o que eu quero, retornai ao inferno». Meus irmãos, eu tenho o coração quebrado ao ver entre os reprovados esses infelizes que nunca conheceram nada da verdadeira Fé. Sabei, portanto, que a sentença de condenação foi pronunciada contra eles; nós dizemos-lhes: «Perditio tua ex te». Eles se condenaram porque eles quiseram. E quantos foram os socorros que eles receberam de Deus para se salvar! Não os conhecemos, mas eles sabem bem, e eles gritam agora: «Vós sois justo, Senhor, e Vossos julgamentos são retos» (Ps CXIX, 137).

Vós deveis saber, meus irmãos, que a lei mais antiga é a lei de Deus, e que nós a portamos todos escrita em nosso coração, na qual ela aprendemos sem mestres, e que é suficiente ter a luz da razão para conhecer todos os preceitos dessa lei. É por isso que os próprios bárbaros se escondiam para cometer seus pecados, porque eles sabiam que era o mal o que eles faziam; e eles estão condenados por não terem observado a lei natural que eles tinham gravada em seus corações, pois, se a tivessem observado, Deus teria feito antes um milagre do que deixá-los se condenar; Ele lhes enviaria alguém para os instruir e lhes dar outros socorros nos quais eles se tornaram indignos por não viverem conforme às inspirações de sua própria consciência que nunca falto-lhes em advertir do bem que deviam fazer e do mal que deviam evitar. Assim, também, é sua consciência que os acusa no Tribunal de Deus, é ela que lhes diz continuamente no inferno: «Perditio tua ex te, perditio tua ex te». Eles não sabem o que responder, e são forçados a confessar que eles mereceram essa sorte. No entanto, se esses infiéis não tem desculpa, terão desculpas para um católico, que tinha a sua disposição tantos sacramentos, tantos sermões, e tantos socorros? Como ousa ele dizer: «se Deus deveria me condenar, por que colocou-me ele no mundo?» Como ousa ele falar assim, quando Deus lhe dá tantos socorros para se salvar? Terminemos, pois, de o confundir.



XI - A sorte dos católicos pecadores

Respondei, vós que sofreis nos abismos. Há católicos entre vós? Oh, se há! E quantos! Que um deles venha, pois, aqui. É impossível, eles estão extremamente no fundo, e, para os fazer vir, precisaria revirar completamente o inferno; é mais fácil para um daqueles que ali caem. Eu me dirijo, pois, a ti que vives no hábito do pecado mortal, no ódio, na lama do vício impuro e que a cada dia te aproximas ainda mais do inferno. Pare, retornai no sentido contrário; é Jesus que te chama e que, por Suas feridas, como que sendo tantas vozes eloquentes, te gritam: «Meu filho, se tu te condenares, tu não terás a queixar senão de ti: “perditio tua ex te". Elevai os olhos, e veja quantas de quantas graças eu te enriqueci, afim de assegurar sua salvação eterna. Eu poderia te fazer nascer em uma floresta de Bárbaros; eu o fiz para tantos outros, mas para ti, eu te fiz nascer na fé católica; eu te elevei para um tão bom pai, uma mãe excelente, no meio de instruções e de ensinamentos dos mais puros; se, malgrado isso tu te condenas, a quem será atribuída a falta? A ti, Meu filho, a ti “Perditio tua ex te”. Eu tive paciência contigo; eu te escutei durante longos anos, eu te escuto ainda hoje na Penitência. Se, malgrado tudo isso, te condenas, de quem é a falta? É tua, Meu Filho, é tua, “Perditio tua ex te”. Tu sabes quantos são mortos em reprovação diante dos teus olhos: esses eram uma advertência para ti; sabei quantos outros eu recoloquei no bom caminho para te dar o bom exemplo. Tu te lembras o que te disse esse excelente confessor? Foi Eu quem o fiz dizer. Não te exortou ele para que mudes de vida, a fazer uma boa confissão? Era Eu quem lhe inspirava. Lembra-te daquele sermão que te tocou o coração, foi eu quem havia conduzido. E aquilo se passou entre Mim e ti no segredo de teu coração, tu não o saberás esquecer. Essas inspirações interiores, esses conhecimentos tão claros, esses remorsos contínuos de tua consciência, tu ousarás negá-los? Tudo isso, eram tantos socorros de Minha graça, porque eu queria te salvar. Eu os recusei a tantos outros e eu lhes dei a ti, porque eu te amei ternamente. Meu filho, Meu filho, quantos outros, se eu lhes falasse também ternamente o que eu te falo hoje, se recolocariam no bom caminho! E tu, tu Me viras as costas. Escute o que vou te dizer, e serão minhas últimas palavras: tu me custastes Sangue; se, malgrado esse sangue que eu derramei por ti, tu queres se condenar, não te queixes de mim, não acuse outro a não ser a ti, e durante toda a eternidade não esqueça que se tu te condenas, tu te condenas contra Minha Vontade, tu te condenas porque tu queres te condenar: “Perditio tua ex te”».

Ah! Meu bom Jesus, mesmo as pedras se dividiriam diante dessas doces palavras, de expressões assim tão afetuosas. Há aqui alguém que manifeste querer se condenar com tantas graças e socorros? Se pra isso ainda tem alguém, que me escute, e que ele resista depois se puder.



XII - Se vós quiserdes, vós vos salvareis

Barônio lembra que Juliano, o apóstata, depois de sua infame apostasia, concebeu um ódio tão grande contra o Batismo, que ele procurava dia e noite os meios de cancelá-lo. Ele preparou, para isso, um banho com sangue de cabras e se colocou nele, querendo, com esse sangue impuro de uma vítima consagrada a Vênus, retirar de sua alma o carácter sagrado do Batismo. Essa conduta vos parece abominável: mas se Juliano tivesse atingido seu desejo, é certo que ele sofreria muito menos no inferno.

Pecadores, o conselho que eu vos quero dar parecerá sem dúvida, estranho; e, no entanto, para conseguir o bem, é (esse conselho), pelo contrário, inspirado por uma tenra compaixão por vós. Eu vos conjuro, pois, de joelhos, pelo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo e pelo Coração de Maria, que mudem de vida, que vos recoloqueis no caminho que conduz ao Céu, e de fazer tudo o que vocês puderem para pertencerem ao pequeno número dos eleitos. Se, ao invés disso, vós quereis continuar a caminhar na via que conduz aos infernos, achai ao menos o meio de cancelar de vós o Batismo. Infelizes de vós, se vos transportais ao inferno tendo gravado em vossa alma o nome Sagrado de Jesus Cristo e o carácter sagrado de cristão. Vossa confusão, por causa disso, será ainda maior. Fazei, pois, isto que eu vos aconselho: se vós não querer vos converterdes, ide a partir de hoje pedir ao vosso pároco para tirar vosso nome do registro dos Batizados, afim de que não reste mais nenhuma lembrança de que você era cristão; suplicai ao vosso anjo da guarda de cancelar de seu livro as graças, as inspirações e os socorros que ele vos deu por ordem de Deus, pois, infelizes de vós se ele os lembrar. Dizei a Nosso Senhor que Ele retome para si a sua Fé, o seu Batismo e os Seus sacramentos. Vós estais apreendidos de horror por esse tipo de pensamento. Jogai-vos, pois, aos pés de Jesus Cristo, e dizei-Lhe, com lágrimas nos olhos e com o coração contrito: «Senhor, eu confesso que até aqui eu não vivi como cristão, eu não sou digno de ser contato entre os vossos eleitos, reconheço que mereço a condenação, mas Vossa misericórdia é grande: e, cheio de confiança em Vossa graça, eu protesto que eu quero salvar a minha alma, deva eu sacrificar minha fortuna, minha honra, e mesmo minha vida, contanto que eu salve a minha alma. Até aqui eu fui infiel, eu me arrependo, eu deploro, e detesto minha infidelidade, e vos peço, disso, humildemente perdão. Perdoai-me, meu Bom Jesus, e fortificai-me ao mesmo tempo, afim de que eu me salve. Eu não Vos peço nem riquezas, nem honras, nem prosperidade; eu peço apenas uma coisa: a salvação da minha alma».

E Vós, ó Jesus! Que dizeis? Aqui está a ovelha errante que voltou a Vós, ó Bom Pastor! Abraçai esse pecador arrependido, abençoai suas lágrimas e seus suspiros, ou, antes, abençoai esse povo tão bem disposto e que não quer mais buscar outra coisa que sua salvação. Protestemos, meus irmãos, aos pés de Nosso Senhor, que nós queremos, custe o que custar, salvar nossa alma. Falemos-Lhe, com lágrimas nos olhos: «Bom Jesus, eu quero salvar a minha alma». Oh! Benditas lágrima. Oh! Bem-aventurados suspiros!

Eu quero, meus irmãos, mandar-vos novamente, hoje, todos consolos. Se, pois, vós me pedis meu sentimento sobre o quanto ao número dos eleitos, ei-lo aqui: quer tenham muitos ou poucos eleitos, eu digo que aquele que quer se salvar, se salva, e que ninguém se perde se não quer se perder. E, se é verdade que são poucos que se salvam, é porque existem poucos que vivem bem. De resto, comparem essas duas opiniões: a primeira, que diz que a maior parte dos católicos são condenados; a segunda, que pretende, ao contrário, que a maior parte dos católicos são salvos; representai-vos um anjo, enviado por Deus para confirmar a primeira opinião, que venha dizer-vos não somente que a maior parte dos católicos são condenados, mas que, de toda essa multidão aqui presente, um apenas será salvo. Se você obedece aos mandamentos de Deus, se você detesta a corrupção do século, e se você abraça com um espírito de penitência a Cruz de Jesus Cristo, você será, então, esse único que se salvará. Representai-vos, em seguida, que esse anjo volta entre vós, e que, para confirmar a segunda opinião, ele vos diz que não somente a maior parte dos católicos são salvos, mas que de todo esse auditório uma só pessoa será condenada, e todos os outros se salvarão. Se você continua, depois disso, com vossas deteriorações, vossas vinganças, vossas ações criminais, e com vossas impurezas, vós sereis, então, esse único que será condenado.

Pra que serve, pois, saber se são poucos ou muitos que se salvam? «Empregai-vos em garantir vossa salvação certa por vossas boas obras», nos diz São Pedro. «Se vós quiserdes, vós vos salvareis», disse Santo Tomás de Aquino à sua irmã, que lhe perguntou o que deveria fazer para ir ao céu. Eu vos digo a mesma coisa: e aqui está, como provo minha asserção. Ninguém se condena se não peca mortalmente, isso é de Fé; ninguém peca mortalmente se não quer, é uma proposição teológica incontestável. Logo, ninguém vai ao inferno se ele não quer. A consequência é evidente. Isso não é suficiente para vos consolar? Chorai os pecados passados, confessai-vos bem, não pequem mais no futuro, e vós sereis todos salvos. Por que, pois, tanto se atormentar, desde que é certo que para ir pro inferno é preciso pecar mortalmente, e que para pecar mortalmente, é preciso querer, e, por consequência, não vamos ao inferno somente se queremos? Isso não é uma opinião, mas uma verdade incontestável e bem consoladora; que Deus vos faça compreender e vos abençoe. Amém.