“Depois, deixando de novo a cidade de Tiro, Jesus passou por Sidônia, perto do mar da Galileia, pelas regiões da Decápole”. A Decápole era o nome de um país composto por dez cidades, como indica o seu nome grego. Uma parte da Decápole ficava para lá do Jordão e a outra para cá dele; e o mar da Galileia, que é um lago de certa dimensão através do qual corre este rio, toca as duas partes da Decápole em toda a sua extensão. “Ali lhe trouxeram um homem surdo e mudo, e rogaram-lhe que impusesse as mãos sobre ele”. Este homem surdo e mudo não era surdo e mudo de nascença, nem era resultado de uma doença. Foi o demônio que o obcecou e o impediu de falar e de ouvir. Podemos, pois, admirar aqui, sobre o mesmo assunto, um triplo milagre, operado pela simples imposição daquela mão poderosa que tinha criado o primeiro homem, e que agora criava o novo homem pelos seus milagres. Mas a mão onipotente de Cristo era especialmente poderosa na cura e na salvação. Jesus cura aqueles a quem toca, porque Ele é a cura e a vida, e Ele próprio é o remédio e o médico. Que a conduta de Cristo nos sirva, pois, de lição e de exemplo; vamos a Ele, por nossa vez, com amor e temor, e, como Ele, deixemos Tiro e Sidônia, isto é, os nossos pecados, para irmos à Decápolis dos Dez Mandamentos de Deus.
“E, tirando-o do meio da multidão e levando-o para um lugar à parte, pôs-lhe os dedos nos ouvidos e saliva na língua e, erguendo os olhos ao céu, gemeu e disse-lhe: ‘Éfeta’, isto é, abre-te. De repente, os seus ouvidos abriram-se, a sua língua soltou-se e ele falou claramente”. O homem e Deus aparecem aqui em Jesus. O homem toca para curar, geme; o Deus olha para o céu de onde desceu, ordena, “e de repente os ouvidos se abrem, a língua se solta”. Através deste homem surdo e mudo, nos é permitido e mesmo recomendado ver o gênero humano surdo às ordens de Deus e mudo para proclamar os seus louvores, apesar dos patriarcas e dos profetas; estes últimos prediziam e esperavam todos a encarnação de Cristo, que devia impor ao mundo as mãos da sua misericórdia. O gênero humano tinha originalmente contraído todas as enfermidades e males imagináveis. Não menos importante era a cegueira e a mudez que se seguiram à morte e à lepra do pecado. Jesus, ao curar os surdos, os mudos e os coxos, estava a redimir um longo desvio do gênero humano.
A propósito da cura do surdo-mudo, São Beda sublinha que as duas naturezas em Jesus Cristo são perfeitamente distintas, diz ele:
“Olhando para o céu, Jesus suspira como um homem passivo diante de Deus, mas logo, por uma única palavra curando uma tríplice enfermidade, Ele se revela a nós como poderoso e em toda a sua majestade divina”.
Este exemplo de cura faz com que seja nosso dever levar todos os tipos de pecadores aos pés do Salvador através da pregação do Evangelho. A oração dos que conduzem os surdos-mudos marca a ação ou a intercessão da Igreja. Diz São Beda:
“São os surdos-mudos os que não têm ouvidos para ouvir a palavra de Deus nem boca para a proclamar”.
É então necessário que os ministros de Deus, mais bem dotados do que eles, os apresentem ao Salvador para os curar. Diz São Gregório:
“Quando os ouvidos do coração se abrem, as cadeias da língua caem imediatamente, para partilhar com os outros o conhecimento e a felicidade de um favor recebido”.
Todo pecador é surdo a Deus. Para não o ouvir, tapa os ouvidos à pregação, à Escritura e à voz interior do seu próprio coração, pois Deus fala-nos destas três maneiras, e é preciso ser surdo para não o ouvir falar destes modos. Seria preciso estar morto para não responder com ação de graças e gratidão ao convite de um Deus benéfico que chama a todos. O Senhor censura-nos por esta dupla falta, ou melhor, assinala-a através de Isaías, quando diz dos judeus: “chamava, não respondíeis; quando falava, vos fazíeis de surdos”. Os surdos são aqueles que não ouvem a voz de Deus; são ao mesmo tempo mudos, e não podem proclamar o que não sabem sobre a glória e os benefícios do Senhor. Ele não tem ouvidos para ouvir, nem boca para proclamar as palavras divinas. O toque ou a graça de Cristo elimina este duplo defeito, porque quando Cristo envia a sua graça para um coração, este torna-se humilde, devoto, louvando a Deus. É o dono desse coração que vem, que é levado para a sua província, onde é curado e onde se encontram as dez cidades, símbolos dos dez Mandamentos de Deus.
A ordem pela qual Nosso Senhor curou o surdo-mudo mostra-nos como os pecadores são curados das suas enfermidades morais. Recordemos as várias circunstâncias desta cura: o doente é levado diante do Salvador; pede-se ao Salvador que o cure; toma-o pela mão e separa-o da multidão; põe-lhe os dedos nos ouvidos; toca-lhe na língua com a saliva; olha para o céu; geme; diz: “Éfeta”, dirigindo-se apenas aos ouvidos, e segue-se uma cura. O primeiro passo para curar um pecador é levá-lo perante o seu Salvador. Isso é feito de várias maneiras: às vezes pela pregação, às vezes por uma enfermidade que ocorreu, especialmente se ela ameaça ser fatal; às vezes pelo exemplo de outro pecador arrependido; às vezes por esmolas dadas. Por vezes, o pecador vem por sua própria vontade, movido pelo sentimento do seu mal e da sua necessidade. Em segundo lugar, o Salvador quer ser invocado em favor do pecador, e muitas vezes sua cura é devida às orações dos santos no céu. Deus assim o quer, embora a sua vontade esteja sempre de acordo com o que Ele quer fazer em nós. Em terceiro lugar, o doente é separado da multidão; isto acontece quando Deus justifica um ímpio e o separa da companhia dos ímpios e o afasta das suas faltas habituais, porque, diz São Jerônimo, que aquele que foi considerado digno de ser curado é separado de algum modo da multidão perturbada pelos seus pensamentos, pelas suas ações habitualmente incoerentes e pelas suas palavras irrefletidas. Mas nem todos os pecadores podem separar-se da companhia dos ímpios através de uma fuga física; é suficiente para a sua salvação que se separem deles em espírito. Em quarto lugar, o Salvador põe os dedos nos ouvidos do pecador quando lhe dá a conhecer todas as suas faltas, mostrando-lhe todos os pecados inscritos no seu coração por um dedo divino. Em quinto lugar, o Salvador toca a língua do homem com a sua saliva, preparando-o para a confissão. A confissão, que é representada pelo toque da língua, é uma consequência do conhecimento da verdade, introduzida em nós através dos nossos ouvidos pelo dedo de Deus. Em sexto lugar, o Salvador olha para o céu, mostrando-nos assim que o pecador convertido deve levantar os olhos com intenção e desejo. Pois de que serviria ao homem ser arrancado das coisas da terra, se seu espírito não estivesse ligado às coisas do céu? Em sétimo lugar, o Salvador geme diante de uma enfermidade, e assim nos mostra que devemos gemer diante do exílio em que nos encontramos e dizer com Davi: “Ai de mim, porque o meu exílio se prolongou”. Em oitavo lugar, o Senhor diz: “Éfeta”, e dá ao pecador a absolvição total, remindo a sua falta e perdoando o seu castigo. Quando Ele disse: “Abre-te”, de repente os seus ouvidos abriram-se, a sua língua soltou-se e ele falou claramente. Da mesma forma, com essas palavras, o pecador é restaurado à saúde perfeita da alma; tudo o que resta é que ele voe para Deus. O Salvador ordenou àqueles que lhe tinham trazido o surdo-mudo que não contassem a ninguém a sua cura milagrosa. A ordem do Salvador não era absoluta, mas queria ensinar-nos a nunca nos gloriarmos das nossas ações, mesmo das melhores. No entanto, se é dever de quem faz uma boa ação não se lisonjear e não a esconder, é dever de quem a praticou louvar o seu benfeitor. É por isso que se diz: “Quanto mais ele os proibia, mais eles o publicavam. E eles admiravam-no ainda mais, dizendo: ‘Ele faz bem todas as coisas; fez os surdos ouvirem e os mudos falarem’”.
A este respeito, diz Teófilo:
“A exemplo do Salvador, quando tivermos feito algo de bom, não procuremos o aplauso e o louvor dos homens. Mas se alguém nos fez um bem, a exemplo daqueles que testemunharam um milagre e o publicaram, apesar de estarem proibidos de o fazer, não peçamos licença para publicar o benefício e proclamar o benfeitor. E, em particular, quando aqueles a quem foi ordenado calar um milagre realizado pelo Salvador o publicam sem incorrer em censura, o que não faremos nós, ministros daquele que nos ordenou pregar o seu Evangelho por toda a parte?”.
E diz Santo Agostinho:
“O Deus que tudo sabe de antemão sabia que a sua defesa contra a publicação de um dos seus milagres seria um estímulo para o proclamar. Mas, com esta proibição e com a sua prevista infração, Deus mostrava ainda, e cada vez mais, a obrigação de pregar o Evangelho àqueles que tinham recebido a ordem formal para o fazer”.
Embora apenas um surdo-mudo tenha sido curado, havia vários outros, assim como vários cegos e coxos, para não falar dos outros doentes, como veremos no capítulo seguinte. Mas entre todos esses doentes, houve um em particular cuja cura foi mais notável, pois, diz São Jerónimo, há matéria para três milagres. Em conclusão, diz-se do nosso Salvador: Ele faz bem todas as coisas; portanto, não basta fazer o bem, é preciso fazê-lo como Ele. Façamos, pois, como o nosso Salvador, evitando a glória vã para obter a glória verdadeira. Diz Santo Agostinho:
“Diz-se que há um grande mérito em desprezar a glória; só os olhos de Deus sabem apreciar esse mérito, a razão humana é incapaz de o fazer. Aquele que está acima do louvor está acima da temeridade humana e não pode ser tocado por ela. Não há verdadeira virtude senão aquela que tende para o bem, para além do qual, para o homem, não pode haver bem maior”.
Podemos ver de que bem fala Santo Agostinho na sua Cidade de Deus. E diz São Crisóstomo:
“A glória é inconstante e vã e, nas coisas mais evidentes, cega o espírito dos que dela se enamoram. Poder-se-ia dizer que é uma espécie de embriaguez profunda, e esta paixão torna difícil a sensatez dos que são afetados por ela. Dá origem à avareza, à inveja, à calúnia e às suas perfídias; arma e enfurece aqueles que não receberam nenhum mal contra aqueles que não o fizeram; o homem afetado por esta doença não pode conhecer a amizade; ninguém o detém; rejeita o bem do seu coração; está em guerra com todos e não pode ter amigos. Cuidemos, pois, de nós próprios, meus queridos filhos, e tomemos este sentido de humildade que Deus nos deu; este sentido é a honra do Evangelho. Desprezemos a glória do mundo; nada nos torna tão vis e desprezíveis como esta paixão. A verdadeira glória consiste em desprezá-la e em não se preocupar com ela. O cristão orienta os seus atos e as suas palavras unicamente para o que agrada a Deus”.