sábado, 29 de julho de 2023

Vita Christi – IX Domingo depois de Pentecostes – Ludolfo da Saxônia, O.Cart.

 

Ao chegar a Jerusalém, Jesus dirige-se diretamente para o templo, onde entra. Notemos aqui que esta palavra: templo, no seu sentido estrito, significa a casa de Deus propriamente dita, e que estava dividida em duas partes, uma chamada lugar santo, Sanctum, onde se encontravam o altar dos sacrifícios todo coberto de ouro, a mesa das proposições e o candelabro de ouro; a outra parte chamava-se Santo dos Santos, e continha a Arca da Aliança e os dois querubins; só o sumo sacerdote tinha o direito de lá entrar, e mesmo assim só podia entrar uma vez por ano. Num sentido mais lato, o nome templo designava também uma grande praça quadrada, rodeada de muros, mas não coberta, onde se encontrava o altar dos holocaustos; só os sacerdotes e os levitas entravam aí para desempenharem as suas diversas funções relacionadas com os sacrifícios; o povo vinha à porta entregar nas mãos dos sacerdotes os objetos a oferecer. Finalmente, havia uma quarta parte onde o povo podia entrar para rezar. Este último lugar estava dividido em dois compartimentos: um reservado às mulheres e outro aos homens que vinham rezar; esta parte era também chamada templo. Foi aqui que Jesus entrou, tal como São Pedro e São João, de quem se diz no livro dos Atos dos Apóstolos que subiram ao templo para rezar. Diz São Beda:

“Jesus entrou no templo por três motivos: Em primeiro lugar, para nos ensinar, com o seu exemplo, que, quando entramos numa cidade, devemos primeiro, e acima de tudo, visitar a igreja para oferecer a Deus as nossas orações e recomendar-lhe as nossas pessoas e o sucesso dos nossos empreendimentos; em segundo lugar, porque este lugar, sendo público, seria facilmente encontrado; mostrando-nos assim que ele ia sofrer voluntariamente e não apesar de si próprio; em terceiro lugar, para nos ensinar que os sacerdotes, pela sua má conduta, eram a causa da ruína de Jerusalém, sobre a qual ele tinha chorado amargamente: o que ele manifestou de maneira ainda mais evidente, expulsando do templo aqueles que vendiam e negociavam vergonhosamente na casa do Senhor”.

De fato, os sacerdotes, cegos pela sua avareza, tinham colocado em cada uma das portas do templo cambistas e mercadores que vendiam todos os objetos que podiam ser oferecidos em sacrifício, de modo que aqueles que não apresentavam nada a estes sacerdotes indignos não podiam alegar qualquer pretexto, nem sequer podiam desculpar-se com a falta de dinheiro: pois havia ali pessoas dispostas a emprestar-lhes mediante um simples reconhecimento, ocultando assim o crime de usura estritamente proibido pela lei. Quantos cristãos ainda hoje, sob o véu da caridade, escondem a usura e a avareza! Diz São Crisóstomo:

“Jesus Cristo, ao ir ao templo, comporta-se como uma criança bem comportada. Não é dever de um bom filho visitar primeiro a casa do pai e apresentar os seus respeitos ao autor dos seus dias? Sigamos o seu exemplo; quando entrarmos numa cidade, dirijamo-nos primeiro à igreja, que é a morada do nosso Pai celeste”.

Jesus Cristo veio para curar a cidade de Jerusalém; como médico, ele vai à fonte e à origem do mal. Se todo o bem vem do templo ou da igreja, todo o mal também vem do templo ou da igreja. Quando um médico visita o seu paciente, primeiro examina cuidadosamente o estômago e procura restaurá-lo; pois quando está em boas condições, todo o corpo está saudável; se, pelo contrário, está afetado por uma doença grave, todo o corpo está em sofrimento. Do mesmo modo, se o clero é puro e sem mácula, toda a Igreja prospera; se, pelo contrário, é corrupta, a fé definha e a vida tende a extinguir-se. O coração e o estômago representam o sacerdócio, que comunica a vida espiritual a todo o povo. O coração é a sede da sabedoria; os sacerdotes são os vasos destinados a conservar as graças espirituais a serem derramadas sobre os fiéis. Assim como o estômago recebe os alimentos, digere-os e depois distribui os seus efeitos felizes aos outros membros, assim também os sacerdotes tiram das Sagradas Escrituras os conhecimentos espirituais, elaboram-nos pela reflexão e pela meditação, e distribuem-nos assim, todos preparados, aos fiéis confiados aos seus cuidados. Sacerdotes, vigiai cuidadosamente todas as vossas palavras e ações. Se um membro está ferido, o estômago não sofre; mas se o estômago está doente, todos os outros membros sofrem. Se um leigo cai em alguma falta grave, os sacerdotes não são culpados desse pecado e não são repreensíveis por ele; mas quando o sacerdote peca, todos os fiéis são arrastados para o mesmo pecado.

À vista de todos esses excessos, de todas essas profanações com que se sujava a casa de seu Pai celeste, Jesus Cristo, movido de santa cólera, tomou cordas que fez em chicote e expulsou vergonhosamente do templo os vendedores e os compradores, com todo o seu gado, derrubou as cadeiras e as mesas dos cambistas, espalhou as pombas e não deixou que se levasse para lá nenhum vaso que não fosse necessário e dedicado ao serviço divino. Diz São Beda:

“O Salvador ao banir do templo todos os vasos que não eram dedicados nem destinados ao uso do culto, quis nos ensinar que, no grande dia do juízo, ele expulsará de sua Igreja, isto é, do céu, todos os vasos, isto é, os homens que não foram empregados em seu serviço, e os proibirá de entrar para sempre, lançando-os na condenação eterna. Ele quis também mostrar-nos que tinha vindo a este mundo para purificar a consciência dos pecadores arrependidos, não só perdoando-lhes os pecados cometidos, mas também preservando-os, pela sua graça, de qualquer recaída no mal e ajudando-os a perseverar até ao fim na prática das virtudes cristãs”.

Diz São Teófilo:

“O Salvador já no início da sua vida pública tinha expulsado assim os mercadores do templo, e os judeus não tinham querido corrigir-se; neste dia renova esta primeira advertência, de uma maneira ainda mais rigorosa e contundente, para os fazer voltar à resignação”.

Acrescenta São Crisóstomo:

“Mas estes insensatos persistiram na sua cegueira funesta, e tornaram-se mais criminosos e indesculpáveis. Da primeira vez, Jesus tinha expulsado do templo apenas os vendedores, contentando-se em chamar-lhes mercadores, comerciantes indignos; hoje, expulsa também os compradores, que eram certamente mais numerosos, e chama-lhes todos ladrões e salteadores”.

Com o seu exemplo, quis mostrar aos pastores de almas que devem ser mais severos em relação aos pecados de recaída. De fato, o pecador que recai é mais culpado do que da primeira vez, mesmo em igualdade de circunstâncias, pois acrescenta o vício da ingratidão ao seu novo pecado. Diz São Crisóstomo:

“Em nenhum lugar do Evangelho vemos que Jesus Cristo se permitiu ser rigoroso e severo, exceto nesta circunstância. Suportar com paciência e resignação os insultos que recebemos é uma ação louvável; sofrer sem dizer uma palavra os que atacam Deus é impiedade”.

O nosso divino Mestre também suporta com mansidão e humildade os insultos que recebe, mas não pode esconder os que são dirigidos a Deus, seu Pai. Esta ação do Salvador foi uma vez representada na pessoa de Heliodoro: este guerreiro audacioso tinha ousado entrar no templo com uma força armada para se apoderar dos seus tesouros; dois anjos, enviados do céu, derrubaram-no por terra, feriram-no com golpes e deixaram-no quase morto na praça como castigo pelo seu crime. Heliodoro foi castigado por querer despojar o templo; os judeus foram castigados por terem escondido a sua avareza e os seus costumes infames.

Desta conduta do nosso divino Mestre, devemos tirar esta conclusão moral: Deus entra todos os dias no seu templo sagrado; aí nos vê, aí nos ouve, aí penetra nos pensamentos mais secretos do nosso coração; vigiemos, pois, cuidadosamente sobre nós mesmos e sobre todo o nosso exterior; não demos lugar a risos ridículos, a conversas inúteis, a pensamentos por vezes criminosos, a olhares indiscretos, para que, no momento em que menos pensemos nisso, ele não venha expulsar-nos da sua Igreja, isto é, do seu reino, e que, segundo Santo Agostinho, ouviremos estas terríveis palavras: “Amarrai-o de pés e mãos e lançai-o nas trevas exteriores”.

Ao expulsar assim da casa de Deus os bois, as ovelhas, os cambistas e os vendedores de pombas, Nosso Senhor quis ensinar aos prelados e aos chefes da Igreja que devem falar sempre com força contra os hipócritas, que se cobrem com a pele de ovelhas para enganar os simples; contra os ricos e os grandes do mundo, que, como bois com os seus chifres, procuram esmagar com o seu poder os pequenos e os pobres; contra os avarentos e os simoníacos, que não têm medo de vender os dons e as graças do Espírito Santo, representados pelas pombas. Criticou também a conduta dos clérigos e religiosos que abandonam os exercícios espirituais para se dedicarem a ocupações seculares ou a um ofício incompatível com o seu estado, e que assim incorrem na indignação de Deus e merecem ser ignominiosamente expulsos da Igreja. Ai de nós, quantos abusos indignos não vemos hoje na Igreja, que o Senhor teria punido severamente se os tivesse encontrado no templo de Jerusalém. Diz São Beda:

“O templo era destinado à oração e aos sacrifícios sagrados; era ali que se ensinava a palavra de Deus e se cantavam os seus louvores; é de crer, portanto, que só se vendessem ali os objetos usados no culto. Ora, se Jesus Cristo foi tão rigoroso contra os que vendiam no templo o que ali devia ser oferecido como sacrifício e cuja venda, boa em si mesma, era lícita em qualquer outro lugar, com que severidade não deveria tratar os cristãos indignos que, em nossos dias, se entregam na igreja a risos imoderados e indecentes, a conversas inúteis e muitas vezes escandalosas, e a ações que, más em si mesmas, não deveriam ser permitidas em lugar algum?”.

O templo, situado na parte mais alta de Jerusalém, é a figura da alma fiel de quem Jesus Cristo se aproxima pelos seus sacramentos, a quem visita interiormente pela sua graça, e em quem não deseja senão fazer a sua morada; mas, infelizmente, os obstáculos que encontrou outrora no templo de Jerusalém, encontra-os ainda hoje, mesmo no coração dos próprios religiosos. Esses obstáculos são: em primeiro lugar, a solicitude, a ânsia de adquirir e conservar os bens temporais, representados pelo dinheiro dos cambistas que Jesus espalhou por toda a parte. Não se conclua, porém, que toda a solicitude em relação às coisas temporais seja má e proibida; ela só é censurável na medida em que é levada longe demais, sobretudo entre os eclesiásticos e religiosos, pois então é colocar a criatura acima do Criador, preferindo os bens frágeis e perecíveis aos bens sólidos e eternos. Em segundo lugar, a falta de moderação no uso destes bens temporais e o medo excessivo de os perder, representado pelos bois expulsos do templo: assim como estes animais indiscriminados, entre as boas ervas de que se alimentam, podem facilmente comer algumas que lhes são nocivas, assim acontece por vezes que, sob o falso pretexto de usar apenas o necessário, caímos sem o suspeitar no supérfluo. Em terceiro lugar, o medo desordenado e excessivo de fazer a coisa errada, que muitas vezes aborta as nossas boas intenções e impede o nosso progresso no caminho da virtude; nisto somos como a ovelha tímida que se assusta pelo som do trovão quando está sozinha. Em quarto e último lugar, a lentidão, a negligência na execução dos bons propósitos e das boas resoluções, de que a pomba é o exemplo mais flagrante. Com efeito, é no preciso momento em que esta ave, indecisa e virando a cabeça de um lado para o outro, parece pensar em orientar o seu voo, que é atingida pelo chumbo do caçador ou agarrada pelo abutre. Assim, o cristão irresoluto e preguiçoso, ao hesitar em realizar os seus projetos, é abatido pela morte e lançado no inferno. Jesus Cristo, para afugentar da alma cristã esses diversos defeitos, arma-se com o tríplice chicote das mortificações corporais, das provações interiores e das inspirações salutares, e assim a reconduz ao verdadeiro caminho.

O nosso divino Salvador, ao expulsar do templo a multidão de vendedores, disse-lhes: “Está escrito no profeta Isaías: ‘A minha casa será chamada casa de oração, e não lugar de comércio, nem de roubo, nem de ostentação’”, ensinando-nos assim que devemos ir à igreja com plena confiança de que obteremos o que pedimos; pois por que razão nos mandaria Deus rezar ali, se não estivesse disposto a conceder-nos o objeto dos nossos pedidos? Ao dizer a minha casa, mostra também aos judeus que é verdadeiramente Deus, pois o templo é a única casa de Deus. Diz Santo Ambrósio:

“O Senhor quer que o seu templo seja uma casa de santidade e não um lugar de comércio”.

Diz Orígenes:

“Aqueles que entram nesta casa santa devem dedicar-se unicamente à oração e não ao comércio das coisas temporais”.

Diz Santo Agostinho:

“Quem entra num oratório só deve ocupar-se das ações a que está destinado, como indica o nome que tem. Mas, infelizmente, nos nossos dias, não poderíamos chamar à Igreja de Jesus Cristo uma casa de dissolução e de luxúria, em vez de uma casa de oração?”.

Nosso Senhor acrescenta: “E vós fizestes dela um covil de ladrões”. De fato, tal como os ladrões recolhem os frutos das suas pilhagens nos seus esconderijos subterrâneos, assim também os sacerdotes da Lei, fechados no templo, em vez de pensarem no culto de Deus, só pensavam em sobrecarregar o povo e enriquecer com os seus despojos. Quantos eclesiásticos seguem ainda hoje as suas pegadas; sem se preocuparem com as honras devidas a Deus, preocupam-se apenas com as vantagens temporais que resultam dos seus cargos. Quando os chefes dos ladrões veem que os transeuntes não oferecem grandes vantagens, guardam as suas cavernas e confiam aos seus criados e subordinados a tarefa de os assaltar; mas, se aparece uma grande multidão ou comerciantes ricos, saem eles próprios e atacam-nos para se apoderarem do saque. Não é isso que acontece também na Igreja? Se tiverem de fazer alguma coisa que dê muito dinheiro, saem eles próprios para a fazer; mas se o pagamento for pouco, deixam-na para os seus inferiores e ficam quietos nos seus palácios.

A Igreja de Deus tem quatro grandes e especiais finalidades: é um lugar de reconciliação para os pecadores, segundo as palavras do Génesis: “Esta é verdadeiramente a habitação de Deus e a porta do céu”; um lugar de oração para aqueles que começam a andar em justiça, como vemos aqui; um lugar de instrução para os perfeitos, segundo as palavras do profeta Isaías: “Finalmente, é uma casa de bênção, onde os fiéis se reúnem para glorificar a Deus e cantar os seus louvores”, como diz o profeta rei: “Bem-aventurados, Senhor, os que habitam na tua casa; cantarão eternamente os teus louvores”. Quatro tipos de pessoas fazem dela um antro de ladrões: os hereges, alterando e corrompendo o texto das Sagradas Escrituras; os simoníacos, vendendo as graças de Deus e os sacramentos; os ambiciosos, comprando lugares e benefícios a alto preço; finalmente os voluptuosos, dissipando os bens da Igreja em prazeres e gastos insensatos.

Quando Jesus entrou no templo, os cegos e os coxos, ouvindo o povo gritar de todos os lados: “Hosana, salva-nos”, aproximaram-se dele com confiança, e ele curou-os, cumprindo assim, com as suas obras, os louvores que lhe eram feitos. “Tendes razão” - parecia dizer-lhes – “em proclamar-me vosso Salvador, pois vim curar-vos de todos os vossos males”. Notemos aqui que o nosso divino Mestre, apesar das honras que recebeu e dos louvores que lhe foram feitos, não se afastou de modo algum dos direitos da justiça, pois vemo-lo expulsar sem piedade os profanadores do templo, e que, apesar de todo o seu amor pela justiça, não deixou de exercer a sua bondade e a sua misericórdia, curando os doentes. Com a sua conduta, quis mostrar aos juízes e prelados que nunca devem, apesar dos elogios e favores que possam receber, praticar a justiça em detrimento da misericórdia, nem praticar a bondade e a misericórdia em detrimento da justiça.

Mas os chefes dos sacerdotes e os fariseus, vendo os prodígios que o Salvador fazia e ouvindo o povo proclamá-lo como o Cristo que havia de vir, indignavam-se e tornavam-se cada vez mais ciosos da sua glória. Diz São Crisóstomo:

“Quanto mais o povo glorificava o nosso divino Redentor, mais os príncipes dos sacerdotes se indignavam; os maus, de fato, estão sempre angustiados com a prosperidade dos bons. Ficaram angustiados ao verem as honras concedidas àquele que, na sua malícia, blasfemavam como pecador público e enganador; cada louvor dado a Jesus Cristo era para eles uma punhalada nas costas”.

O medo que eles tinham da multidão os impediu de culpar abertamente os milagres do Salvador e também de O prender, por isso contentaram-se em dizer-lhe: “Não ouves o que as pessoas falam de ti? Se você fosse justo e bom, poderia tolerar tal linguagem?”. Jesus respondeu-lhes: “Sem dúvida o ouço e devo ouvi-lo; tudo isso é fruto da vontade divina anunciada pelos antigos profetas; não lês nos Salmos: ‘Tu fizeste uso, Senhor, da boca das crianças e dos pequeninos de peito para acrescentar a coroa à tua glória?’”. Como se lhes dissesse: “Vós, que sois os doutores da Lei, deveis conhecer as Sagradas Escrituras e, portanto, não podeis censurar-me nem reprovar-me”. Diz São Crisóstomo:

“Com esta expressão, crianças, usada no Evangelho, não se trata de lactentes amamentados, que certamente não teriam podido cantar os louvores do Salvador, mas de homens de coração simples que, não podendo suportar o pão dos fortes que percorrem os caminhos da justiça, se alimentaram dos milagres de Jesus como de um leite benéfico, proporcional à sua fraqueza”.

domingo, 9 de julho de 2023

Vita Christi – VI Domingo depois de Pentecostes – Ludolfo da Saxônia, O.Cart.

 


Então Jesus subiu a um monte e sentou-se. E veio ter com ele uma grande multidão, trazendo consigo mudos, cegos, coxos, aleijados e muitos outros doentes; e ele deitava-os aos seus pés e curava-os. Então a multidão ficou admirada, uma só palavra bastou àquele que tinha criado o mundo com uma só palavra, para curar todas essas enfermidades. Por isso todos glorificaram a Deus. Aqui o evangelista insinua um número de curas maior do que aquele que menciona. É assim que São João, no final do seu Evangelho, depois de ter tentado, mas em vão, contar tudo, declara a sua impotência para contar na íntegra as palavras e a vida milagrosa de Deus, é o que também observa São João Crisóstomo. Rábano Mauro diz:

“Jesus subiu a uma montanha para atrair as multidões às alturas divinas da sua palavra, e sentou-se aí para mostrar que o céu é o lugar de repouso que devemos procurar mais ainda do que as diversas curas materiais de que temos necessidade”.

Quando a multidão era muito numerosa, Jesus chamou os seus discípulos e disse-lhes: “Tende piedade desta gente, porque está comigo há três dias e não tem nada para comer”. Jesus convocou os discípulos por várias razões, diz São Jerónimo: em primeiro lugar, para dar aos mestres um exemplo de condescendência para com os seus subordinados; em segundo lugar, para mostrar aos discípulos que se tratava de um assunto importante e para concentrar a sua atenção no milagre que ia fazer. “Tenho pena deste povo” – segundo a Glosa, como homem, Jesus tem piedade daqueles que vai alimentar em Deus, operando um milagre que eles ganharam com três dias de apego à sua pessoa. Alguns deles tinham vindo de longe; mais uma razão para determinar a bondade divina e não mandar a multidão embora em jejum. O fervor do povo nunca tinha sido tão grande. A fama de Cristo espalhava-se por toda a parte. Para recompensar o fervor do povo, Jesus pergunta aos discípulos: “Quantos pães tendes?” Eles responderam que eram sete e Jesus ordenou-lhes que se sentassem, não na relva, como da primeira vez, mas no chão, porque era inverno, diz Orígenes, e era o dia da Epifania.

Quando Jesus pergunta aos seus discípulos quantos pães haviam, não é porque não sabia; é para nos dar uma ideia da sua sobriedade e dos seus discípulos, que apenas dispunham destes sete pães; é também para nos dar conta da grandeza e da simplicidade do milagre que se está a preparar. Tomando os sete pães e dando graças, partiu-os e deu-os aos seus discípulos para que os distribuíssem; e eles distribuíram-nos à multidão. Tinham também alguns peixinhos, e ele abençoou-os e mandou-os distribuir. Comeram e ficaram satisfeitos; e levaram sete cestos cheios do que sobraram. A economia do relato evangélico, ao dar-nos conta de um grande milagre, tem por objetivo iluminar com um exemplo divino a conduta dos cristãos, que devem dar graças a Deus e elevar-se assim acima do bruto que come ou rumina, porque toda a graça excelente e todo o dom perfeito vêm do alto e descem do Pai das luzes. Do mesmo modo, os sete cestos de fragmentos de pão recolhidos servem apenas para assinalar a grandeza do milagre e para nos ensinar que o supérfluo é devido aos pobres e deve ser-lhes reservado. Do ponto de vista místico, este milagre mostra que não podemos passar a nossa vida atual de forma proveitosa se não formos alimentados pela graça do nosso Redentor. A multidão espera três dias, porque a graça da fé cristã só nos chegou em terceiro lugar, isto é, depois da lei da natureza e da lei escrita, que precederam a lei da graça. Moralmente falando, o pão da alma é o conhecimento da verdade e o amor ao bem. Mas esse pão não se encontra no deserto do mundo. O pão do conhecimento do mundo está misturado com muitos erros, porque o sentido de muitas verdades escapa aos filhos dos homens. O pão do amor da criatura é amargo sem número; por isso Santo Agostinho diz:

“Toda a alma apegada às coisas perecíveis é infeliz enquanto pensa que as goza e cruelmente dilacerada pela sua perda, e não é este pão do conhecimento e do amor da criatura que a pode satisfazer”.

O fato de o Salvador ter partido o pão que deu aos seus discípulos para nos servirem é o emblema dos sacramentos que se deviam tornar o alimento dos cristãos através do ministério dos seus Apóstolos. O que Jesus faz aqui, através dos seus discípulos, na distribuição dos pães, fá-lo em toda a parte, nomeadamente na ressurreição de Lázaro, quando diz aos seus discípulos: “Solta-o e deixa-o ir”. Tudo se faz no Reino de Deus através do ministério dos Apóstolos e dos seus sucessores. São eles que nos levam à fé, são eles que nos reconciliam, dando-nos a absolvição dos nossos pecados, e são eles que nos fazem participar do banquete eucarístico.

A multiplicação dos pães foi real e não aparente; e houve, de fato, a criação de uma nova substância que se juntou à primeira; caso contrário, o milagre não teria produzido o efeito desejado. Santo Agostinho diz:

“Nada é mais absurdo do que pretender que uma coisa possa crescer sem qualquer adição de substância. Portanto, ministros do Senhor, esforcemo-nos por servir os outros pregando o pão que recebemos da ciência divina, para que, por nossa negligência, nenhum dos que nos foram confiados falhe no caminho e morra de fome. Os pecadores convertidos falham no caminho para a vida presente se a sua alma não receber constantemente o alimento da boa doutrina”.

Eis o que temos a dizer sobre esta multiplicação dos pães em comparação com a multiplicação dos cinco pães e dos dois peixes já descrita. A multiplicação dos cinco pães representa a doutrina do Antigo Testamento contida nos cinco livros de Moisés. Aqui, na multiplicação dos sete pães, vemos a doutrina do Novo Testamento dos sete dons do Espírito Santo. O mesmo milagre representa também as sete bem-aventuranças, os sete sacramentos e as sete virtudes principais, das quais três são teologais e quatro cardeais. Se os cinco pães eram de cevada, enquanto os sete pães eram de trigo puro, é porque a doutrina do Novo Testamento é mais deliciosa, mais elevada e mais clara do que a do Antigo Testamento. No milagre dos cinco pães, há dois peixes para representar as duas pessoas que davam de comer ao povo na Antiga Lei, o rei e o sumo sacerdote. No milagre dos sete pães, há um pequeno número de peixes pequenos, para representar os santos que foram afastados do fluxo deste mundo e que, afastados do tumulto das paixões, nos dão alimento espiritual com o exemplo da sua vida santa. São peixes pequenos por causa da sua humildade, e muito poucos em número, porque só o número de loucos é grande e há muitos chamados e poucos escolhidos. Estes homens temperam e acompanham os sete pães do Novo Testamento com o mais simples dos condimentos, que é a sua vida austera. No primeiro milagre, a multidão descansou e comeu a sua refeição sobre a relva; no segundo, a multidão sentou-se sobre a terra nua, para nos mostrar que a antiga lei prometia os bens da terra que a nova lei despreza ou coloca em segundo plano; para nos ensinar, em segundo lugar, que os hóspedes do Novo Testamento não têm outro desejo, segundo os preceitos do divino Mestre, senão o de desprezar as riquezas, os prazeres e a carne, que é erva perecível, para se agarrarem à pura verdade do Evangelho. No milagre dos cinco pães, havia cinco mil homens para alimentar, marcados pelos cinco sentidos a que estavam apegados. No milagre dos sete pães, havia quatro mil pessoas que representavam os quatro Evangelhos, as quatro virtudes cardeais e o grande número de filhos da Igreja que deviam vir ter com ele das quatro partes do mundo. Eram quatro mil homens, sem contar com as crianças que não estavam incluídas na antiga lei. Cristo deu de comer a todos, porque não nega a sua graça a ninguém. Agora os Apóstolos apanham os pedaços de pão para significar que há coisas que a multidão não pode praticar ou compreender e que são o alimento dos perfeitos; esta primeira razão é mística; uma segunda razão é de ordem natural; apanha-se simplesmente para dar aos pobres. Uma terceira razão para apanhar o supérfluo faz parte das duas ordens; apanha-se o supérfluo para dar e receber ao mesmo tempo; pois, ao dar aos pobres, recebe-se o fruto das bênçãos daqueles a quem se dá de comer. Nada é mais verdadeiro na vida do que esta reciprocidade dos bens temporais e espirituais. Já mostrámos as muitas diferenças entre os dois milagres. Ambos têm lugar numa montanha para nos mostrar a separação do mundo e para nos falar do céu resumido por Cristo e pelas Sagradas Escrituras. Estar ligado a Cristo durante três dias na montanha é estar ligado na sua pessoa ao dogma da Santíssima Trindade. Uma vez convertido, e depois de ter satisfeito a justiça divina pelos seus pecados, segundo as suas forças, é estar ligado a ela em pensamentos, palavras e ações. Santo Ambrósio diz:

“O alimento da graça celeste é concedido, mas repare a quem. Não é aos ociosos das grandes cidades, mas aos que procuram Cristo no deserto. São os que não desprezam Cristo que são recebidos por Ele. O Senhor Jesus partilha o seu alimento com todos. Não faz distinção entre os que o procuram, pois é o provedor de todos. Mas quando ele parte o pão e o dá aos seus discípulos para nos distribuírem, se não estendermos as mãos para o alimento que nos é oferecido, ficaremos pelo caminho; e a culpa será nossa e não daquele que tem piedade de nós e prepara a nossa porção. Mas Jesus só dá a porção àqueles que se agarram a ele no deserto e não se retiram no primeiro, no segundo ou no terceiro dia. Deus nunca nos quer mandar embora sem alimento; não é seu desígnio que passemos fome pelo caminho. Apeguemo-nos aos dogmas da fé. e Deus ficar zangado conosco, não desanime; não desanimemos na hora da culpa; nunca desista depois”.

Também diz Santo Ambrósio:

“Deus oferece à multidão apenas o necessário. Ele é parcimonioso sem ser avarento; ensina-nos a evitar a volúpia, porque é inimiga da alma e do corpo”.

Diz São João Crisóstomo:

“Nada é contrário, nada é tão mortal para o nosso corpo como a volúpia”.

Nada o derrota, nada o oprime, isto é, nada o corrompe como ela. Castiga-o agarrando-o pelos pés que o conduziram a orgias perniciosas; amarra-lhe as mãos para castigá-las por terem sido os ministros do ventre nos seus muitos apetites. Muitos até perderam a voz e a visão e entorpeceram a mente. Um pagão, falando como São João Crisóstomo, disse ao mais Lólio mais velho: “Despreze a voluptuosidade, ela prejudica, compra-se com dor”.

Voltemos a considerar o milagre do ponto de vista da mística e da vida religiosa: há o estado dos noviços ou principiantes, o dos professos, e depois dos professos ou acima deles, vêm os perfeitos. São Bernardo serve os sete pães do nosso Evangelho a cada um dos seus noviços. O primeiro pão é o da palavra, o mais substancial de todos, porque nele está a verdadeira vida do homem, porque o homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. O segundo pão que São Bernardo lhes oferece é o da obediência, pois de que serviria escutar a palavra de Deus se não quiséssemos conformar-nos a ela pela obediência? O terceiro pão é o da meditação; é o condimento necessário dos dois primeiros e o alimento incessante das nossas ações futuras. O quarto pão são as lágrimas, o mesmo pão que Davi tomou depois do seu pecado, durante o prolongamento do seu exílio na terra. O quinto pão é a obra de penitência, pão não menos necessário que os quatro primeiros, porque, segundo Santo Agostinho, não basta corrigir-se, abandonar os maus costumes, e mesmo deixar os bons para adotar melhores, se não se satisfaz a Deus e ao próximo pelas primeiras faltas cometidas. O sexto pão é uma alegria pacífica e abundante na vida comunitária e a igualdade de alma que é o destino não só dos religiosos de clausura, mas também dos que pertencem à mesma fé. O sétimo pão é o da Eucaristia; já falámos dele noutras ocasiões, pelo que não o abordaremos aqui. São Bernardo fala então dos sete pães que Deus lhe proporcionou na vida de clausura que professou. O primeiro é a libertação das armadilhas e das oportunidades de pecado que uma tal vida fora do mundo acarretava, e que se manifestava de duas maneiras: moral e materialmente. O segundo pão é a bondade mais sensível de Deus para com o pecador, cujo arrependimento ele espera com longanimidade. O terceiro pão é o próprio arrependimento, que decorre dessa inefável bondade ou longanimidade de Deus. O quarto pão é o da indulgência. O quinto pão é a continência. O sexto pão é a graça. Esta graça está toda no ódio ou detestação dos males passados, no desprezo dos bens presentes e no desejo dos bens da outra vida. O sétimo pão é a esperança absoluta dos bens celestes, fruto de uma consciência tranquila. Finalmente, os sete pães que Deus reserva para os perfeitos são os sete dons do Espírito Santo: I. o temor do Senhor; não um temor servil, que dificilmente é o pão dos noviços no caminho da salvação, mas um temor filial cheio de confiança; II. o dom da piedade; III. o dom da ciência; IV. o dom da fortaleza; V. o dom do conselho, espírito de conselho que segue felizmente o espírito de fortaleza, porque, segundo São Gregório, a força se desfaz onde não há espírito de conselho; porque quanto mais ele pode, mais o poder se apressa, se ele não tem o dom da moderação que deve acompanhá-lo em todos os lugares; e porque o espírito, que não tem dentro de si o dom do conselho, escapa para fora em desejos insensatos. VI. o espírito ou dom da inteligência, que também ilumina o espírito do conselho com uma luz mais elevada. O sétimo pão dos perfeitos é o dom da sabedoria, que se segue ao dom do entendimento e os resume a todos. A sabedoria é definida como um conhecimento vivo e penetrante de todas as ciências divinas e humanas.