domingo, 9 de julho de 2023

Vita Christi – VI Domingo depois de Pentecostes – Ludolfo da Saxônia, O.Cart.

 


Então Jesus subiu a um monte e sentou-se. E veio ter com ele uma grande multidão, trazendo consigo mudos, cegos, coxos, aleijados e muitos outros doentes; e ele deitava-os aos seus pés e curava-os. Então a multidão ficou admirada, uma só palavra bastou àquele que tinha criado o mundo com uma só palavra, para curar todas essas enfermidades. Por isso todos glorificaram a Deus. Aqui o evangelista insinua um número de curas maior do que aquele que menciona. É assim que São João, no final do seu Evangelho, depois de ter tentado, mas em vão, contar tudo, declara a sua impotência para contar na íntegra as palavras e a vida milagrosa de Deus, é o que também observa São João Crisóstomo. Rábano Mauro diz:

“Jesus subiu a uma montanha para atrair as multidões às alturas divinas da sua palavra, e sentou-se aí para mostrar que o céu é o lugar de repouso que devemos procurar mais ainda do que as diversas curas materiais de que temos necessidade”.

Quando a multidão era muito numerosa, Jesus chamou os seus discípulos e disse-lhes: “Tende piedade desta gente, porque está comigo há três dias e não tem nada para comer”. Jesus convocou os discípulos por várias razões, diz São Jerónimo: em primeiro lugar, para dar aos mestres um exemplo de condescendência para com os seus subordinados; em segundo lugar, para mostrar aos discípulos que se tratava de um assunto importante e para concentrar a sua atenção no milagre que ia fazer. “Tenho pena deste povo” – segundo a Glosa, como homem, Jesus tem piedade daqueles que vai alimentar em Deus, operando um milagre que eles ganharam com três dias de apego à sua pessoa. Alguns deles tinham vindo de longe; mais uma razão para determinar a bondade divina e não mandar a multidão embora em jejum. O fervor do povo nunca tinha sido tão grande. A fama de Cristo espalhava-se por toda a parte. Para recompensar o fervor do povo, Jesus pergunta aos discípulos: “Quantos pães tendes?” Eles responderam que eram sete e Jesus ordenou-lhes que se sentassem, não na relva, como da primeira vez, mas no chão, porque era inverno, diz Orígenes, e era o dia da Epifania.

Quando Jesus pergunta aos seus discípulos quantos pães haviam, não é porque não sabia; é para nos dar uma ideia da sua sobriedade e dos seus discípulos, que apenas dispunham destes sete pães; é também para nos dar conta da grandeza e da simplicidade do milagre que se está a preparar. Tomando os sete pães e dando graças, partiu-os e deu-os aos seus discípulos para que os distribuíssem; e eles distribuíram-nos à multidão. Tinham também alguns peixinhos, e ele abençoou-os e mandou-os distribuir. Comeram e ficaram satisfeitos; e levaram sete cestos cheios do que sobraram. A economia do relato evangélico, ao dar-nos conta de um grande milagre, tem por objetivo iluminar com um exemplo divino a conduta dos cristãos, que devem dar graças a Deus e elevar-se assim acima do bruto que come ou rumina, porque toda a graça excelente e todo o dom perfeito vêm do alto e descem do Pai das luzes. Do mesmo modo, os sete cestos de fragmentos de pão recolhidos servem apenas para assinalar a grandeza do milagre e para nos ensinar que o supérfluo é devido aos pobres e deve ser-lhes reservado. Do ponto de vista místico, este milagre mostra que não podemos passar a nossa vida atual de forma proveitosa se não formos alimentados pela graça do nosso Redentor. A multidão espera três dias, porque a graça da fé cristã só nos chegou em terceiro lugar, isto é, depois da lei da natureza e da lei escrita, que precederam a lei da graça. Moralmente falando, o pão da alma é o conhecimento da verdade e o amor ao bem. Mas esse pão não se encontra no deserto do mundo. O pão do conhecimento do mundo está misturado com muitos erros, porque o sentido de muitas verdades escapa aos filhos dos homens. O pão do amor da criatura é amargo sem número; por isso Santo Agostinho diz:

“Toda a alma apegada às coisas perecíveis é infeliz enquanto pensa que as goza e cruelmente dilacerada pela sua perda, e não é este pão do conhecimento e do amor da criatura que a pode satisfazer”.

O fato de o Salvador ter partido o pão que deu aos seus discípulos para nos servirem é o emblema dos sacramentos que se deviam tornar o alimento dos cristãos através do ministério dos seus Apóstolos. O que Jesus faz aqui, através dos seus discípulos, na distribuição dos pães, fá-lo em toda a parte, nomeadamente na ressurreição de Lázaro, quando diz aos seus discípulos: “Solta-o e deixa-o ir”. Tudo se faz no Reino de Deus através do ministério dos Apóstolos e dos seus sucessores. São eles que nos levam à fé, são eles que nos reconciliam, dando-nos a absolvição dos nossos pecados, e são eles que nos fazem participar do banquete eucarístico.

A multiplicação dos pães foi real e não aparente; e houve, de fato, a criação de uma nova substância que se juntou à primeira; caso contrário, o milagre não teria produzido o efeito desejado. Santo Agostinho diz:

“Nada é mais absurdo do que pretender que uma coisa possa crescer sem qualquer adição de substância. Portanto, ministros do Senhor, esforcemo-nos por servir os outros pregando o pão que recebemos da ciência divina, para que, por nossa negligência, nenhum dos que nos foram confiados falhe no caminho e morra de fome. Os pecadores convertidos falham no caminho para a vida presente se a sua alma não receber constantemente o alimento da boa doutrina”.

Eis o que temos a dizer sobre esta multiplicação dos pães em comparação com a multiplicação dos cinco pães e dos dois peixes já descrita. A multiplicação dos cinco pães representa a doutrina do Antigo Testamento contida nos cinco livros de Moisés. Aqui, na multiplicação dos sete pães, vemos a doutrina do Novo Testamento dos sete dons do Espírito Santo. O mesmo milagre representa também as sete bem-aventuranças, os sete sacramentos e as sete virtudes principais, das quais três são teologais e quatro cardeais. Se os cinco pães eram de cevada, enquanto os sete pães eram de trigo puro, é porque a doutrina do Novo Testamento é mais deliciosa, mais elevada e mais clara do que a do Antigo Testamento. No milagre dos cinco pães, há dois peixes para representar as duas pessoas que davam de comer ao povo na Antiga Lei, o rei e o sumo sacerdote. No milagre dos sete pães, há um pequeno número de peixes pequenos, para representar os santos que foram afastados do fluxo deste mundo e que, afastados do tumulto das paixões, nos dão alimento espiritual com o exemplo da sua vida santa. São peixes pequenos por causa da sua humildade, e muito poucos em número, porque só o número de loucos é grande e há muitos chamados e poucos escolhidos. Estes homens temperam e acompanham os sete pães do Novo Testamento com o mais simples dos condimentos, que é a sua vida austera. No primeiro milagre, a multidão descansou e comeu a sua refeição sobre a relva; no segundo, a multidão sentou-se sobre a terra nua, para nos mostrar que a antiga lei prometia os bens da terra que a nova lei despreza ou coloca em segundo plano; para nos ensinar, em segundo lugar, que os hóspedes do Novo Testamento não têm outro desejo, segundo os preceitos do divino Mestre, senão o de desprezar as riquezas, os prazeres e a carne, que é erva perecível, para se agarrarem à pura verdade do Evangelho. No milagre dos cinco pães, havia cinco mil homens para alimentar, marcados pelos cinco sentidos a que estavam apegados. No milagre dos sete pães, havia quatro mil pessoas que representavam os quatro Evangelhos, as quatro virtudes cardeais e o grande número de filhos da Igreja que deviam vir ter com ele das quatro partes do mundo. Eram quatro mil homens, sem contar com as crianças que não estavam incluídas na antiga lei. Cristo deu de comer a todos, porque não nega a sua graça a ninguém. Agora os Apóstolos apanham os pedaços de pão para significar que há coisas que a multidão não pode praticar ou compreender e que são o alimento dos perfeitos; esta primeira razão é mística; uma segunda razão é de ordem natural; apanha-se simplesmente para dar aos pobres. Uma terceira razão para apanhar o supérfluo faz parte das duas ordens; apanha-se o supérfluo para dar e receber ao mesmo tempo; pois, ao dar aos pobres, recebe-se o fruto das bênçãos daqueles a quem se dá de comer. Nada é mais verdadeiro na vida do que esta reciprocidade dos bens temporais e espirituais. Já mostrámos as muitas diferenças entre os dois milagres. Ambos têm lugar numa montanha para nos mostrar a separação do mundo e para nos falar do céu resumido por Cristo e pelas Sagradas Escrituras. Estar ligado a Cristo durante três dias na montanha é estar ligado na sua pessoa ao dogma da Santíssima Trindade. Uma vez convertido, e depois de ter satisfeito a justiça divina pelos seus pecados, segundo as suas forças, é estar ligado a ela em pensamentos, palavras e ações. Santo Ambrósio diz:

“O alimento da graça celeste é concedido, mas repare a quem. Não é aos ociosos das grandes cidades, mas aos que procuram Cristo no deserto. São os que não desprezam Cristo que são recebidos por Ele. O Senhor Jesus partilha o seu alimento com todos. Não faz distinção entre os que o procuram, pois é o provedor de todos. Mas quando ele parte o pão e o dá aos seus discípulos para nos distribuírem, se não estendermos as mãos para o alimento que nos é oferecido, ficaremos pelo caminho; e a culpa será nossa e não daquele que tem piedade de nós e prepara a nossa porção. Mas Jesus só dá a porção àqueles que se agarram a ele no deserto e não se retiram no primeiro, no segundo ou no terceiro dia. Deus nunca nos quer mandar embora sem alimento; não é seu desígnio que passemos fome pelo caminho. Apeguemo-nos aos dogmas da fé. e Deus ficar zangado conosco, não desanime; não desanimemos na hora da culpa; nunca desista depois”.

Também diz Santo Ambrósio:

“Deus oferece à multidão apenas o necessário. Ele é parcimonioso sem ser avarento; ensina-nos a evitar a volúpia, porque é inimiga da alma e do corpo”.

Diz São João Crisóstomo:

“Nada é contrário, nada é tão mortal para o nosso corpo como a volúpia”.

Nada o derrota, nada o oprime, isto é, nada o corrompe como ela. Castiga-o agarrando-o pelos pés que o conduziram a orgias perniciosas; amarra-lhe as mãos para castigá-las por terem sido os ministros do ventre nos seus muitos apetites. Muitos até perderam a voz e a visão e entorpeceram a mente. Um pagão, falando como São João Crisóstomo, disse ao mais Lólio mais velho: “Despreze a voluptuosidade, ela prejudica, compra-se com dor”.

Voltemos a considerar o milagre do ponto de vista da mística e da vida religiosa: há o estado dos noviços ou principiantes, o dos professos, e depois dos professos ou acima deles, vêm os perfeitos. São Bernardo serve os sete pães do nosso Evangelho a cada um dos seus noviços. O primeiro pão é o da palavra, o mais substancial de todos, porque nele está a verdadeira vida do homem, porque o homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. O segundo pão que São Bernardo lhes oferece é o da obediência, pois de que serviria escutar a palavra de Deus se não quiséssemos conformar-nos a ela pela obediência? O terceiro pão é o da meditação; é o condimento necessário dos dois primeiros e o alimento incessante das nossas ações futuras. O quarto pão são as lágrimas, o mesmo pão que Davi tomou depois do seu pecado, durante o prolongamento do seu exílio na terra. O quinto pão é a obra de penitência, pão não menos necessário que os quatro primeiros, porque, segundo Santo Agostinho, não basta corrigir-se, abandonar os maus costumes, e mesmo deixar os bons para adotar melhores, se não se satisfaz a Deus e ao próximo pelas primeiras faltas cometidas. O sexto pão é uma alegria pacífica e abundante na vida comunitária e a igualdade de alma que é o destino não só dos religiosos de clausura, mas também dos que pertencem à mesma fé. O sétimo pão é o da Eucaristia; já falámos dele noutras ocasiões, pelo que não o abordaremos aqui. São Bernardo fala então dos sete pães que Deus lhe proporcionou na vida de clausura que professou. O primeiro é a libertação das armadilhas e das oportunidades de pecado que uma tal vida fora do mundo acarretava, e que se manifestava de duas maneiras: moral e materialmente. O segundo pão é a bondade mais sensível de Deus para com o pecador, cujo arrependimento ele espera com longanimidade. O terceiro pão é o próprio arrependimento, que decorre dessa inefável bondade ou longanimidade de Deus. O quarto pão é o da indulgência. O quinto pão é a continência. O sexto pão é a graça. Esta graça está toda no ódio ou detestação dos males passados, no desprezo dos bens presentes e no desejo dos bens da outra vida. O sétimo pão é a esperança absoluta dos bens celestes, fruto de uma consciência tranquila. Finalmente, os sete pães que Deus reserva para os perfeitos são os sete dons do Espírito Santo: I. o temor do Senhor; não um temor servil, que dificilmente é o pão dos noviços no caminho da salvação, mas um temor filial cheio de confiança; II. o dom da piedade; III. o dom da ciência; IV. o dom da fortaleza; V. o dom do conselho, espírito de conselho que segue felizmente o espírito de fortaleza, porque, segundo São Gregório, a força se desfaz onde não há espírito de conselho; porque quanto mais ele pode, mais o poder se apressa, se ele não tem o dom da moderação que deve acompanhá-lo em todos os lugares; e porque o espírito, que não tem dentro de si o dom do conselho, escapa para fora em desejos insensatos. VI. o espírito ou dom da inteligência, que também ilumina o espírito do conselho com uma luz mais elevada. O sétimo pão dos perfeitos é o dom da sabedoria, que se segue ao dom do entendimento e os resume a todos. A sabedoria é definida como um conhecimento vivo e penetrante de todas as ciências divinas e humanas.