sábado, 10 de fevereiro de 2024

Vita Christi – Da cura do cego de Jericó – Ludolfo da Saxônia, O.Cart.

 


Jesus Cristo, porém, aproximava-se de Jericó (essa cidade está situada entre a Galileia e Jerusalém, cerca de sete léguas a leste da qual o Salvador se dirigiu). Tal cidade, outrora florescente, foi completamente destruída, exceto pela casa de Raab, que permanece entre as ruínas em memória do serviço que essa mulher prestou aos enviados de Josué. Não muito longe dali, há uma fonte cujas águas amargas se tornaram potáveis pela oração do profeta Eliseu, ela nasce no sopé da montanha em que Jesus passou quarenta dias e quarenta noites jejuando e orando e, depois de um percurso de cerca de duas milhas, chega a banhar as muralhas de Jericó. Foi, pois, para este lugar que o Salvador dirigiu os seus passos, a fim de curar, segundo São Jerônimo, os doentes que ali se encontravam em grande número. Então, um cego que estava sentado à beira do caminho a pedir esmola, ouvindo o barulho da multidão e prevendo que era o Salvador que passava, começou a gritar bem alto do coração e da boca: “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim”. Diz São Cirilo:

“Este cego foi educado na Lei de Moisés, não ignorava, portanto, que o Messias, segundo a carne, devia vir da família de Davi”.

Por isso, dirigindo-se a Ele, disse “Jesus, filho de Davi”, pois sabia também que este Messias seria Deus, por isso acrescenta: “Tem piedade de mim”, porque só Deus tem piedade das suas criaturas, como diz o salmista: “As misericórdias do Senhor estendem-se a todas as obras das suas mãos” e assim anunciava a humanidade e a divindade na única pessoa do Salvador. A multidão, porém, não querendo perder nada das instruções de Jesus, repreende-o e manda-o calar, mas este infeliz, temendo que a sua voz fosse abafada pelas queixas do povo, grita ainda mais alto: “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim”. Então o Salvador, compadecido, parou, porque o cego não podia segui-lo, e fê-lo aproximar-se de si, mostrando-nos assim como devemos nos comportar em relação aos infelizes.

Diz São Cirilo:

A oração inspirada por uma fé viva tem o poder de deter Jesus Cristo, que se compraz em ouvir aqueles que o invocam com confiança”

Ele traz este cego até ele como recompensa pelo ardor da sua fé. Que belo exemplo para os governantes da Terra! Não deveriam eles, como o Salvador, trazer os pobres para perto de si, para ouvir as suas queixas e pedidos e atender às suas justas reivindicações? Jesus perguntou-lhe o que queria, não porque não o soubesse, mas para lhe dar a oportunidade de renovar a sua oração e de o fazer desejar cada vez mais a cura que estava disposto a dar-lhe, porque Deus não nos salva contra a nossa vontade ou sem o nosso consentimento. Diz Santo Ambrósio:

“Embora Deus queira a salvação de todos os homens, não os salva a todos, mas apenas aqueles que voltam para ele e o imploram”.

Diz Santo Agostinho:

“Aquele que te criou sem ti, não te justificará sem ti”.

Admiremos aqui a infinita bondade e a extrema humildade do nosso divino Mestre, que não desdenha se deter à voz de um pobre cego, chamá-lo para junto de si e perguntar-lhe com doçura o que deseja. “Senhor”, responde ele, “faz-me ver”. Então Jesus, com aquela voz poderosa que tirou todas as criaturas do nada, disse-lhe: “Vê, a tua fé te salvou”. Ele ficou curado imediatamente e seguiu-o, glorificando a Deus. Uma só palavra bastou para realizar esta cura, querendo o Senhor com ela manifestar o poder da sua divindade e glorificar também a fé ardente e meritória daquele que era objeto do milagre. Diz São Cirilo:

“A fé nos dá a saúde da alma e do corpo, como vemos neste cego que foi curado da sua dupla cegueira, física e espiritual; porque, se a sua mente não tivesse sido iluminada pela graça, não teria proclamado assim a divindade do Salvador”.

Não só foi iluminado interiormente, mas também se tornou uma ocasião para os outros glorificarem o Senhor, por isso o Evangelho acrescenta: “Ao verem isto, as pessoas louvaram a Deus, bendizendo-o pelo milagre que acabava de se realizar aos seus olhos e agradecendo-lhe a cura que tinham obtido”. Deus, de fato, em todas as suas obras, reserva apenas a glória para si, como diz pelo profeta Isaías: “Não darei a minha glória a outrem”, mas todos os benefícios que dela resultam são para as suas criaturas". Diz São Gregório:

“O Salvador fez este milagre para reavivar e fortalecer a fé dos seus apóstolos, que, ainda carnais e imperfeitos, não compreendiam as coisas espirituais”.

Diz São Teófilo:

“Para que a passagem do Salvador não fosse inútil, ele fez no caminho o milagre do cego, dando aos seus discípulos este testemunho, para que que nos esforcemos sempre por fazer coisas úteis e que não haja nada de ocioso em nós”.

Este cego curado por Jesus Cristo no caminho de Jericó é, segundo São Gregório, a imagem de todo o gênero humano. De fato, os homens, pelo pecado do seu primeiro pai, tinham perdido a compreensão das coisas divinas e tinham sido lançados nas trevas da condenação. Deus, movido pela compaixão, reveste-se então da nossa mortalidade, de todas as nossas misérias, e vem restituir a luz e a vista a estes pobres cegos, pois é verdadeiramente cego quem está privado do conhecimento das coisas divinas. Aquele, pois, que reconhece as trevas em que definha e a cegueira espiritual de que padece, clame a Deus, dirija-se a Ele, a exemplo do nosso cego, dizendo-Lhe com a boca e com o coração, e mais ainda com o coração do que com a boca: “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim”. Aqueles que precederam Jesus e que quiseram impedir o cego de gritar, representam-nos a multidão das nossas paixões e dos nossos desejos carnais, que vêm incessantemente atravessar as nossas boas resoluções, perturbar as nossas orações, murmurar à nossa volta, para que Jesus Cristo não ouça a nossa voz e venha, por inspirações salutares e pela luz da sua graça, iluminar-nos espiritualmente. Mas quanto mais obstáculos encontrarmos, tanto mais devemos, como o cego, redobrar os nossos esforços e levantar a voz. Diz São Jerônimo:

“Muitos impedem este infeliz cego de gritar; são as nossas paixões e os demônios juntos que tentam abafar as nossas orações, mas então devemos gritar ainda mais alto, porque quanto mais terrível se torna a guerra, quanto mais se redobram os esforços do inimigo, tanto mais, como Moisés, devemos levantar as mãos ao céu para obter um pronto socorro”.

Diz São Cirilo:

“A multidão queria impedir o cego de gritar, mas os impedimentos só serviram para aumentar a sua coragem. A verdadeira fé resiste a tudo e triunfa sobre todos os obstáculos. Quando se trata de servir a Deus, toda a vergonha deve ser espezinhada”.

Se não se envergonham quando se trata de acumular riquezas, porque havemos enrubescer quando se trata de salvar a nossa alma?

Ao primeiro grito do cego – diz o Evangelho – Jesus passou ao lado dele, mas quando o ouviu gritar pela segunda vez, parou. Do mesmo modo, quando, durante a oração, a nossa mente se preocupa com os vãos prazeres do mundo e se entrega a dissipações e distrações de toda a espécie, Jesus passa sem olhar para nós, mas se, lutando contra nós próprios, perseveramos com coragem, então ele entra no nosso coração e devolve-nos a luz que tínhamos perdido. O Salvador pergunta ao cego o que é que ele quer, embora o saiba. Também Deus não nos quer conceder nada se não o tivermos merecido, por assim dizer, ou pelo menos se não o tivermos pedido com fervor e incessantemente. Pedi, diz-nos Ele, e recebereis, buscai e encontrareis, batei e abrir-se-vos-á. Vemos novamente no pedido deste cego o que deve ser o objetivo principal de todas as nossas orações a Deus: não são os bens, nem os tesouros, nem as honras efêmeras deste mundo, nem os dias longos, nem a vingança dos nossos inimigos, nem outras vantagens temporais de qualquer espécie, que devemos desejar, mas apenas a luz divina que ilumina todo o homem que vem a este mundo, segundo esta frase do divino Mestre: “Procurai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o resto vos será dado como de graça”. A fé é o único caminho que nos pode conduzir a esta luz divina, como foi dito ao cego: “A tua fé te salvou”. Quando ficou curado, o nosso cego seguiu o Salvador e nunca mais o deixou. Do mesmo modo, quanto mais somos iluminados pelas luzes divinas, quanto mais somos cumulados de graças e favores de Deus, tanto mais ardentemente nos devemos dedicar à prática das boas obras e encorajar os outros a seguirem-nos no caminho da virtude. Diz São Gregório:

“Tenhamos sempre os olhos fixos no nosso divino modelo, e esforcemo-nos por seguir as suas pegadas. Ele, o Mestre do céu e o Criador dos anjos, não teve medo de descer ao seio de uma virgem para se revestir da nossa mortalidade e das nossas misérias, quis renunciar a todas as vantagens do mundo e nascer de pais pobres, abraçou o opróbrio e a ignomínia. Foi flagelado, coroado de espinhos e amarrado à cruz, ensinando-nos assim que, se o homem caiu do céu pela sua excessiva afeição às coisas perecíveis, só pode ressuscitar passando pelas amarguras da penitência. Se um Deus sofreu tanto pelos homens, o que é que os homens não hão de sofrer em seu próprio benefício? Se queremos partilhar com o nosso chefe as alegrias e as honras do triunfo, temos de partilhar com ele as dores e as fadigas do combate”.

Esta cura do cego de Jericó pode ser aplicada também a cada um dos pecadores. De fato, o homem que cometeu um pecado mortal perdeu verdadeiramente a luz da inteligência e da razão, está cego no sentido espiritual. Se ele quer voltar ao caminho da verdade, que é o único que o pode conduzir à felicidade eterna, tem que lamentar amargamente das suas faltas, se dirigir a Deus e implorar com lágrimas a graça e a misericórdia, sentar à beira da estrada e pedir esmola. Os transeuntes tentam silenciá-lo. Com efeito, as tentações da carne, o demônio, o mundo e os seus maus hábitos conspiram todos juntos para o desviar dos seus bons propósitos e para o impedir de fazer penitência, mas quanto mais os seus inimigos redobrarem os seus esforços, mais ele deve também redobrar o seu ardor nas suas orações e clamar a Deus, clame então bem alto para que seja ouvido, pois o Senhor está muito longe dele. Diz Hugo de São Vítor:

“No entanto se Deus não se comove com as suas primeiras lágrimas, se não atende aos seus primeiros pedidos, não desanime, não deixe de o implorar com fervor; os grandes dons só se obtêm com grandes esforços”.

Não se deve, porém, presumir dos seus próprios méritos, mas abandonar-se com toda a confiança nos braços deste Pai cheio de ternura e de misericórdia. Então Deus, que a princípio parecia não o ter ouvido, aproximar-se-á dele, restituirá a calma e a paz ao seu coração perturbado, e aí fará a sua morada, dando-lhe a provar a doçura da contemplação. Assim, o pecador não se deixa abater por um desespero fatal, volta sinceramente para Deus, que está sempre pronto a recebê-lo e será salvo.