I
Peregrinação
é desamparar com toda constância tudo quanto nos impede o propósito e exercício
de piedade, que é louvar e buscar a Deus. Peregrinação é um coração vazio de
toda a vã confiança, sabedoria não conhecida, prudência secreta, fugida do
mundo, vida invisível, propósito não revelado, amor do desprezo, apetite de
angústias, desejo do divino amor, abundância de caridade, aborrecimento de
passar como sábio ou como santo e um profundo silêncio da alma. Soe[1] muitas
vezes, ao princípio fatigar aos servos de Deus esta maneira de vida tão árdua e
vai se acalmando o fogo deste desejo de afastar-se da pátria e dos seus, desejo
que provoca a ser afligidos e desprezados por amor de Deus, mas é de notar que,
por maior e mais louvável que seja esta peregrinação, deve ela, por isso mesmo,
ser examinada com toda a atenção.
Consideremos
que, como diz o Salvador: “ninguém é
louvado como profeta entre os seus e em sua pátria”, e vejamos que não seja
para nós ocasião de vanglória a peregrinação e saída da pátria. A peregrinação
verdadeira é uma perfeita separação de todas as coisas, com intento de jamais,
tanto quanto seja possível, separar de Deus o nosso pensamento. Peregrino é
amador de perpétuo pranto, arraigado nas entranhas pela memória de seu Criador.
Peregrino é aquele que despede e expele sempre a memória e afeição de todos os
seus, enquanto são impedimento para ir a Deus.
Quando
te determinares a peregrinar e a apartar-te a soledade, não te detenhas no
mundo à espera de levar contigo as almas dos que estão ainda presos a ele, pois
pode acontecer que, durante este tempo, te assalte o inimigo e arrebate o teu
bom propósito. Muitos tem havido que, pretendendo levar consigo alguns destes
preguiçosos e negligentes, pereceram juntamente com eles, apagando-lhes com a
dilação a chama deste divino fogo e divina inspiração. E, por isso, logo que
sentires em ti esta chama, corre apressadamente, porque não sabes se se apagará
tão depressa, de sorte que fiques às escuras. Nem todos nós somos obrigados a
salvar os outros, porque, como diz o Apóstolo: “cada um responde a Deus por si” e, em outro lugar, diz: “Tu que ensinas a outros, como não te
ensinas a ti mesmo?”. Isto é como se dissera: As necessidades e obrigações
dos outros, não as conhecem todos, mas as próprias, cada um as conhece e assim
é obrigado a acudir a elas.
Tu, que
te determinar a peregrinar, guarda-te do demônio guloso e vagabundo, isto é,
daquele que, com título de peregrinação, pretende cevar a curiosidade e o
apetite da gula, contando com os convites e hospedagens que achará em diversos
lugares, visto que a peregrinação soe dar ocasião a este demônio. Grande coisa
é haver mortificado a afeição de todas as coisas perecíveis e a peregrinação é
a mãe dessa virtude. Aqueles que, por amor de Deus, andam peregrinando, hão de
deixar todos os afetos do século e estar como mortos para suas coisas, a fim de
que não pareçam, por uma parte, apartados do mundo e, por outra, presos às suas
afeições. Aqueles que se afastaram do século, não mais queiram ter qualquer
relação com o século, porque muitas vezes os vícios, que de muito tempo estão
adormecidos, facilmente costumam despertar. Nossa mãe Eva, contra sua vontade
saiu do paraíso, mas o monge, pela sua, se desterrou de sua pátria. Aquela foi
expulsa, a fim de que não voltasse a comer da árvore da desobediência; este,
para não padecer perigo de seus incentivos carnais, foge, como de um açoite, da
vizinhança destes lugares do mundo, porque o fruto que não se vê com os olhos,
não move tanto o coração.
Também
quereria que não ignorasses outra maneira de engano, de que usam demônios,
muitas vezes eles nos aconselham que não nos apartemos dos seculares,
dizendo-nos que maior coroa será, se, vendo mulheres e andando no meio dos laços,
escaparmos deles, vivendo limpamente, lutando com as nossas paixões e
vencendo-as.
Depois de haver peregrinado
alguns anos fora de nossa pátria e de haver alcançado um pouco de religião ou
de compunção, ou de abstinência, logo os demônios começam a combater-nos com
alguns pensamentos de vaidade, incitando-nos a regressar a nossa pátria, para
edificação e exemplo de todos aqueles que antes nos viram viver
desordenadamente no século. Se, porventura, temos algumas letras, ou alguma
graça no falar, então nos apertam mais fortemente, incitando-nos a voltar ao
século para guardar as nossas almas e as almas dos outros; e, deste modo,
conseguem que a fazenda que no porto adquirimos com trabalho, no mar alto a
percamos. Não imitemos a mulher de Ló, mas ao mesmo Ló, porque a alma que
voltar ao lugar donde saiu, ficará como uma estátua que não se move e
dissolver-se-á como sal, antes que outra vez possa facilmente voltar a Deus.
Foge do Egito, e de tal maneira fujas, que nunca mais voltes, porque os
corações que a eles voltaram, não gozaram daquela quietíssima e pacífica terra
de Jerusalém. Contudo, não é mau que aqueles que, no princípio de sua
conversão, deixaram a pátria e todas as coisas com ela, para conservarem-se na
infância de sua profissão e fechar a porta a tudo quanto a pudesse prejudicar
voltem a ela, depois de confirmados e adiantados na virtude e perfeitamente
purgados, a fim de faze outros participantes da salvação que alcançaram, pois,
aquele grande Moisés, que viu a Deus e foi escolhido para procurar a salvação
de sua gente, muitos perigos passou no Egito e muitas aflições e trabalhos
passou neste mundo por essa causa.
Peregrino é aquele que, como
homem de outra língua e morador em uma nação estrangeira, entre gente desconhecida,
vive somente consigo e no conhecimento de si mesmo. Ninguém pense que desamparamos
nossa pátria e nossos parentes porque os aborreçamos (jamais Deus queira que
tal seja a nossa intenção), mas para fugir ao dano que de sua parte possa vir.
Nisto temos, como em tudo o mais a doutrina e o exemplo do nosso Divino
Salvador, que muitas vezes desamparou a seus pais; e, sendo-lhe dito por alguns
que procurasse sua mãe e seus irmãos, logo o Mestre nos ensinou este santo ódio
e liberdade de coração, dizendo “Minha
mãe e meus irmãos são os que fazem a vontade de meu Pai, que está nos Céus”.
Seja teu pai aquele que pode e quer trabalhar contigo e ajudar-te a descarregar
a carga de teus pecados; tua mãe seja a compunção, que te lave das manchas e
sujidades da alma; teu irmão seja aquele que juntamente contigo trabalha e
peleja no caminho do Céu; tua mulher e companheira que de ti nunca se afaste,
seja a memória da morte; teus filhos muito amados sejam os gemidos do coração;
teu servo seja teu corpo; e sejam teus amigo os santo anjos, que na hora da
morte te poderão ajudar, se agora procurares fazê-los familiares e amigos teus.
Esta é a geração espiritual daqueles que buscam Deus, porque este nos criou e
remiu ao passo que aqueles muitas vezes destruíram aos que amaram e fora causa
de sua condenação aos tormentos eternos. O amor de Deus exclui o amor
desordenado dos pais, e quem acreditar que estes dois amores juntos podem
conciliar-se, engana-se; pois, como já disse o Salvador, “ninguém pode servir a dois senhores”. Por essa mesma razão, disse
ele em outro lugar “Não vim trazer paz à
terra, mas guerra”, porque veio apartar os que amam a Deus dos que amam o
mundo, os terrenos e materiais dos espirituais, os ambiciosos dos humildes. De
tal porfia e separação se alegra o Senhor, quando são feitas por seu amor. Cuida
com atenção em que não fiques secretamente tomado do amor de teus parentes;
vendo-os naufragando no dilúvio das misérias e trabalhos deste mundo, não vás
desprovidamente socorrei-os e perecer juntamente com eles nesse mesmo dilúvio.
Não lastimes os pais e amigos que choram tua saída do mundo, para que não
tenhas sempre de chorar, quando eles te procurarem como abelhas, ou, para
melhor dizer, como vespas, e começarem a fazer lamentações a teu respeito,
volta a toda a pressa e fortalece teu coração com a memória da morte e com a
consideração de teus, para que com uma dor ofusques outra dor. Muitas vezes eles
prometem-nos que tudo se fará à nossa vontade; mas, assim procedem
enganosamente, com intenção de atalhar-nos o caminho e trazer-nos à sua
vontade.
Quando nos separarmos do mundo,
seja o nosso retiro nos lugares mais humildes, menos públicos, e mais apartados
das consolações do mundo. Se fores nobre, esconde, quanto puderes, e em coisa alguma
mostres, a limpeza e nobreza de tua linhagem, para que não pareças nas palavras
um e nas obras outro, nas palavras pregando humildemente e nas obras vaidade.
Ninguém peregrinou tanto como aquele grande Patriarca, a quem foi dito: Sai de tua terra e do meio de teus parentes e
da casa de teus pais. Assim foi ele chamado a viver entre gente bárbara e
de língua estranha. Os que procuraram imitar esta tão admirável peregrinação,
algumas vezes foram pelo Senhor levantados a grande glória; entretanto, aquele
que é verdadeiramente humilde deve escusar-se a esta glória, e defender-se dela
com o escudo da humildade, posto que divinamente lhe seja concedida. Quando os demônios
nos louvam por esta virtude da peregrinação, ou por outra qualquer insigne,
devemos logo recorrer com grande atenção à memória daquele Senhor, que
peregrinou por nós desde o Céu até a terra; e acharemos que, ainda mesmo que vivêssemos
por todos os séculos, não poderíamos imitar a pureza desta peregrinação.
Qualquer afeição desordenada de parentes ou não parentes, que pouco a pouco nos
acarreta ao amor das coisas do mundo e amortece em nós o fogo do amor de Deus,
há de ser evitada com toda a diligência; pois, assim como é impossível olhar
com um dos olhos o Céu e com o outo a terra, assim também o é, estando com o
corpo e com o espírito afeiçoados ao mundo, dedicar afeição pura às coisas do
Céu.
Com grande trabalho e fadiga se alcança
a virtude e se formam os bons costumes; e pode acontecer que aquilo que com
muito trabalho, e em muito tempo, se alcançou, em pouco tempo se perca. Aquele
que, depois de ter renunciado ao mundo, quer viver e conversar com os homens do
mundo, ou morar perto deles, é certo que há de cair nos mesmos perigos e
enlaçar seu coração nos mesmos pensamentos. E se não se enlaçar, ao menos
julgando e condenando aos que assim se enlaçam, ele também se enlaçará.
II
Os principiantes costumam a ser
tentados em sonhos. Não se pode negar que o nosso conhecimento é imperfeito e
cheio de toda ignorância; porque, como está escrito “o paladar julga da qualidade dos manjares e o ouvido da verdade das
sentenças”. Assim como o sol descobre a fraqueza dos olhos, assim as
palavras declaram a rudeza dos entendimentos; entretanto, a caridade nos obriga
a tratar de coisas que excedem à nossa faculdade. Penso, pois, ser coisa
necessária acrescentar a este capítulo alguma coisa obre os sonhos, para que
não ignoremos de todo este gênero de enganos, usado por nossos adversários; mas
primeiro que tudo, convém explicar que coisa seja o sonho.
Sonho é movimento do espírito em
corpo imóvel; pois, tal costuma estar o corpo quando sonhamos. Fantasia é
engano dos olhos interiores na alma adormecida, o que se dá quando aquilo que
não é, se representa como se fora, por estar impedido o uso da razão. Fantasia
é alienação da alma, estando o corpo a velar, o que se dá quando a alma está
como fora de si e com apreensão veemente de alguma coisa. Fantasia é apreensão
ou imaginação que passa logo e não permanece.
A causa por que entendemos tratar
aqui dos sonhos é manifesta. Depois que, por amor de Deus, deixamos nossas
casas e parentes e nos afastamos deles para a peregrinação, então começam os demônios
a perturbar-nos em sonhos, representando-nos nossos pais e parentes tristes e
aflitos, ou mortos por nossa causa, ou postos em necessidades ou em caso de
morte; ora, quem dá crédito a tais sonhos é semelhante àquele que corre atrás
de uma sombra para alcançá-la.
Os demônios, também tentadores da
vanglória, às vezes se fazem profetas revelando-nos em sonhos algumas coisas
que eles, com a sua consumada astúcia, podem conjecturar, a fim de que, vendo
realizado o que vimos em sonho, fiquemos espantados e pensemos que já estamos
mui vizinhos da graça dos Profetas, e com isto nos ensoberbecemos. Muitas vezes
acontece, por secreto juízo de Deus, que o demônio seja verdadeiro com aqueles
que lhe dão crédito, assim como saia mentiroso para com os que não fazem caso
dele; e, como ele seja espírito, vê todas as coisas que se passa, nos ares,
adivinha que alguém há de morrer, di-lo por sonhos a alguns destes que são mais
fáceis de crer, e assim os vai dominando. Porém, nenhuma coisa futura sabe o
demônio de ciência certa, senão por conjectura; e, por este modo, até os
feiticeiros uma ou outra vez costumam adivinhar a morte. Muitas vezes acontece
que os demônios se transfiguram em anjos de luz, ou tomam figuras de mártires,
assim se nos representam em sonhos, e, quando despertamos, enchem-nos de
alegria e soberba, este é um dos sinais de suas armadilhas, porque os bons
anjos, ao contrário, nos representam tormentos, juízos e separações
deixando-nos temerosos e tristes quando despertamos. Os que começam a crer no demônio
nestes sonhos, depois vêm a ser enganados por ele fora dos sonhos; por isso, é
próprio de loucos e de maus o dar crédito a tais vaidades. É verdadeiro filósofo
aquele que nenhum crédito lhes dá; pois, deves sempre dar crédito a quem te
prega pena e juízo. E se isto te mover à desesperação, também o atribuas ao
demônio.
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Anotações
Neste capítulo se trata do
terceiro grau da renúncia, que consiste no contínuo desejo da união de nossa
alma com Deus, para cujo fim se faz o homem peregrino e estranho a todas as
coisas do mundo, não só com o corpo, fugindo de sua pátria com a alma,
desterrando de si o amor desordenado de todas as coisas, para que, solto o coração
destas cadeias, possa sem impedimento voar para Deus e unir-se com ele e
repousar neles, sem que ninguém lhe perturbe este repouso, em lhe desperte
deste sono, que se faz imperfeitamente nesta vida e perfeitamente na glória.
Depois deste terceiro grau, que é a peregrinação, também se trata neste
capítulo de muitas coisas que, conquanto não sejam da essência da peregrinação,
estão anexas a ela, ou como causa, ou como efeito. Dizemos isto, para que não
se maravilhe, nem se confunda o leitor. Vendo coisas tão distintas das que o
título promete, ou querendo-as violentamente reduzir todas ao assunto do
título.
[1] Do verbo soer: ter por hábito; ocorrer frequentemente; acontecer por costume.