quarta-feira, 3 de junho de 2020

CAPÍTULO III – DA VERDADEIRA PEREGRINAÇÃO – ESCADA DO CÉU - SÃO JOÃO CLÍMACO


I

          Peregrinação é desamparar com toda constância tudo quanto nos impede o propósito e exercício de piedade, que é louvar e buscar a Deus. Peregrinação é um coração vazio de toda a vã confiança, sabedoria não conhecida, prudência secreta, fugida do mundo, vida invisível, propósito não revelado, amor do desprezo, apetite de angústias, desejo do divino amor, abundância de caridade, aborrecimento de passar como sábio ou como santo e um profundo silêncio da alma. Soe[1] muitas vezes, ao princípio fatigar aos servos de Deus esta maneira de vida tão árdua e vai se acalmando o fogo deste desejo de afastar-se da pátria e dos seus, desejo que provoca a ser afligidos e desprezados por amor de Deus, mas é de notar que, por maior e mais louvável que seja esta peregrinação, deve ela, por isso mesmo, ser examinada com toda a atenção.
             Consideremos que, como diz o Salvador: “ninguém é louvado como profeta entre os seus e em sua pátria”, e vejamos que não seja para nós ocasião de vanglória a peregrinação e saída da pátria. A peregrinação verdadeira é uma perfeita separação de todas as coisas, com intento de jamais, tanto quanto seja possível, separar de Deus o nosso pensamento. Peregrino é amador de perpétuo pranto, arraigado nas entranhas pela memória de seu Criador. Peregrino é aquele que despede e expele sempre a memória e afeição de todos os seus, enquanto são impedimento para ir a Deus.
             Quando te determinares a peregrinar e a apartar-te a soledade, não te detenhas no mundo à espera de levar contigo as almas dos que estão ainda presos a ele, pois pode acontecer que, durante este tempo, te assalte o inimigo e arrebate o teu bom propósito. Muitos tem havido que, pretendendo levar consigo alguns destes preguiçosos e negligentes, pereceram juntamente com eles, apagando-lhes com a dilação a chama deste divino fogo e divina inspiração. E, por isso, logo que sentires em ti esta chama, corre apressadamente, porque não sabes se se apagará tão depressa, de sorte que fiques às escuras. Nem todos nós somos obrigados a salvar os outros, porque, como diz o Apóstolo: “cada um responde a Deus por si” e, em outro lugar, diz: “Tu que ensinas a outros, como não te ensinas a ti mesmo?”. Isto é como se dissera: As necessidades e obrigações dos outros, não as conhecem todos, mas as próprias, cada um as conhece e assim é obrigado a acudir a elas.
             Tu, que te determinar a peregrinar, guarda-te do demônio guloso e vagabundo, isto é, daquele que, com título de peregrinação, pretende cevar a curiosidade e o apetite da gula, contando com os convites e hospedagens que achará em diversos lugares, visto que a peregrinação soe dar ocasião a este demônio. Grande coisa é haver mortificado a afeição de todas as coisas perecíveis e a peregrinação é a mãe dessa virtude. Aqueles que, por amor de Deus, andam peregrinando, hão de deixar todos os afetos do século e estar como mortos para suas coisas, a fim de que não pareçam, por uma parte, apartados do mundo e, por outra, presos às suas afeições. Aqueles que se afastaram do século, não mais queiram ter qualquer relação com o século, porque muitas vezes os vícios, que de muito tempo estão adormecidos, facilmente costumam despertar. Nossa mãe Eva, contra sua vontade saiu do paraíso, mas o monge, pela sua, se desterrou de sua pátria. Aquela foi expulsa, a fim de que não voltasse a comer da árvore da desobediência; este, para não padecer perigo de seus incentivos carnais, foge, como de um açoite, da vizinhança destes lugares do mundo, porque o fruto que não se vê com os olhos, não move tanto o coração.
            Também quereria que não ignorasses outra maneira de engano, de que usam demônios, muitas vezes eles nos aconselham que não nos apartemos dos seculares, dizendo-nos que maior coroa será, se, vendo mulheres e andando no meio dos laços, escaparmos deles, vivendo limpamente, lutando com as nossas paixões e vencendo-as.
 Depois de haver peregrinado alguns anos fora de nossa pátria e de haver alcançado um pouco de religião ou de compunção, ou de abstinência, logo os demônios começam a combater-nos com alguns pensamentos de vaidade, incitando-nos a regressar a nossa pátria, para edificação e exemplo de todos aqueles que antes nos viram viver desordenadamente no século. Se, porventura, temos algumas letras, ou alguma graça no falar, então nos apertam mais fortemente, incitando-nos a voltar ao século para guardar as nossas almas e as almas dos outros; e, deste modo, conseguem que a fazenda que no porto adquirimos com trabalho, no mar alto a percamos. Não imitemos a mulher de Ló, mas ao mesmo Ló, porque a alma que voltar ao lugar donde saiu, ficará como uma estátua que não se move e dissolver-se-á como sal, antes que outra vez possa facilmente voltar a Deus. Foge do Egito, e de tal maneira fujas, que nunca mais voltes, porque os corações que a eles voltaram, não gozaram daquela quietíssima e pacífica terra de Jerusalém. Contudo, não é mau que aqueles que, no princípio de sua conversão, deixaram a pátria e todas as coisas com ela, para conservarem-se na infância de sua profissão e fechar a porta a tudo quanto a pudesse prejudicar voltem a ela, depois de confirmados e adiantados na virtude e perfeitamente purgados, a fim de faze outros participantes da salvação que alcançaram, pois, aquele grande Moisés, que viu a Deus e foi escolhido para procurar a salvação de sua gente, muitos perigos passou no Egito e muitas aflições e trabalhos passou neste mundo por essa causa.
 Peregrino é aquele que, como homem de outra língua e morador em uma nação estrangeira, entre gente desconhecida, vive somente consigo e no conhecimento de si mesmo. Ninguém pense que desamparamos nossa pátria e nossos parentes porque os aborreçamos (jamais Deus queira que tal seja a nossa intenção), mas para fugir ao dano que de sua parte possa vir. Nisto temos, como em tudo o mais a doutrina e o exemplo do nosso Divino Salvador, que muitas vezes desamparou a seus pais; e, sendo-lhe dito por alguns que procurasse sua mãe e seus irmãos, logo o Mestre nos ensinou este santo ódio e liberdade de coração, dizendo “Minha mãe e meus irmãos são os que fazem a vontade de meu Pai, que está nos Céus”. Seja teu pai aquele que pode e quer trabalhar contigo e ajudar-te a descarregar a carga de teus pecados; tua mãe seja a compunção, que te lave das manchas e sujidades da alma; teu irmão seja aquele que juntamente contigo trabalha e peleja no caminho do Céu; tua mulher e companheira que de ti nunca se afaste, seja a memória da morte; teus filhos muito amados sejam os gemidos do coração; teu servo seja teu corpo; e sejam teus amigo os santo anjos, que na hora da morte te poderão ajudar, se agora procurares fazê-los familiares e amigos teus. Esta é a geração espiritual daqueles que buscam Deus, porque este nos criou e remiu ao passo que aqueles muitas vezes destruíram aos que amaram e fora causa de sua condenação aos tormentos eternos. O amor de Deus exclui o amor desordenado dos pais, e quem acreditar que estes dois amores juntos podem conciliar-se, engana-se; pois, como já disse o Salvador, “ninguém pode servir a dois senhores”. Por essa mesma razão, disse ele em outro lugar “Não vim trazer paz à terra, mas guerra”, porque veio apartar os que amam a Deus dos que amam o mundo, os terrenos e materiais dos espirituais, os ambiciosos dos humildes. De tal porfia e separação se alegra o Senhor, quando são feitas por seu amor. Cuida com atenção em que não fiques secretamente tomado do amor de teus parentes; vendo-os naufragando no dilúvio das misérias e trabalhos deste mundo, não vás desprovidamente socorrei-os e perecer juntamente com eles nesse mesmo dilúvio. Não lastimes os pais e amigos que choram tua saída do mundo, para que não tenhas sempre de chorar, quando eles te procurarem como abelhas, ou, para melhor dizer, como vespas, e começarem a fazer lamentações a teu respeito, volta a toda a pressa e fortalece teu coração com a memória da morte e com a consideração de teus, para que com uma dor ofusques outra dor. Muitas vezes eles prometem-nos que tudo se fará à nossa vontade; mas, assim procedem enganosamente, com intenção de atalhar-nos o caminho e trazer-nos à sua vontade.
  Quando nos separarmos do mundo, seja o nosso retiro nos lugares mais humildes, menos públicos, e mais apartados das consolações do mundo. Se fores nobre, esconde, quanto puderes, e em coisa alguma mostres, a limpeza e nobreza de tua linhagem, para que não pareças nas palavras um e nas obras outro, nas palavras pregando humildemente e nas obras vaidade. Ninguém peregrinou tanto como aquele grande Patriarca, a quem foi dito: Sai de tua terra e do meio de teus parentes e da casa de teus pais. Assim foi ele chamado a viver entre gente bárbara e de língua estranha. Os que procuraram imitar esta tão admirável peregrinação, algumas vezes foram pelo Senhor levantados a grande glória; entretanto, aquele que é verdadeiramente humilde deve escusar-se a esta glória, e defender-se dela com o escudo da humildade, posto que divinamente lhe seja concedida. Quando os demônios nos louvam por esta virtude da peregrinação, ou por outra qualquer insigne, devemos logo recorrer com grande atenção à memória daquele Senhor, que peregrinou por nós desde o Céu até a terra; e acharemos que, ainda mesmo que vivêssemos por todos os séculos, não poderíamos imitar a pureza desta peregrinação. Qualquer afeição desordenada de parentes ou não parentes, que pouco a pouco nos acarreta ao amor das coisas do mundo e amortece em nós o fogo do amor de Deus, há de ser evitada com toda a diligência; pois, assim como é impossível olhar com um dos olhos o Céu e com o outo a terra, assim também o é, estando com o corpo e com o espírito afeiçoados ao mundo, dedicar afeição pura às coisas do Céu.
   Com grande trabalho e fadiga se alcança a virtude e se formam os bons costumes; e pode acontecer que aquilo que com muito trabalho, e em muito tempo, se alcançou, em pouco tempo se perca. Aquele que, depois de ter renunciado ao mundo, quer viver e conversar com os homens do mundo, ou morar perto deles, é certo que há de cair nos mesmos perigos e enlaçar seu coração nos mesmos pensamentos. E se não se enlaçar, ao menos julgando e condenando aos que assim se enlaçam, ele também se enlaçará.


II


   Os principiantes costumam a ser tentados em sonhos. Não se pode negar que o nosso conhecimento é imperfeito e cheio de toda ignorância; porque, como está escrito “o paladar julga da qualidade dos manjares e o ouvido da verdade das sentenças”. Assim como o sol descobre a fraqueza dos olhos, assim as palavras declaram a rudeza dos entendimentos; entretanto, a caridade nos obriga a tratar de coisas que excedem à nossa faculdade. Penso, pois, ser coisa necessária acrescentar a este capítulo alguma coisa obre os sonhos, para que não ignoremos de todo este gênero de enganos, usado por nossos adversários; mas primeiro que tudo, convém explicar que coisa seja o sonho.
   Sonho é movimento do espírito em corpo imóvel; pois, tal costuma estar o corpo quando sonhamos. Fantasia é engano dos olhos interiores na alma adormecida, o que se dá quando aquilo que não é, se representa como se fora, por estar impedido o uso da razão. Fantasia é alienação da alma, estando o corpo a velar, o que se dá quando a alma está como fora de si e com apreensão veemente de alguma coisa. Fantasia é apreensão ou imaginação que passa logo e não permanece.
    A causa por que entendemos tratar aqui dos sonhos é manifesta. Depois que, por amor de Deus, deixamos nossas casas e parentes e nos afastamos deles para a peregrinação, então começam os demônios a perturbar-nos em sonhos, representando-nos nossos pais e parentes tristes e aflitos, ou mortos por nossa causa, ou postos em necessidades ou em caso de morte; ora, quem dá crédito a tais sonhos é semelhante àquele que corre atrás de uma sombra para alcançá-la.
    Os demônios, também tentadores da vanglória, às vezes se fazem profetas revelando-nos em sonhos algumas coisas que eles, com a sua consumada astúcia, podem conjecturar, a fim de que, vendo realizado o que vimos em sonho, fiquemos espantados e pensemos que já estamos mui vizinhos da graça dos Profetas, e com isto nos ensoberbecemos. Muitas vezes acontece, por secreto juízo de Deus, que o demônio seja verdadeiro com aqueles que lhe dão crédito, assim como saia mentiroso para com os que não fazem caso dele; e, como ele seja espírito, vê todas as coisas que se passa, nos ares, adivinha que alguém há de morrer, di-lo por sonhos a alguns destes que são mais fáceis de crer, e assim os vai dominando. Porém, nenhuma coisa futura sabe o demônio de ciência certa, senão por conjectura; e, por este modo, até os feiticeiros uma ou outra vez costumam adivinhar a morte. Muitas vezes acontece que os demônios se transfiguram em anjos de luz, ou tomam figuras de mártires, assim se nos representam em sonhos, e, quando despertamos, enchem-nos de alegria e soberba, este é um dos sinais de suas armadilhas, porque os bons anjos, ao contrário, nos representam tormentos, juízos e separações deixando-nos temerosos e tristes quando despertamos. Os que começam a crer no demônio nestes sonhos, depois vêm a ser enganados por ele fora dos sonhos; por isso, é próprio de loucos e de maus o dar crédito a tais vaidades. É verdadeiro filósofo aquele que nenhum crédito lhes dá; pois, deves sempre dar crédito a quem te prega pena e juízo. E se isto te mover à desesperação, também o atribuas ao demônio.

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Anotações 

Neste capítulo se trata do terceiro grau da renúncia, que consiste no contínuo desejo da união de nossa alma com Deus, para cujo fim se faz o homem peregrino e estranho a todas as coisas do mundo, não só com o corpo, fugindo de sua pátria com a alma, desterrando de si o amor desordenado de todas as coisas, para que, solto o coração destas cadeias, possa sem impedimento voar para Deus e unir-se com ele e repousar neles, sem que ninguém lhe perturbe este repouso, em lhe desperte deste sono, que se faz imperfeitamente nesta vida e perfeitamente na glória. Depois deste terceiro grau, que é a peregrinação, também se trata neste capítulo de muitas coisas que, conquanto não sejam da essência da peregrinação, estão anexas a ela, ou como causa, ou como efeito. Dizemos isto, para que não se maravilhe, nem se confunda o leitor. Vendo coisas tão distintas das que o título promete, ou querendo-as violentamente reduzir todas ao assunto do título.


[1] Do verbo soer: ter por hábito; ocorrer frequentemente; acontecer por costume.