Introdução
A
Semana Católica no início de 1926, organizada pela Liga Apostólica,
confiou-nos um desejo: possuir um Catecismo que expusesse o fato e a natureza
da realeza social de Jesus Cristo. A fim de responder a este desejo, demos
estas páginas ao público sob o título Catecismo dos Direitos Divinos na
Ordem Social – Jesus Cristo Mestre e Rei!.
Dizemos
Catecismo dos Direitos Divinos na Ordem Social, porque sob o pretexto de
seguir apenas a luz da consciência, espalhou-se o costume de deixar o
cumprimento de todos os deveres à livre disposição da consciência.
Os
direitos da verdade, e especialmente os da Verdade Suprema, são espezinhados. O
nosso catecismo exige um grande ato de Fé: um ato de Fé em Deus e em Jesus
Cristo, intervindo por autoridade à medida que intervêm pela sua ação criadora
em toda Sociedade. Os povos devem saber que em cada relação de homem a homem,
de sociedade a sociedade, de país a país e em tudo o que constitui o interior
de uma nação, dependem de Deus e de Jesus Cristo. Sobre este ponto, como sobre
o da própria existência de Deus, todos nós devemos curvar-se e dizer com toda
nossa alma: "Creio".
Rev. Pe. A.
Philippe, C.Ss.R.
I – SUPREMO DOMÍNIO DE
DEUS SOBRE TODA A SOCIEDADE
1. Diga os primeiros
artigos do Credo.
Creio em Deus, Pai
Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra. E em Jesus Cristo, seu único Filho,
Nosso Senhor.
2. Como é que a Santa
Igreja se exprime sobre este ponto no Credo da Missa?
Creio em um só Deus, Pai
Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e
invisíveis. Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, o Filho unigênito do Pai.
3. O que se entende por
estas palavras: “Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e
invisíveis”?
Se entende, por estas
palavras, que tudo o que existe fora de Deus foi feito por Deus, que todas as
coisas visíveis e invisíveis foram criadas por Ele.
4. Que diferença fazes
entre coisas visíveis e invisíveis?
Há coisas que são
perceptíveis pelo sentido da visão, audição ou outros sentidos, que podem ser
sentidas de alguma forma, estas são as coisas visíveis. Para além destas,
existem outras coisas que realmente existem, de cuja existência podemos estar
conscientes, mas que não são perceptíveis pelos sentidos.
5. Enumere alguns
exemplos de coisas invisíveis.
É invisível no sentido em
que não pode ser tocado, mas é perfeitamente perceptível de modo que a sua
existência pode ser percebida. Desta forma, pode-se ver e perceber que tal
nação é diferente de outra, que tal sociedade pública ou privada é diferente de
qualquer outra sociedade.
6. A Sociedade dos homens
é uma coisa invisível?
Sim, e quando no Credo se
diz: “Creio em um só Deus, Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra, de
todas as coisas visíveis e invisíveis”, é professado solenemente que cada
Sociedade, tal como o homem, foi criada por Deus, e por isso é absolutamente
dependente d'Ele. Esta doutrina aplica-se a qualquer sociedade, quer seja uma
sociedade natural, ou seja, imposta pela natureza do homem, ou uma sociedade
livre, ou seja, fundada pela vontade do homem.
7. Será a Sociedade,
considerada como visível e invisível, uma criatura?
Para além do testemunho
de Deus e do Espírito Santo nas Escrituras e do testemunho da Santa Igreja,
podem ser aduzidas provas racionais. Cada Sociedade é composta por homens. E
todo o homem é uma criatura. Daí resulta que as relações mútuas dos homens são
coisas criadas. E uma vez que cada sociedade, como cada nação, é uma unidade
moral que realmente existe fora de Deus, na medida em que não é Deus, é criada
por Deus, de quem não pode deixar de depender no mais alto grau, tal como cada
criatura depende de Deus.
8. Podes dar alguma prova
da condição criada da Sociedade?
Há ainda outra verdade
fundamental. O homem depende de Deus não só porque é uma criatura, mas também
porque Deus é o seu fim último. É evidente que o fim último de todas as coisas criadas
é Deus. Mais particularmente, Deus é o fim último, supremo e infinito de toda a
criatura inteligente. O homem foi criado com o objetivo de chegar a Deus. Ele
deve compreender que foi criado para este fim e deve querer alcançá-lo, e Deus
colocou o homem em tal condição que não pode deixar de viver em sociedade.
Portanto, como ser social, o homem deve ter Deus como seu fim último e supremo.
Dizer o contrário seria afirmar que o homem encontra o fim da Sociedade na
própria Sociedade, o que seria uma idolatria. Mas as sociedades enquanto tais
não passam para a eternidade. Segue-se, então, que o fim último está no fato de
a inteligência e a vontade dos indivíduos serem dirigidas a Deus nas – e por
meio – das sociedades.
II – CONSEQUÊNCIAS DE A
SOCIEDADE SER ALGO CRIADO
9. Qual é a consequência
imediata da condição da sociedade ser algo criado?
A primeira consequência é
a dependência necessária, absoluta e completa de cada sociedade e de cada ordem
social estabelecida, como de cada ordem social possível, de Deus.
10. Não compreendo a
dependência de um organismo social de Deus. O organismo social não é dotado de
consciência. Cabe apenas ao indivíduo compreender o seu dever moral e
cumpri-lo.
Há uma triste confusão
nas considerações que acabaste de fazer. Em primeiro lugar, a criação, e a
dependência que se lhe segue para cada sociedade, não provêm do fato do homem
ter recebido de Deus o ser e a existência. O que seja criado não depende dele;
quer ele queira ou não, o homem é uma criatura. O mesmo se aplica a todas as
sociedades. Não depende dela se é ou não uma criatura; a criatura pertence à
sua própria essência. A fortiori, cada sociedade representa uma
coletividade inteligente. Esta coletividade tem como primeira obrigação
compreender o que é essencial para ela. Deve conhecer os seus deveres
primordiais ligados à sua condição criada. E a primeira verdade da qual as outras
dependem, e que dita à criatura as suas obrigações, é a do supremo domínio de
Deus sobre cada criatura e que cada criatura é absolutamente dependente d'Ele.
Uma coletividade que, como tal, não estivesse convencida desta verdade falharia
na mais rigorosa das suas obrigações; estaria infalivelmente no caminho errado.
Por conseguinte, é estritamente necessário que cada Estado, cada Nação – numa
palavra – cada Sociedade, seja inteiramente submissa a Deus. Afirma-se assim a
obrigação da Ordem Social, tanto para a consciência coletiva como para a
consciência individual.
11. Existem outras
consequências da condição de criatura inerente de cada sociedade?
Outra
consequência do que tem sido dito é que cada Sociedade depende de Deus na sua
constituição interior. Com isto, tudo o que contribui para a formação de uma
sociedade deve ser permeado por Deus. Expliquemos. Em cada sociedade existe a
união íntima de vontades, de meios adequados e um fim a alcançar. Em cada um
destes elementos a Sociedade depende de Deus, porque é uma criatura. A
consequência estritamente lógica segue-se facilmente. Quando uma sociedade é
constituída, deve considerar o seu fim do ponto de vista do fim último e
supremo: Deus. A união de vontades deve ser feita sob a dependência prática de
Deus. Os meios adequados devem estar em conformidade com os requisitos da Lei
Eterna. Assim, quando um Estado é constituído, o seu primeiro dever é colocar
como base da sua Carta fundamental, da sua legislação e de tudo o resto, a mais
absoluta dependência de Deus e a sua mais completa conformidade com a Lei
Eterna. Afirmar o contrário seria estabelecer a desordem e acabar em idolatria.
13. Como podem os Estados
ser obrigados a adorar a Deus?
Esta pergunta é
respondida pelas palavras do Apóstolo Paulo. No primeiro capítulo da Epístola
aos Romanos, ele fala assim:
“Porque a ira de Deus
manifesta do Céu contra toda a impiedade, e injustiça daqueles homens, que
retêm na injustiça a verdade de Deus. Porque o que se pode conhecer de Deus lhe
é manifesto a eles, porque Deus lho manifestou. Na verdade, as suas perfeições
invisíveis, tornadas compreensíveis depois da criação do mundo, consideradas pelas
obras que foram feitas, e que passaram a ser tão visíveis como a virtude
sempiterna e a sua divindade, de tal sorte que são inescusáveis. Porquanto
depois de terem reconhecido a Deus, não o glorificaram como a Deus, ou deram
graças" (Rm I,18-21).
O Espírito Santo, através
da boca do Doutor das Gentes, proclama que os pagãos, imersos em todos os
horrores da impiedade, são indesculpáveis por não terem conhecido e glorificado
a Deus. Ele acusa-os de terem rejeitado a luz; não os pode desculpar em nada.
Como os pagãos, de quem São Paulo fala, os Estados modernos, sejam eles quais
forem, são indesculpáveis. Não se pode admitir que a sua atitude esteja em
conformidade com as exigências da razão. Aos governantes e líderes, como a
todos os outros, Deus mostra-Se a Si próprio pelos seus atos. Se há aqueles que
não querem exigir que os Estados deem a Deus um culto social e oficial, são
indesculpáveis pelas razões dadas por São Paulo. Do simples ponto de vista
racional, Governantes, Parlamentos, Legisladores etc., devem praticar um culto
a Deus, do qual não se podem dispensar a si próprios e do qual não podem
dispensar nenhum Estado ou Sociedade. Dito isto, deve concluir-se que mesmo que
um Estado pudesse ser dispensado de não se submeter às diretivas da Igreja por não
as conhecer, não pode ser dispensado de falhar a Deus ou de não se ter
submetido aos preceitos divinos da Lei Eterna.
14. Assim, considera como
indesculpáveis todos os homens públicos que, por razões políticas e
prudenciais, não querem afirmar o supremo domínio de Deus sobre todas as
criaturas e especialmente sobre os organismos sociais.
Exatamente. E o Apóstolo São
Paulo vai ainda mais longe. Ele declara que a severidade de Deus será
manifestada contra aqueles que desobedecerem a esta lei primordial. Aqueles que
não querem aceitar Deus como Criador, Chefe e Dominador Supremo de toda a
Sociedade vão contra a lei natural e as luzes da sua própria razão. Não podemos
aceitar as suas teorias, mas devemos combatê-las com extrema energia.
15. Sob estas condições, toda a política é e
deve ser submissa a Deus.
Já o disse. Toda a
política deve ser submissa a Deus. Qualquer que seja o significado atribuído ao
termo política, este deve ser reconhecido no que exprime como uma
realidade dependente de Deus. Além disso, é nesta área que deve ser aplicada a
teoria do fim último acima exposta. Nunca devemos perder de vista o fato de que
o homem está na Terra para se preparar para a felicidade eterna. Todas as
instituições divinas ou humanas têm como fim último a glória de Deus e a
salvação das almas. Assim, todas as instituições sociais, todas as ações e
diretivas políticas devem ter em conta esta verdade fundamental, que o homem
não foi feito para este mundo, mas para a Eternidade. As constituições dos
povos, a sua legislação, as suas disposições legais e administrativas etc.,
devem considerar antes de mais nada, o fim último de toda a existência humana.
Todas as políticas devem, para este fim último, estar em conformidade com a Lei
Eterna de Deus, o Credo e o Decálogo.
16. Diz-se que o Estado
deve ser totalmente submisso a Deus. Mas a Igreja não deve ser igualmente
assim?
É claro que deve. A
Igreja, como qualquer Sociedade, deve a Deus toda a obediência e submissão. No
mundo existem muitas sociedades diversas. Duas sociedades dominam sobre as
outras: a Igreja e o Estado. Se insistimos na dependência do Estado de Deus, é
devido aos erros que reinam sobre este assunto. A Igreja deve a Deus uma
submissão ainda maior porque a sua função é conduzir os homens ao seu destino
eterno. Depende de Deus para a sua existência, para os meios que Deus coloca à
sua disposição para a santificação das almas; depende de Deus para a obrigação
em que se encontra de mostrar aos indivíduos bem como aos homens públicos, às
sociedades privadas bem como aos Estados, o caminho que deve ser seguido para
ser salvo. Em suma, cada sociedade depende de Deus. O Estado é uma Sociedade:
por conseguinte, depende de Deus. A Igreja é uma Sociedade: por isso depende de
Deus, e a sua dependência é ainda mais íntima.
17. O que tem sido dito
parece estabelecer que a Igreja e o Estado devem concordar no governo dos
homens, não é verdade?
Exatamente. Os Papas
sempre ensinaram que deve haver um perfeito acordo entre a Igreja e o Estado. A
razão disto é muito simples: Igreja e Estado são duas instituições
estabelecidas por Deus. A missão da Igreja é conduzir os homens à sua
felicidade eterna. A missão do Estado é adquirir o bem material e temporal dos
seus súbditos. O Estado deve adquirir este bem para que os seus súbditos possam
atingir o seu fim final sem demasiadas dificuldades. Uma vez que o fim último é
a coisa mais importante para o homem, é evidente que tudo o resto deve estar
subordinado a ele. Uma vez que a missão da Igreja é conduzir os homens em
segurança até ao seu fim último, Deus quer que ela seja obedecida. O seu poder,
sem se estender às coisas de uma ordem material, inclui também a forma como os
bens temporais e transitórios são empregues tendo em vista o fim a alcançar. Os
Papas Pio IX e Leão XIII condenaram fortemente a doutrina da separação da
Igreja e do Estado.
18. Estes ensinamentos
são muito importantes. Parece que, para estar em conformidade com a verdade e
com a lei divina, nenhuma inteligência humana pode jamais ter o pensamento
consensual da independência do Estado, de uma Sociedade ou simplesmente da
política, com respeito a Deus.
Já o disse. Qualquer
pensamento assim consentido envolve uma declaração formal de independência da
criatura contra o Criador. Esta é uma rebelião do espírito contra Deus e esta
rebelião constitui um pecado particularmente grave.
III – O SUPREMO DOMÍNIO
DE JESUS CRISTO SOBRE TODA SOCIEDADE E NAÇÃO
19. Poderia dizer-me o
segundo artigo do Credo?
"[Creio] em Jesus
Cristo, Nosso Senhor”. E no Credo da Missa diz: “Creio em um
só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos
os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,
gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por ele todas as coisas foram
feitas. E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus: e se
encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem”.
20. Existe uma relação
especial entre a Santíssima Humanidade de Jesus Cristo e a Ordem Social estabelecida
neste mundo?
Sem dúvida existe. O
homem é criado de tal forma que é feito para a Sociedade. Pela sua natureza e
condições de existência, é chamado a viver em sociedade. Jesus Cristo tornou-se
homem a fim de conduzir o homem à sua Eterna Beatitude. Assim, o Divino
Redentor deve ter uma influência eficaz em todas as condições entre as quais
Ele deve conduzir o homem ao seu fim; mas o homem, sendo feito para a
Sociedade, deve tender para o seu fim na medida em que é um ser social, ou
seja, através da Sociedade para a qual é feito. A sociedade não pode ser um fim
supremo, mas apenas um meio. Para ser um meio, deve estar santificada e ser
santificante. Isto só pode ser obtido através da Humanidade Sagrada de Cristo e
em Cristo. Por esta razão, é evidente que deve existir uma relação especial entre
a Humanidade Sagrada de Cristo e a Ordem Social estabelecida no mundo.
21. Mas por que falar de Cristo em particular,
não é Ele Deus? Não é verdade, portanto, que tudo o que foi dito sobre Deus já
se aplica a Ele?
Naturalmente, tudo o que
foi dito de Deus, aplica-se ao Verbo Eterno feita homem para nós. Jesus Cristo
é Deus, por isso toda Sociedade depende d'Ele com dependência suprema e
absoluta. Contudo, é preciso lembrar que em Jesus Cristo existe apenas uma
Pessoa e duas naturezas: a Pessoa do Verbo e as naturezas divina e humana. A
Pessoa do Verbo assumiu e uniu-se hipostaticamente com a natureza humana.
Assim, a natureza humana de Cristo subsiste apenas no Verbo; em Jesus Cristo,
ela assume condições bastante especiais.
22. Quais são as condições
especiais que a Humanidade Santa de Cristo possui em virtude da dignidade que a
Sua união hipostática criou para Ele?
As ações de Cristo são
divinas. Isto decorre do fato de que todos os atos são atribuídos à pessoa. Uma
vez que em Jesus Cristo existe apenas uma pessoa, não duas, todos os atos da
natureza humana são atribuídos à pessoa divina.
23. Mas não é Jesus
Cristo ao mesmo tempo Redentor?
Jesus Cristo é Redentor.
Ele redimiu o gênero humano pela sua natureza humana. Nesta natureza, Ele é
Mediador entre a Santíssima Trindade e o homem. A fim de defender os poderes
especiais e a missão com que Jesus Cristo, homem, foi revestido, as condições
dadas ao Divino Mestre na sua qualidade de Homem-Mediador não devem ser
perdidas de vista. Ele é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Como Deus independe
de alguém, Ele não tem nada para receber de alguém, e tudo depende d'Ele. Como
homem, Ele deve receber tudo de Deus, assim como todas as criaturas, mas em condições
especiais.
IV – CONDIÇÕES E SENTIDO
EXATO DA REALEZA DE JESUS CRISTO
24. Qual é a condição
fundamental da Realeza Social de Jesus Cristo?
A condição essencial da
Realeza Social de Jesus Cristo é a vontade formal da Santíssima Trindade de dar
a Jesus Cristo homem um verdadeiro e absoluto poder real. Não se trata aqui dos
Direitos do Verbo de Deus, que são infinitos, mas dos Direitos e Poderes que
Deus dá à Humanidade Santa assumidos pelo Verbo.
25. Deus deu-nos a
conhecer a sua vontade a este respeito?
Sem qualquer dúvida. Na
encíclica Quas Primas o Papa Pio XI dá-nos duas provas que indicam a
vontade divina sobre este assunto.
26. Quais são estas duas
provas?
O Papa Pio XI afirma a
primeira prova:
"São Cirilo de
Alexandria, quando escreve: ‘Numa palavra, possui o domínio de todas as
criaturas, não pelo ter arrebatado com violência, senão em virtude de sua
essência e natureza’. Esse poder dimana daquela admirável união que os teólogos
chamam de hipostática. Portanto, não só merece Cristo que anjos e homens O
adorem como a seu Deus, senão que também devem homens e anjos prestar-Lhe
submissa obediência como a Homem. E assim, só em força dessa união, a Cristo
cabe o mais absoluto poder sobre todas as criaturas".
Este é o pensamento do
Papa sobre o assunto: a união hipostática da natureza humana com a pessoa do
Verbo confere à natureza humana assumida em Jesus Cristo uma dignidade que
transcende todas as outras dignidades com as quais uma natureza humana pode ser
revestida. Não seria admissível nem aceitável colocar ao lado da natureza
humana assumida o Verbo uma dignidade que, na lei, poderia reivindicar uma
superioridade sobre o Homem-Cristo. Não seria admissível que um Príncipe, uma
Câmara legislativa, pudesse declarar-se efetiva e juridicamente superior Àquele
a quem Deus investiu com a prerrogativa transcendente da união hipostática.
Este é o primeiro e essencial fundamento do poder real atribuído a Jesus
Cristo.
27. Declare o segundo
fundamento da doutrina da Verdade ensinada por Pio XI.
Pio XI prossegue:
“Mas haverá, outrossim,
pensamento mais suave do que refletir que Cristo é nosso Rei não só por direito
de natureza, mas também a título de Redentor? Lembrem-se os homens esquecidos
de quanto custamos a nosso Salvador. ‘Não fostes resgatados a preço de coisas
perecíveis, prata e outro, mas com o sangue precioso de Cristo, como de
cordeiro sem mancha nem defeito’. Já nos não pertencemos, pois que deu Cristo
por nós ‘tão valioso resgate’. Até nossos corpos são ‘membros de Cristo’”.
E este é o pensamento do
Papa. Toda a criatura pertence a Deus. O homem tinha-se perdido pelo pecado e
não tinha nada com que pagar por ele. Jesus Cristo, o Verbo de Deus feito
Homem, tomou sobre Si o encargo de pagar esta dívida com o Seu Sangue divino.
Por sua vez, a Santíssima Trindade deu-lhe como recompensa todo o gênero humano
e cada criatura, e concedeu-lhe especialmente o privilégio de formar um só
corpo e uma só coisa com todos os homens que a Ele se uniriam pela graça.
28. Jesus Cristo deu a
conhecer as intenções da Santíssima Trindade relativamente ao Seu poder real?
Jesus Cristo, em plena
majestade divina, perante o mundo inteiro e perante todas as eras, declarou: “Todo
o poder me é dado no céu e na terra” (Mt XXVIII, 18). Note-se que o poder
de que Ele fala lhe foi dado, então Ele obteve esse poder. Em segundo lugar,
note-se que lhe foi dado todo o poder. Por conseguinte, não há poder na terra
que não pertença a Cristo. O poder foi-lhe dado pela Santíssima Trindade e,
portanto, o poder dos reis, príncipes, e de toda a autoridade constituída é o
poder de Cristo. É assim que São Paulo nos explica: "Non est enim potestas
nisi a Deo", "Não há poder que não venha de Deus" (Rm
XIII, 1). Esta é a origem do poder. Todo o poder vem de Deus e não pode vir senão
d'Ele. Todo o poder foi confiado a Cristo; portanto todo o poder passa por
Cristo e procede d'Ele.
29. Pode deduzir-se do
que foi dito que Jesus Cristo exerce um poder régio sobre todas as sociedades?
A resposta a esta
pergunta é absolutamente afirmativa. Em primeiro lugar, como diz o Papa Leão
XIII, a autoridade pertence essencialmente como algo próprio de cada sociedade.
Sem autoridade não pode haver sociedade. Todas as sociedades são governadas
pela autoridade. Se estabelecermos uma relação entre estas verdades devemos
concluir o seguinte: a autoridade que se encontra numa dada sociedade ou num
dado país vem de Jesus Cristo, procede d'Ele e depende d'Ele. Por conseguinte,
esta autoridade é necessariamente de tal natureza que deve estar sujeita a Cristo.
Pelo próprio facto, Jesus Cristo é o verdadeiro Rei das sociedades, cuja
autoridade lhe pertence.
30. O Papa Pio XI fala
também de um poder legislativo, executivo e judiciário. Cristo também está
investido com este triplo poder?
É claro, uma vez que é
impossível compreender um poder que não goza da prerrogativa de fazer leis,
julgar e executar. Este triplo poder é uma consequência necessária da
autoridade com que Jesus Cristo foi investido por Deus.
31. Pode haver qualquer
outra razão que justifique a Realeza Social de Jesus Cristo?
Sim, pela própria
natureza de cada Sociedade, e especialmente do seu propósito, vemos mais uma
prova da Realidade Social de Jesus Cristo sobre cada Ordem Social.
32. Não é a autoridade
que estabelece o fim da Sociedade?
Sem dúvida. Reconhecer
que existe autoridade numa sociedade é afirmar que essa autoridade deve
conduzir a sociedade até ao seu fim. Este fim é determinado pela união de
vontades que tendem a realizá-lo. O fim de uma sociedade pode ser considerado a
partir do seu próprio ângulo especial. Este ângulo especial nunca pode permitir
que se perca de vista o fim supremo e último. Se, de fato, a missão da
autoridade é conduzir a Sociedade que ela governa para o seu fim, é evidente
que a autoridade que procede de Cristo – e não é inútil insistir, toda a
autoridade procede d'Ele – deve ter como fim último o próprio fim da vida e
morte de Jesus Cristo. É impossível que Jesus Cristo deseje delegar em alguém
uma autoridade sobre a qual não retenha a sua própria autoridade para alcançar
o fim da sua Redenção. Da mesma forma, é impossível para Ele abdicar da mínima
autoridade sobre os meios a utilizar pela Sociedade para atingir o seu fim, ou
sobre os testamentos que foram unidos na Sociedade.
V – CARÁTER ESPIRITUAL DA
REALEZA DE JESUS CRISTO
33. Que outra
característica possui a Realeza Social de Cristo?
O Papa Pio XI explica-o
nos seguintes termos:
“Esta realeza, porém, é
principalmente interna e respeita sobretudo a ordem espiritual. Provam-no com
toda evidência as palavras da Escritura acima referidas, e, em muitas
circunstâncias, o proceder do próprio Salvador. Quando os judeus, e até os
Apóstolos, erradamente imaginavam que o Messias libertaria seu povo para
restaurar o reino de Israel, Jesus desfez o erro e dissipou a ilusória
esperança. Quando, tomada de entusiasmo, a turba, que O cerca, O quer proclamar
rei, com a fuga furta-se o Senhor a estas honras, e oculta-se. Mais tarde,
perante o governador romano, declara que seu reino ‘não é deste mundo’. Neste
reino, tal como no-lo descreve o Evangelho, é pela penitência que devem os
homens entrar. Ninguém, com efeito, pode nele ser admitido sem a fé e o
batismo; mas o batismo, conquanto seja um rito exterior, figura e realiza uma
regeneração interna. Este reino opõe-se ao reino de Satanás e ao poder das
trevas; de seus adeptos exige o desprendimento não só das riquezas e dos bens
terrestres, como ainda a mansidão, a fome e sede da justiça, a abnegação de si
mesmo, para carregar com a cruz. Foi para adquirir a Igreja que Cristo –
enquanto Redentor – verteu o seu sangue; para isto é, que, enquanto Sacerdote,
se ofereceu e de contínuo se oferece como vítima. Quem não vê, em consequência,
que sua realeza deve ser de índole toda espiritual, e participar da natureza
deste seu duplo ofício? Todavia, fora erro grosseiro denegar a Cristo Homem a
soberania sobre as coisas temporais todas, sejam quais forem. Do Pai recebeu
Jesus o mais absoluto domínio das criaturas, que Lhe permite dispor delas todas
como Lhe aprouver. Contudo, enquanto viveu sobre a Terra, absteve-se totalmente
de exercer este domínio temporal, e desprezou a posse e regimento das coisas
humanas, que deixou – e deixa ainda – ao arbítrio e domínio dos homens. Verdade
graciosamente expressa no conhecido verso: ‘Não arrebata diademas terrestres,
quem distribui coroas celestes’”.
34. Explique este
carácter espiritual da Realeza de Cristo.
É necessário recordar o
que já foi dito. Em razão da união hipostática e da Sua ação redentora, Jesus
Cristo possui plena autoridade sobre cada criatura. O homem deve alcançar o seu
fim último através de Jesus Cristo. Ele é o Caminho a ser seguido para a
salvação, a Verdade que ilumina cada homem que vem a este mundo, a Vida cuja
missão é vivificar as almas pela graça. Por causa do Seu poder supremo, Jesus
Cristo deve trabalhar sobre cada homem, para que Ele possa estar em toda a
realidade para cada um: Caminho, Verdade e Vida. Também por causa deste mesmo
poder supremo que Lhe dá autoridade sobre cada Sociedade e cada Autoridade, Ele
deve necessariamente trabalhar de tal forma que, por um lado, nenhuma
autoridade terrena impeça ou possa impedir alguém de fazer Jesus Cristo
Caminho, Verdade e Vida; e por outro lado, que cada Autoridade ou Sociedade
coopere de facto para fazer Jesus Cristo Caminho, Verdade e Vida para todos. O
carácter social e espiritual da Realeza de Cristo é explicado com perfeita
clareza pelas considerações que acabam de ser feitas. Jesus Cristo é Rei. Todo
o poder lhe foi dado, mesmo sobre coisas temporais. Este poder pode ser
exercido por direito, tanto na ordem temporal como na ordem espiritual. De
fato, limita-se à intervenção espiritual.
35. Em que medida é que
Cristo intervém espiritualmente nas organizações sociais?
Não há limites ao seu
poder de intervenção. De direito e de fato, Cristo Rei deve intervir por Ele
próprio e pela Sua Igreja, ou seja, pelos Seus ensinamentos, nas constituições
fundamentais dos povos e países, nas organizações sociais e mesmo na própria
Liga das Nações. Isto deve ser assim, porque é o único meio para o Rei Divino
cumprir a missão divina e terrestre que a Santíssima Trindade se impôs a Si
próprio e lhe confiou.
36. Será Jesus Cristo é
Rei de todas as Nações?
Sim, Ele é. Segundo a
palavra do Profeta: Todas as nações lhe foram dadas como herança, e o seu
império, ou mais precisamente a seu domínio, estende-se até aos confins da
terra.
37. A homenagem pública
devida a Jesus Cristo Deus e Homem surge do carácter espiritual com que a
Realeza de Jesus Cristo está revestida?
Sim, as homenagens
públicas de adoração e amor, de reconhecimento e reparação, de petição e
impetração, são devidas a Jesus Cristo Deus. Eles são impostos a Cristo Homem e
a todos os homens por Cristo Rei. Cristo Rei exerce uma realeza espiritual
porque Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Além disso, exerce-o porque só Ele
possui os meios para adorar e render todos os Seus deveres à Santíssima
Trindade. Que o homem devia cumprir estes deveres era um dos fins da vinda de
Cristo ao mundo. Cabe, portanto, à Sua realeza impor estas homenagens
espirituais ao homem e a cada Sociedade, pois é o único meio tanto para um como
para o outro de atingir o seu fim último.
VI – O PODER DA IGREJA NA
ORDEM ESTABELECIDA POR DEUS
38. Qual é a vontade de
Cristo, Rei das Sociedades, para a Igreja?
A sua vontade é dupla. Em
primeiro lugar, como já foi dito, a Igreja deve a Deus e a Jesus Cristo a mais
completa submissão. Não é permitido acrescentar uma única verdade às ensinadas
por Jesus Cristo. Da mesma forma, não é permitido suprimir nenhuma. Depende de
Deus, mesmo nos mínimos detalhes, com dependência absoluta. Também, pela
vontade de Jesus Cristo, é investido de uma missão que deve cumprir. Foi devido
a esta autoridade sobre toda a autoridade que Jesus Cristo lhe confiou esta
missão. Implica necessariamente uma participação na sua autoridade sobre toda a
autoridade.
39. Pode explicar um
pouco desta missão da Igreja?
Esta é a situação em que
Cristo colocou a Sua Igreja. Ele disse-lhe: "Ide, pois, e ensinai todas
as gentes, eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos".
Estas palavras explicam as intenções de Jesus Cristo. O Divino Mestre quer que
a Sua Igreja no mundo seja o instrumento para a salvação das almas. Quer de tal
forma que confiou apenas à Igreja, à exclusão de qualquer outro organismo, a
missão de conduzir as almas à sua bem-aventurança final. Ele deseja, portanto,
que a Sua Igreja cumpra no mundo, para a salvação do mundo, a função de um
organismo necessário.
40. Mas nestas condições
a Igreja seria tão necessária como o próprio Cristo, o que é inadmissível.
É perfeitamente
admissível que a Igreja seja tão necessária como o próprio Cristo, se tal for a
vontade de Cristo. E, de fato, Cristo ordena à Sua Igreja que ensine o povo e
administre os sacramentos. Ou melhor, Jesus Cristo, através da mediação da
Santa Igreja, deseja ser para cada homem e para cada sociedade o Caminho, a
Verdade e a Vida.
41. Mas nestas condições,
a Igreja pertence ao título de Rainha, e o Papa ao título de Rei.
Inquestionavelmente. A
Igreja não tem ninguém acima dela ou no mesmo nível com ela, que a possa
iluminar, ensinar e dirigir, mas o próprio Deus, o Espírito de Deus e Jesus
Cristo. Se Cristo é verdadeiramente Rei porque Ele exerce autoridade sobre
indivíduos, sociedades e todas as outras autoridades, da mesma forma a Igreja é
Rainha, porque Ela deve ensinar aos homens com autoridade os seus deveres. E
porque ela governa verdadeiramente, ela é Rainha. Pelo mesmo título e pelas
mesmas razões, o Papa é verdadeiramente Rei.
42. Quais são as
consequências imediatas destas verdades?
O primeiro de tudo é que
Jesus Cristo e a Sua Igreja são obrigados a intervir em todas as ordens
sociais. Em cada obrigação social, seja ela qual for, é sua missão divina
iluminar os povos e as sociedades quanto aos seus deveres. É isto que a Santa
Sé ensina numa carta dirigida ao Arcebispo de Tours (França):
"No meio das atuais
desordens, é necessário recordar às pessoas que a Igreja é, pela sua
instituição divina, a única arca de salvação para a humanidade. Fundada pelo
Filho de Deus em São Pedro e seus sucessores, é não só a guardiã das verdades
reveladas, mas também a necessária guardiã da lei natural. Por esta razão, hoje
mais do que nunca, deve ser ensinado, como o senhor está a fazer, Monsenhor,
que a verdade libertadora, tanto para os indivíduos como para as sociedades, é
verdade sobrenatural na sua plenitude e pureza, sem atenuação ou diminuição ou
compromisso, apenas, numa palavra, como Nosso Senhor Jesus Cristo veio trazê-la
ao mundo, tal como Ele a confiou à custódia e magistério de Pedro e da sua
Igreja". (Carta de 16 de Março de 1917).
A segunda consequência,
que se segue à primeira, é que Jesus Cristo e a sua Igreja são necessários para
a Ordem Social. Se não fossem necessários, Deus não os teria imposto ao mundo
como meio de salvação.
43. Mas será que a Igreja
tem uma missão não só para com as almas, mas também para com as sociedades?
Sim, a Igreja e o Papa
têm uma tarefa divinamente imposta, não só para com as almas, mas também para
com as sociedades. Em primeiro lugar, só à Igreja na terra foi confiado o
depósito não só das verdades reveladas, mas também das verdades morais da ordem
natural. Sem a existência e a prática desta lei moral, nenhuma Sociedade pode
existir. Pertence, portanto, à Igreja ensinar as verdades primordiais que só
por si podem salvar o mundo e cada país em particular. Pertence também à Igreja
e apenas a ela a interpretação autorizada das leis da justiça natural que devem
reger as relações dos Povos entre si. É correto que assim seja. A Igreja deve
conduzir as nações ao seu fim último. A Igreja, portanto, deve conduzi-los ao
seu fim, através da sociedade em que Deus quer que vivam. Esta é a verdade
primordial do fim último querido por Deus e que o homem, que ilumina todas as
grandes questões, deve querer. Não é surpreendente que o desprezo por esta
verdade e pela lei que ela implica atraia castigos divinos? Não será a
impotência em que os governos que procuram a Paz das Nações se encontram um
verdadeiro castigo? Deus, a Igreja e o Papa estão encurralados, e as coisas
querem ser feitas sem eles. A consequência deste esquecimento criminoso é
fatal: quer ser feito sem Deus, e Deus deixa que as coisas sejam feitas sem
Ele. Nada de bom é feito.
44. Nestas condições os
homens devem ser ensinados, a todo o custo, a dependência de cada Sociedade de
Deus, do seu Cristo, e da Missão da Igreja.
Sem dúvida. Nestas
condições, os homens devem ser ensinados, a todo o custo, a dependência de cada
Sociedade de Deus, do seu Cristo e da Missão da Igreja. Sem dúvida. Há um
ditado comum: "Entre dois males é preciso escolher o menor". E
é uma certeza que o mal que vem do silêncio daqueles cuja missão é ensinar é o
mal maior e mais pernicioso. Jesus Cristo ou de uma forma categórica para
circunstâncias como estas, para estabelecer a Sua Verdade no mundo, se é
necessário sofrer sofrimento e perseguição, deve ser feito. É melhor martírio
do que o sacrifício e renúncia às verdades necessárias para a salvação.
VII – O ERRO FUNDAMENTAL
QUE REINA ATUALMENTE
45. Qual é o erro mais
pernicioso e prejudicial sobre o assunto com que estamos a lidar?
Sem dúvida, o erro mais
pernicioso e irredutível é aquele que diz que não há nem pode haver, nem para
os indivíduos nem para as sociedades, nenhuma verdade que se imponha a si
própria, ou seja, que exista. Assim, de facto e de jure, não
haveria, nem poderia haver, verdade ou erro. A consequência estritamente lógica
é que não haveria nem bem nem mal, nem certo nem errado. Todos os direitos
seriam dados tanto ao erro como à verdade, tanto ao bem como ao mal.
46 O que significa dar
direito ao erro?
É fácil de explicar este
ponto. Todos os organismos sociais oficiais e, particularmente, as
constituições dos Povos colocaram como base prática "A Declaração dos
Direitos do Homem" da Revolução Francesa de 1789. Os direitos humanos são
absolutos; o homem está à cabeça. Tudo, incluindo a Verdade, depende dele e foi
feito por ele.
47 Qual é o significado
da Declaração dos Direitos do Homem quando considerada do ponto de vista
da sociedade moderna?
Algo muito simples. Em
tempos anteriores, Deus era o centro, o início e o fim de tudo na organização
social e em relação ao indivíduo. As constituições das nações baseavam-se em
Deus, Jesus Cristo e na missão da Igreja, de acordo com os requisitos dos
direitos divinos. Mas de repente os direitos de Deus foram abolidos. Assim,
onde antes Deus era o Senhor e reinava como tal, o homem, cujos pensamentos e
vontades substituíram os pensamentos, a verdade, a vontade e a lei de Deus,
tomou o controle.
48. De que forma foram
estas teorias apresentadas ao público?
Este estado de coisas foi
instituído pela teoria das grandes liberdades modernas, que são a base das
constituições de todos os países. Existem as liberdades de consciência, ensino,
imprensa, associação e culto. Estas liberdades são moderadas por lei. A lei é a
expressão da vontade geral.
49. Qual é o significado
exato destas liberdades? Não significam que o homem deve ser inteiramente livre
para ensinar e praticar o bem?
Poderiam ser
compreendidos desta forma. Mas infelizmente, não é o significado que
corresponde à realidade. O liberalismo moderno compreendeu e aplicou estas
liberdades de forma muito diferente. Para o liberalismo, estas liberdades
consistem no fato de que cada um é livre de viver como quiser e de ensinar o
que quiser; de escrever e publicar o que quiser; de se associar para qualquer
fim, bom ou mau. Todos são livres de adorar quem quiserem, Deus, Jesus Cristo,
Maomé e o próprio Satanás se ele quiser.
50. E qual é a relação
entre esta teoria das liberdades modernas e o erro fundamental de que se tem
falado?
A relação é óbvia. Para
as Sociedades e Nações contemporâneas, e para o homem formado de acordo com os
Princípios de 1789, a verdade não existe; a única coisa que existe é o homem,
ou seja, o pensamento e a vontade do homem. Todos têm o direito estrito de conceber
e manter quaisquer ideias que desejem e de as estabelecer como diretivas da sua
vida. Esta é a prova manifesta de que para o homem só o seu próprio pensamento,
por ele conhecido e elaborado, existe como uma realidade da qual ele tem de ter
em conta. Fora dele próprio, a verdade não existe. Como consequência desta
doutrina, cada um tem o direito estrito de ensinar o que quer ensinar por
palavra ou por escrito. Também pela mesma razão, a lei que dirige os países é
válida na medida em que expressa a vontade geral conhecida por eleição e
votação, e não na medida em que expressa a Verdade e a Vontade Divinas. Em
suma, a lei moderna não reconhece nem professa qualquer verdade; apenas se
curva ao pensamento humano.
51. Então, atribui à Declaração
dos Direitos do Homem uma influência preponderante na mentalidade moderna e
nos erros predominantes?
Sem dúvida. Se, em nome
de um direito, o homem pode pensar o que gosta, se de repente pode, em nome do
mesmo direito (e isto é muito grave) querer o que gosta e agir como lhe
apetece, para ele não existe outro além dele próprio e os direitos de um homem
deificado, independente de toda a autoridade e de toda a verdade. Esta doutrina
permite todos os erros em todas as ordens de coisas. Na filosofia, na teologia,
na política, nas ciências econômicas e sociais, os pensamentos e caprichos do
homem predominariam e serviriam de guia. Mas o que dá a esta doutrina a sua
importância e a sua excepcional gravidade é que todos os direitos, que se diz
autor da Declaração de 1789, seriam devidos ao homem em lei estrita,
oficialmente reconhecidos e aprovados. Cada pensamento, palavra, ação etc.,
basear-se-iam nestes direitos e seriam inteiramente legítimos.
52. Mas não é verdade que
a Declaração dos Direitos do Homem coloca limites à ação humana?
Vejamos. De acordo com os
Princípios de 1789, os direitos do homem são limitados pelos direitos dos seus
semelhantes. Assim, o meu direito de tomar os bens de outrem é limitado pelo
direito de propriedade do seu vizinho. O meu direito a matar é limitado pelo
direito do meu semelhante à vida. Todos estes limites obtêm o seu
reconhecimento e valor na lei. Mas é imediatamente aparente que são ilógicos.
Se os meus direitos são absolutos em princípio, ninguém pode impor-lhes um limite.
Apesar de todas as restrições impostas pela lei, o dogma fundamental da
liberdade sem restrições e dos direitos irrestritos do homem prevalecerá sempre
contra a lei. A licença que seria dada a qualquer doutrina e ensino é
imediatamente visível. Sob a capa dos direitos do homem, os erros mais
perniciosos e monstruosos poderiam ser introduzidos nos organismos sociais, e
poderiam reivindicar legitimamente a proteção da autoridade, cuja função seria
proteger, não a Verdade, mas o pensamento do homem.
53. Ao dizer isto, está a
confrontar-se com todas as ideias que hoje em dia são admitidas, e a pôr fim ao
direito moderno.
De fato, desta forma,
todos os chamados princípios modernos são cortados na raiz.
54. Não poderia dar-me
uma noção exata do direito moderno?
Pode-se dar a noção dada
pelo Papa Leão XIII na sua colossal Encíclica Immortale Dei:
“Todos os homens, já que
são da mesma raça e da mesma natureza, são semelhantes, e, ipso facto, iguais
entre si na prática da vida; cada um depende tão bem só de si, que de modo
algum está sujeito à autoridade de outrem: pode com toda liberdade pensar sobre
qualquer coisa o que quiser, fazer o que lhe aprouver; ninguém tem o direito de
mandar aos outros. Numa sociedade fundada sobre estes princípios, a autoridade
pública é apenas a vontade do povo, o qual, só de si mesmo dependendo, é também
o único a mandar a si. Escolhe os seus mandatários, mas de tal sorte que lhes
delega menos o direito do que a função do poder, para exercê-la em seu nome. A
soberania de Deus é passada em silencia, exatamente como se Deus não existisse,
ou não se ocupasse em nada com a sociedade do gênero humano; ou então como se
os homens, quer em particular, quer em sociedade, não devessem nada a Deus, ou
como se pudesse imaginar-se um poder qualquer cuja causa, força, autoridade não
residisse inteira no próprio Deus. Destarte, como se vê, o Estado não outra
coisa mais senão a multidão soberana e que se governa por si mesma e desde que
o povo é considerado a fonte de todo o direito e de todo o poder, segue-se que
o Estado não se julga jungido a nenhuma obrigação para com Deus, não professa
oficialmente nenhuma religião, não é obrigado a perquirir qual é a única
verdadeira entre todas, nem a preferir uma às outras, nem a favorecer uma
principalmente; mas a todas deve atribuir a igualdade em direito, com este fim
apenas, de impedi-las de perturbarem a ordem pública. Por conseguinte, cada um
será livre de se fazer juiz de qualquer questão religiosa, cada um será livre
de abraçar a religião que prefere ou de não seguir nenhuma se nenhuma lhe
agradar. Daí decorrem necessariamente a liberdade sem freio de toda
consciência, a liberdade absoluta de adorar ou de não adorar a Deus, a licença
sem limites de pensar e de publicar os próprios pensamentos”.
Em suma, segundo o Papa
Leão XIII, os princípios do Direito Moderno são os seguintes: I – Todo o poder
e autoridade emanam do homem, esta é a primeira consequência da Declaração dos
Direitos do Homem; II – Este poder traduz-se na aceitação e prática da liberdade
mais absoluta: o homem não pode sofrer coerção ou obrigação, pois tem todos os
direitos; III – Uma vez que o direito de um homem pode ser oposto ao direito de
outro, o Direito Moderno estabelece uma restrição ao uso da liberdade absoluta:
o direito de um é limitado pelo direito de outro. Embora esta disposição seja
ilógica, é necessária a fim de evitar conflitos e os abusos que seriam
inevitáveis. Em qualquer sociedade organizada, a legislação é necessária. Esta
legislação tomará como base a vontade geral dos homens que pertencem a essa
Sociedade, e não Deus, Jesus Cristo e a Sua Lei Eterna. Os indivíduos nomeiam
os oficiais que expressarão a sua vontade no Parlamento. A legislação será
apenas a expressão da vontade da multidão. Este é o resultado dos Direitos do
Homem. Insistamos neste ponto capital: a vontade geral, que só pode ser
responsável perante si mesma, pode impor leis que são prejudiciais e contrárias
a todos os direitos. Contudo, estas leis tornam-se lei pelo facto de serem a
lei, ou seja, a expressão da vontade geral.
55 Haverá uma grande
diferença entre o Direito Moderno e o Direito Católico, fundado no Direito
Divino?
A diferença é enorme. O
Direito moderno baseia-se no homem. A lei católica é baseada em Deus. O direito
católico tem como ponto de vista o fim supremo e último do homem. O direito
moderno tem o homem e o seu fim, que é ele próprio, como o seu ponto de vista.
O Direito Católico tem em primeiro lugar em conta a dependência absoluta de
cada criatura de Deus e especialmente a dependência que lhe é devida por cada
sociedade e Estado. O Direito moderno estabelece que a união de vontades funda
a Sociedade sobre a vontade dos associados, independentemente de qualquer
vontade divina. O Direito Católico é o estabelecimento, por direito, do Reino
de Deus no indivíduo e na Sociedade. O Direito Moderno é a negação prática da
Verdade Católica e de toda a Verdade divina. É o estabelecimento oficial, e
consagrado por lei, do secularismo, do ateísmo e mesmo de todo o erro. Em suma,
o Direito Católico é a Lei, a autoridade e o poder que derivam do Direito,
colocados ao serviço da Verdade, que por si só salva indivíduos e Sociedades. O
direito moderno é a lei, a autoridade e o poder do Direito, colocado ao serviço
do homem, a fim de colocar as inteligências e os testamentos, as Sociedades e
os Estados juridicamente (e portanto legitimamente) ao nível do homem
deificado, ou seja, o princípio e o fim de todas as coisas. Compare as
Constituições dos Povos que provêm dos Princípios modernos com as que provêm
dos Princípios Católicos e terá uma pequena ideia das catástrofes produzidas
pelo Direito Moderno.
56 Não haverá um
liberalismo que, nestas matérias, faça uma distinção completamente admissível?
Existem diferentes tipos
de liberalismo. Não é apropriado falar aqui longamente sobre o assunto. Mas
limitar-nos-emos à substância da doutrina, que se manifesta sob dois aspectos
diferentes. Em primeiro lugar, há o liberalismo que atribui direitos ao Erro e
ao Mal, assim como à Verdade e ao Bem. Este é o princípio, como já foi dito, de
toda a licenciosidade. O Papa Leão XIII condena com razão este liberalismo como
herético e impiedoso. Mas há um liberalismo mais mitigado. Aquilo que por uma
estranha aberração é chamado liberalismo católico. Nas suas consequências, não
é menos pernicioso do que o primeiro. Sem afirmar que o Erro e o Mal têm
direitos, este liberalismo não afirma que eles não têm. Pelo contrário, é de
opinião que, em conformidade com o espírito de tolerância e caridade cristã, os
erros modernos e aqueles que os professam devem ser tratados como se esses
erros tivessem direitos. Ele declara que todos têm as suas opiniões e o direito
de as ter, e que ninguém deve ser perturbado por causa das suas opiniões ou
ideias. Praticamente isto está a colocar Erro e Verdade, Bem e Mal, em pé de
igualdade. Os resultados desta doutrina são altamente desastrosos, pois é
proclamado que não só aqueles que professam tal doutrina, mas a própria
doutrina que Deus condena, devem ser tratados com respeito.
Consideremos as palavras
do Papa Leão XIII na sua encíclica Libertas Praestantissimum:
“[P]odem-se distinguir
muitas espécies de liberalismo, porque existem para a vontade mais duma forma e
mais dum grau na recusa da obediência devida a Deus ou àqueles que participam
da sua autoridade divina.
A insurreição completa
contra o império supremo de Deus e recusar-lhe absolutamente toda a obediência,
quer seja na vida pública, quer na vida particular e doméstica, é a um tempo,
sem dúvida alguma, a maior depravação da liberdade e a pior espécie de
liberalismo. É sobre ela que devem cair, sem restrição, todas as censuras que
até aqui temos formulado.
Imediatamente depois vem
o sistema daqueles que, concedendo que se deve depender de Deus, autor e senhor
do universo, pois que toda a natureza é regida pela sua Providência, ousam
repudiar as regras da fé e da moral que, ultrapassando a ordem da natureza, nos
vêm da própria autoridade de Deus; ou pretendem, pelo menos, que não é preciso
tê-las em conta, principalmente nos negócios públicos do Estado. Qual a
gravidade do seu erro e quão pouco de acordo estão consigo mesmos, também o
vimos acima. É esta doutrina que deriva, como da sua fonte e princípio, o
pernicioso erro da separação da Igreja e do Estado; quando, pelo contrário, é
manifesto que estes dois poderes, embora diferentes na sua missão e na sua
dignidade, devem, todavia, entender-se na concórdia da sua ação e na
reciprocidade dos seus bons ofícios.
A este erro, como a um
gênero, se liga uma dupla opinião. Muitos, com efeito, querem uma separação
radical e total entre a Igreja e o Estado: consideram estes que, em tudo o que
diz respeito ao governo da sociedade humana, nas instituições, nos costumes,
nas leis, nas funções públicas, na instrução da juventude, se não deve fazer
caso da Igreja como se ela não existisse; apenas deixam aos membros individuais
da sociedade a faculdade de cumprirem particularmente, se quiserem, os deveres
da religião. Contra estes conservam toda a sua força os argumentos pelos quais
refutamos a opinião da separação da Igreja e do Estado, com a agravante de que
é completamente absurdo que a Igreja seja, ao mesmo tempo, respeitada pelo cidadão
e desprezada pelo Estado.
Os outros não põem em
dúvida a existência da Igreja, o que lhes seria impossível, mas tiram-lhe o
caráter e os direitos próprios duma sociedade perfeita, e querem que o seu
poder, privado de toda a autoridade legislativa, judicial e coercitiva, se
limite a dirigir pela exortação e pela persuasão aqueles que de bom grado e por
sua própria vontade se submetem a ela. E assim, nesta teoria, o caráter desta
divina sociedade é completamente desvirtuado, a sua autoridade, o seu magistério,
toda a sua ação é diminuída e restringida, ao mesmo temo que a ação e a
autoridade do poder civil são por eles exagerada até ao ponto de quererem que a
Igreja de Deus, como qualquer outra associação voluntária, seja colocada sob a
dependência e dominação do Estado. Para os convencer de erro, os apologistas
têm empregado poderosos argumentos que Nós mesmo não deixamos no olvido, deles
se conclui que, pela vontade de Deus, a Igreja possui todas as qualidades e
todos os direitos que caracterizam uma sociedade legítima, soberana e, em todos
os pontos, perfeita.
Muitos, finalmente, não
aprovam esta separação da Igreja e do Estado, mas julgam que é necessário
induzir a Igreja a ceder às circunstancias, fazer com que ela se acomode e se
preste ao que reclama a prudência destes tempos no governo das sociedades. Esta
opinião é boa quando entendida dum certo modo equitativo de proceder, conforme
com a verdade e com a justiça, a saber: que a Igreja, na expectativa certa dum
grande bem, se mostre indulgente e conceda às circunstâncias do tempo o que
pode conceder sem violar a santidade da sua missão. Mas sucede o contrário com
as práticas e doutrinas que a relaxação dos costumes e os erros correntes
introduziram contra o direito. Não pode haver época alguma sem religião,
verdade e justiça; e como estas grandes e santas coisas Deus as colocou sob a
guarda da Igreja, nada há tão estranho como pretender que deixe passar sem
reparo o que é falso ou injusto, ou que se torne conivente com o que prejudicar
a religião”.
57. Mas, apesar de tudo,
não será preferível agir desta forma?
Certamente que não. Há
duas razões para não estar em conformidade com os pontos de vista do chamado
liberalismo católico. A primeira é que para este liberalismo Deus e Jesus
Cristo estão privados da sua glória na ordem social. Devido à posição do
chamado liberalismo católico, Deus nunca será reconhecido, amado e glorificado
como Ele deveria ser seriamente. A segunda razão é o perigo de condenação das
almas numa Sociedade formada de acordo com os princípios do chamado liberalismo
católico. O catolicismo é essencialmente um invasor e um educador. Se não
invade, não educa de acordo com o Espírito de Cristo. Este liberalismo forma um
meio em que a atmosfera se torna fatalmente acatólica e mesmo ateia. Desta
forma, o liberalismo, chamado católico, contribui para a perda de incontáveis
almas.
58. Mas o Papa Leão XIII
fala sobretudo dos males causados pelo laicismo, então por que falar da questão
do liberalismo?
É bastante evidente que o
secularismo reina na ordem social devido aos princípios do liberalismo.
Qualquer que seja o significado dado à palavra secularismo, deve
admitir-se que a doutrina oferecida ao povo sob este nome coloca o homem no
lugar de Deus. O homem deve reinar onde só Deus possui autoridade. Bem, todas
as teorias deste tipo provêm da Declaração dos Direitos do Homem e da
liberdade de que goza sobre e contra tudo, em particular contra Deus. O
secularismo vem diretamente do liberalismo. O liberalismo é o seu maior apoio,
e justifica-o como uma revolta contra o Ser Supremo.
VIII –DIREITOS
INTANGÍVEIS DA VERDADE E DO BEM
59. Só a Verdade e o Bem
têm direitos?
É claro que sim.
60. Como é que prova a
sua afirmação?
Por argumentos teológicos
e filosóficos.
61 Quais são os
argumentos filosóficos?
O nada não tem direitos,
uma vez que não existe. É impossível que o que não existe possa ter direitos.
Atribuir direitos ao nada é uma injustiça. Agora, o que significa atribuir
direitos ao erro? Significa a atribuição de um direito ao nada. Para
compreender isto é suficiente perceber o que são Verdade e Erro. A verdade
encontra-se na inteligência, na medida em que a inteligência reproduz
exatamente a realidade existente. Quando a inteligência produz intelectualmente
em si uma coisa que não existe, somos confrontados com o erro. E o que acontece
num caso destes? Tenho tal ideia de uma coisa na minha mente, de modo que para
mim é como se ela existisse. Atribuo-lhe, portanto, o direito de estar na minha
mente como se de fato existisse. Mas na realidade, não existe. E uma vez que
não existe numa criação da minha mente, sem qualquer fundamento, como posso
então tornar realidade uma realidade que não existe o fundamento da minha vida
e obra? Qual será o resultado de uma tal aberração? O resultado será o mesmo
que para um edifício erguido sem fundações. Se eu colocar como fundamento da
minha vida e das minhas ações uma ideia própria que não corresponde a nada
objetivo e real, todo o edifício intelectual e social que construo sobre esta
base está necessariamente condenado ao colapso. A única base possível para a
vida e a ação deve ser uma verdadeira realidade. Por esta razão, só a Verdade
tem, na ordem individual e social, o direito de existir. De nenhum ponto de
vista se pode reivindicar por erro este direito. E se se realiza numa
inteligência ou nas massas, é usurpar direitos que não lhe pertencem, e,
portanto, cometer injustiça.
62. Que argumentos
teológicos apoiam a sua afirmação?
A afirmação baseia-se na
Revelação feita ao mundo por Jesus Cristo. Nosso Senhor veio ao mundo para o
salvar como um todo e a cada homem em particular. Para este fim, Ele revelou ao
mundo a Verdade. Esta Verdade pertence-lhe em nome do Seu direito divino e também
em nome da Sua Obra Redentora. Se esta Verdade lhe pertence e se foi dada ao
mundo através dele num sentido muito específico e com um propósito muito
específico, estragá-la ou diminuí-la é uma injustiça. Isso seria sacrificar o
direito de Cristo.
63. Mas nestas condições
só há lugar para a Verdade. O que dizer então da bem conhecida distinção entre
tese e hipótese?
De facto, só há lugar
para a Verdade e o Bem. Quanto à distinção entre tese e hipótese, é necessário
compreendê-la bem, pois de facto, o recurso a esta distinção tem sido a causa
da perda de muitas almas.
64. Mas será que a Igreja
não aprovou tal distinção?
De modo algum. É uma
subtileza inventada por certos teólogos, que a utilizam para formar uma
consciência ou para sair do caminho.
65. poderia explicar esta
distinção e como é utilizada?
Por tese entendemos a
situação em que a Verdade e o Bem gozam de todos os seus direitos. Assim, no
estado de tese, a Santíssima Trindade, Jesus Cristo e a Igreja têm no país e
entre as nações o lugar que é seu por direito. Neste caso, vive-se praticamente
sob o domínio de Jesus Cristo e da sua Igreja. Ao contrário desta situação na
lei, encontramo-nos noutra situação de fato. De fato, Jesus Cristo não exerce o
seu domínio sobre as sociedades; de fato, a Verdade e o Bem não gozam das
prerrogativas que lhes são devidas. Mais: o Mundo e os Estados são corruptos. A
sua corrupção é tal que é praticamente impossível pensar, neste momento, em
restaurar à Verdade e ao Bem o que é para eles um direito estrito. Este é o
estado de hipótese, ou seja, o estado em que nos encontramos, confrontados com
o poder – poder muitas vezes organizado – dos inimigos de Jesus Cristo e da
Igreja. O que fazer em tal caso? Ninguém tem o direito de trair a Verdade e o
Bem, ninguém tem o direito de negar Deus e a Igreja, mas nas atuais
circunstâncias nada pode ser feito para melhorar esta situação. É de notar,
contudo, que esta tolerância é uma mera tolerância e não uma aprovação. Nesse
caso, todos devem reter na sua alma a vontade firme de dar à Verdade e ao Bem
os direitos a que têm direito. E além disso, deve fazer uso da liberdade
concedida a todos, para fazer o bem e especialmente para difundir os princípios
da Verdade em todas as coisas, e assim, insensivelmente, voltar de novo ao estado
de tese.
66. Não disse que, ao
recorrer a esta distinção, se fez um grande mal?
Sim, para muitos
católicos aceitou-o sem distinção como um meio de se libertarem dos seus
deveres apostólicos. É simplesmente declarado: "estamos num estado de
hipótese", e nada é feito para voltar ao estado de tese. Este é um dos
primeiros efeitos desastrosos desta distinção. E outra decorre da anterior:
esta distinção, ao acalmar e descansar as consciências dos militantes, cria uma
atmosfera de inação e por vezes de desânimo do lado social. A tal ponto que as
pessoas habituam-se a respirar uma tal atmosfera que já não se apercebem do
veneno que ela traz consigo e o absorvem inconscientemente. Escusado será dizer
que as palavras de Nosso Senhor, "Sim, sim; não, não", devem
ser novamente postas em prática. Estas palavras do Mestre Divino só podem ser
realizadas numa adesão franca, leal e sincera aos princípios da Verdade que
devem orientar a Ordem Social para Deus. O que já foi dito deve ser dito
novamente. Se a distinção entre tese e hipótese diminui na prática a ação e
missão educativa da Igreja entre as nações, ela falha parcialmente na sua
missão. Não só as almas não são santificadas, como ficam entorpecidas e acabam
por ficar na indiferença prática.
67. Permitam-me que apresente
uma dificuldade. Quando estamos no estado de hipótese, tolera-se a existência
de erro; e quando estamos no estado de tese, não se tolera a existência de
erro. Nesse caso, estamos sujeitos a ver surgir um estado de tirania em todo o
lado, sob a proteção do Supremo Domínio de Deus e da Realeza de Cristo.
Esta é a dificuldade que
os incrédulos nos opõem. Parece que nos dizem: “quando são os senhores, são
de uma exigência exorbitante, e podemos esperar de vós o mais inesperado.
Quando não são os senhores da situação, reclamam a liberdade que negam aos
outros”. Para julgar esta questão, é necessário que nos coloquemos à frente
da verdadeira realidade. Estas realidades são: que o homem está neste mundo
para salvar a sua alma, que é confrontado com a temível alternativa de ser
salvo ou condenado eternamente. Não há meio-termo. E sabemos que estas são as
exigências divinas. Para ser salvo, o homem deve morrer em estado de graça,
para que não possa haver maior crueldade para com o homem do que proporcionar-lhe
os meios de estar perdido. E não lhe pode ser dada maior e mais verdadeira
caridade do que contribuir para obter para ele a sua Eterna Beatitude. Agora,
as modernas Constituições, que permitem e consagram todas as perversões do
espírito e do coração, proporcionam às almas todas as facilidades para a sua
condenação. Dito isto, eis, em duas palavras, a resposta à dificuldade que é
proposta: I – Inquestionavelmente, se fôssemos senhores da situação, faríamos
todo o possível para que uma alma não fosse condenada; II – Lembremo-nos que
existe uma diferença entre a Ordem Social e a Ordem Individual. Na ordem
estritamente individual, não podemos fazer violência às consciências. Mas se,
apesar de nós e contra a nossa vontade, alguém quiser condenar-se a si próprio,
a questão é sua. Consequentemente, se alguém obstinadamente recusar a
obediência a Cristo e à Igreja, deixaremos isso à sua própria consciência,
desde que não cause escândalo. Dizemos, desde que não cause escândalo, porque é
evidente que não podemos tolerar que a descrença de um indivíduo prejudique o
bem geral de uma Sociedade ou País, ou mesmo o bem particular de uma alma.
Portanto: III – Proibimos a propagação de qualquer erro ou maldade. Este é o
sentido no qual suprimiríamos dos Códigos e Constituições dos Países as grandes
liberdades modernas.
IX – O PECADO DO
LIBERALISMO: PECADO DA EUROPA E DO MUNDO
68. Será o liberalismo um
pecado?
É claro que sim. As boas
intenções, a falta de conhecimento e o ambiente atual devem ser tidos em conta,
o que diminui a responsabilidade; mas se considerarmos as coisas em si, o
liberalismo é um pecado da inteligência.
69. Como se deve entender
este pecado da inteligência?
Lembre-se do que foi dito
em resposta à pergunta 18. O pecado que aí foi apontado é um pecado da
inteligência. Este pecado, que é o Liberalismo, significa uma injustiça suprema
e um prejuízo para Deus, pois na Declaração dos Direitos do Homem e nas
liberdades que dela derivam, o homem é substituído por Deus.
Foi assim que as coisas
aconteceram. De acordo com princípios e leis modernas, só o homem pode e deve
estar onde Deus – porque ele é Deus – deve estar. Sendo o Criador e Dono
absoluto, pela própria natureza das coisas, Ele é Deus da consciência
individual, bem como da Sociedade, das Nações e do Universo. Mas suprimindo-O,
o espírito humano coloca o homem e o pensamento humano no Seu lugar, como
substituto de Deus, ou seja, deificado, como o mestre absoluto e árbitro do seu
destino pessoal e social, nacional, internacional e mundial.
O homem é e declara-se a
si mesmo o mestre. E se, na sua sabedoria, ele achar conveniente, submeter-se-á
àqueles que no seu pensamento acredita serem "Deus",
"Cristo", "a Igreja", sem que isso o impeça, porque ele é o
mestre da sua própria consciência. Mas não é o mesmo em relação à introdução
deste Deus e da Sua Igreja na Sociedade e nos Estados. Porque o homem substitui
Deus, qualquer pessoa que queira restaurar Deus ao Seu legítimo lugar torna-se
o inimigo do homem, que é o mestre do Universo e da Ordem Social.
Pela força, Deus é um
usurpador. A Igreja é uma usurpadora. Todos os esforços da Igreja para cumprir
a sua missão na Ordem Social são inevitavelmente uma intrusão clerical na
Sociedade. A secularização geral e universal é necessária. O indivíduo é
secularizado. Nele apenas uma grandeza humana, feita de princípios naturais de
humanidade, justiça, bondade etc., deve ser reconhecida. Todas as instituições
sociais devem ser laicizadas: os Estados, as constituições dos povos e a sua
legislação, os governos, os parlamentos, os senados, todos os organismos
oficiais, todas as instituições públicas, e mesmo as instituições privadas,
assim que entram em contato com um organismo oficial, devem ser marcados apenas
com um carácter humano.
A impressão sobrenatural
é obliterada em todos os planos. Não deve haver uma ordem sobrenatural. Se a
Igreja sobreviver devido à vontade dos indivíduos, o máximo que pode ser é uma
sociedade privada sem qualquer direito público. Do ponto de vista social, só
pode gozar dos direitos e privilégios que o homem lhe concede. Um governo
composto por indivíduos católicos pode ser-lhe favorável, mas este favor virá
necessariamente do homem, que, de direito, o concederá ou o reterá como lhe
apetecer.
Em suma: é a suprema
injustiça, pois o Estado Supremo é privado do seu direito absoluto. É o dano
supremo, porque depois de o ter privado injustamente, é declarado como
usurpador.
70. Como é que as
liberdades modernas chegam a esta conclusão fatal?
Já foi dito que para o
homem moderno a única verdade que existe é o pensamento do homem. Devido a
isto, cada Sociedade e cada Estado fundado nos princípios de 1789 é colocado na
impossibilidade de reconhecer ou professar qualquer verdade; de reconhecer ou
professar qualquer culto. Esta é a consequência lógica das grandes liberdades
modernas. Vamos explicar. Tomemos como
exemplo a liberdade de ensino. Um tal professor ensina o seguinte: "Deus
existe"; "Jesus Cristo é Deus"; "A Igreja Católica é uma
obra divina". De acordo com estes princípios, o Estado deve permitir isto.
Tal outro professor ensina as doutrinas contraditórias com as primeiras:
"Deus não existe"; "Jesus Cristo não é Deus"; "A
Igreja é uma grande conspiração". De acordo com os mesmos princípios, o
Estado também deve permitir isto. Ou seja, o Estado não aprova nem apoia nenhum
destes ensinamentos, nem reconhece nenhum deles como verdade. Deve protegê-los
a todos com o mesmo título constitucional e no mesmo grau.
A única verdade para ele
é que todos têm a liberdade da educação. Do ponto de vista estritamente lógico,
o Estado Moderno é necessariamente ateu e de pensamento livre, porque as
constituições dos Estados são de pensamento livre, ateu ou mais precisamente
"sem verdade", ou seja, na prática, contra a verdade, contra Deus.
Quando o Estado moderno é
confrontado com uma verdade realmente existente, por exemplo a primeira
verdade: Deus, qual deve ser a sua atitude perante a dor de renunciar aos seus
princípios? É necessário que se ignore que na proposta "Deus existe"
a verdade está para ser encontrada. É necessário que ele não adira a tal
proposta. Pois se ele aderisse, proclamaria o seu conhecimento da verdade e a
sua vontade de concordar. E nem um nem o outro lhe é permitido. A sua atitude
deve ser a mesma para cada um destes ensinamentos: "Deus existe" e
"Deus não existe". Socialmente, o Estado Moderno deve ignorar se a
verdade existe. Deve opor-se a qualquer ensino que o penetre com o título da
verdade. Esta introdução da verdade seria uma superioridade sobre o Estado e a
constituição dos países. E isso não pode ser.
Os Estados e as
Constituições dos Povos devem opor-se à ação da Verdade para continuarem a ser
o que são, ou seja, ateísta, oposta a qualquer princípio que os priva do
domínio e controlo do seu próprio destino, e na prática contra Deus, contra
Cristo e contra a Igreja.
Pelo contrário, cada
pensamento, como o pensamento do homem, tem o direito de ser ensinado. Tem,
portanto, o sufrágio do Estado. A razão é convincente. O Estado reconhece
apenas o homem. O pensamento humano e cada ideia é um produto do espírito
humano. Ao ensiná-los, nada de superior ao homem é introduzido na Sociedade.
Que "Deus
existe", "A Igreja Católica é divina", são pensamentos que podem
ser ensinados na lei, não porque expressam verdade objetiva, mas porque alguns
sujeitos do Estado acreditam que estes pensamentos são bons e de utilidade
privada ou pública. Da mesma forma pode ser ensinado que "Deus não
existe" e que "A Igreja Católica é um embuste".
O mesmo se aplicará
logicamente ao ensino do roubo, assassinato, imoralidade e assassinato. A
legislação que contradiz os princípios do Estado condena e executa o infeliz
que chega aos feitos, mas não proíbe o ensino que conduz a esses caminhos.
Assim, o Estado ensina, através dos seus sujeitos, o pensamento dos seus
sujeitos. Isto é como deve ser, uma vez que só conhece o homem e o que dele
provém.
É desta forma que os Princípios
Modernos e o Direito Moderno conduzem fatalmente a uma injustiça suprema e a um
prejuízo para Deus.
Estes são os termos em
que o Papa Leão XIII se expressou na sua carta ao Arcebispo de Bogotá: "Quando
se trata de como se comportar em política, os católicos são solicitados por
interesses opostos e tornam-se exasperados em discórdias violentas que
resultam, na maioria das vezes, de interpretações divergentes da doutrina
católica do liberalismo[...] O Sumo Pontífice ensina que o princípio e o fundamento
do liberalismo é a rejeição da lei divina: o que os partidários do naturalismo
ou racionalismo querem na filosofia, os partidários do liberalismo querem na
ordem moral e civil, pois introduzem os princípios do naturalismo nos costumes
e na prática da vida. E o ponto de partida de todo o racionalismo é a soberania
da razão humana, que, rejeitando a submissão devido à razão divina e eterna, e
afirmando depender apenas de si própria, se considera, e apenas a si própria,
como o princípio supremo, a fonte e o juiz da verdade. Esta é a reivindicação
daquilo a que chamámos os defensores do liberalismo. Segundo eles, não há poder
divino a ser obedecido na prática da vida, mas cada homem é a sua própria lei.
Daí vem esta moralidade dita independente, que, sob o pretexto da liberdade, se
afasta da observância dos preceitos divinos, e dá ao homem uma licença
ilimitada. Este é o primeiro e mais pernicioso dos graus de liberalismo,
enquanto, por um lado, rejeita ou, melhor ainda, destrói totalmente toda a
autoridade e lei divina, seja ela natural ou sobrenatural, por outro lado
afirma que a constituição da Sociedade depende da vontade de cada indivíduo, e
que o poder supremo vem da multidão como da sua primeira fonte".
71. Nesta forma de agir
do liberalismo, não haverá uma injustiça para com o homem?
Para ser completo na
resposta, seria necessário explicar o dogma da Redenção, mostrar uma vez mais
os direitos de Jesus Cristo sobre toda a inteligência e toda a vontade, e mostrar
como o liberalismo, usurpando os direitos divinos, peca contra Jesus Cristo.
Mas esta injustiça existe e manifesta-se de outra forma. Jesus Cristo, ao
redimir o homem pela Sua Redenção, adquiriu direitos incontestáveis sobre o
homem, que se tornam em Cristo os direitos do homem. Expliquemos: imaginemos
que uma coisa é necessária para a nossa salvação; por exemplo, para a nossa
santificação é necessário que Jesus Cristo seja teórica e praticamente Rei do
Universo e das almas. Tenho, portanto, o direito, desde que Jesus Cristo o
adquiriu para mim, de que a Sociedade seja colocada sob a sua direção. Tenho o
direito, em Jesus Cristo e através de Jesus Cristo, de que a Sociedade seja
cristã e católica, de que os Estados sejam católicos. Como Louis Veuillot disse,
com fama: "O povo tem o direito de Jesus Cristo". Este direito
é tanto mais digno de respeito quanto não pertence ao homem, mas apenas na
medida em que o próprio Jesus Cristo o concedeu ao homem.
72. Que atitude criam na
prática os princípios liberais na mente das pessoas?
O resultado direto do
liberalismo é a anarquia ou tirania. É evidente que a anarquia vem do
liberalismo, como consequência do seu princípio. Repitamo-lo pela enésima vez:
de acordo com as constituições modernas, todos têm o direito de pensar como
quiserem, e de viver como pensam. E se o pensamento serve como uma linha de
conduta para todos, sem a restrição da verdade objetiva, é evidente que estamos
a caminhar para o maior desenfreado excesso de espírito e de ação. Por outro
lado, a consequência fatal do liberalismo é a tirania. Mais de uma vez já
demonstramos que para refrear todo o descontrole de espírito, coração e paixão,
a vontade geral é invocada, e tornou-se necessário fazer leis, de modo que só a
lei cria o direito. Mas se a lei representa a vontade geral do povo, e se este
povo é conduzido por uma vontade maligna, ateia, impiedosa e imoral, o que
podemos esperar senão tirania? É governado em nome do povo; e em nome do povo
serão impostas as injustiças mais alarmantes e muitas vezes as mais
caprichosas. A anarquia e o sovietismo descendem dela por uma linha direta. O
liberalismo coloca um fim a toda a ordem na base, em qualquer Sociedade que
seja.
73. Os Princípios
Modernos têm alguma influência sobre a salvação das almas?
O Papa Leão XIII fala
nestas palavras de uma das consequências do liberalismo: “O número de almas
que são condenadas devido às condições que os princípios do direito moderno
estabelecem entre o povo é incalculável”.
Tomemos, por exemplo, o
mal causado apenas pela liberdade de imprensa. Quantas almas são corrompidas
pela leitura de maus jornais, as publicações imorais e ímpias que abundam em
todos os países. Quantas almas são condenadas para sempre devido à proteção
concedida pela lei a todas as publicações literárias, científicas etc. Quantas
almas que já foram condenadas neste momento, não teriam sido condenadas se esta
maldita liberdade de imprensa não tivesse existido. O mesmo se aplica à
liberdade de educação. E nada mais é do que esta liberdade absoluta, que é
benevolentemente concedida àqueles que inventam perturbações, que lhes permite
ensinar as suas doutrinas e corromper os espíritos.
74. Na teoria que acabou
de explicar, não é verdade que a distinção entre tese e hipótese é novamente
condenada?
Exatamente. A fim de
realizar o mal causado pelo chamado liberalismo "católico", é
necessário colocar-se no ponto de vista que acaba de ser explicado. O
tranquilizar e adormecer das consciências não impedem a existência do mal, mas
impedem que o bem se propague.
X – OS CASTIGOS QUE DEUS
MANDA AOS PAÍSES E NAÇÕES QUE ABANDONAM AO SENHOR
75. Deus nesta vida
castiga as nações culpadas?
É bastante difícil
responder a esta pergunta de forma clara e completa. Entre os católicos
mergulhados no liberalismo, a teoria do castigo infligido às nações culpadas
não é aceite.
76. Em que base os
católicos afirmam que a expiação tem lugar neste mundo para as Sociedades?
A teoria em que nos
apoiamos é a seguinte: os indivíduos que cometeram falhas podem expiar por elas
neste mundo. Se não expiarem por eles aqui, expiarão por eles na eternidade. Os
indivíduos serão punidos na medida dos pecados que cometeram, quer no
Purgatório, fazendo reparações por eles, quer no inferno, sofrendo tormentos
eternos. As sociedades enquanto tais não entram na eternidade. Se se tornaram
culpados, só podem ser punidos neste mundo. E uma vez que o seu pecado é um
pecado contra a justiça, exige uma reparação. Por esta razão, os países que
abandonaram o Senhor devem expiar e reparar aqui, neste mundo, pelo que a
Sabedoria de Deus deve infligir aos Povos os castigos de acordo com os Seus
eternos desígnios.
77. Quais são os castigos
de acordo com os desígnios eternos?
Países e povos, como
qualquer Sociedade, devem a Deus, em estrita justiça, se são culpados,
reparação e expiação. A medida desta expiação, especialmente quando se trata de
ter o seu cumprimento através de castigos divinos, está nas mãos da sabedoria
divina e de decretos. Deus não é obrigado a infligir um castigo social porque
este castigo tem sido merecido. Muito frequentemente, pode-se mesmo dizer
sempre, Deus comporta-se para com as pessoas segundo os Seus desígnios de
misericórdia e amor, guiado pelo Seu desejo de salvar almas. Num castigo
social, preparado, querido e posto em prática por Ele, encontramos sempre a
vontade salvífica de Deus. Através do castigo social, Deus quer mover almas e
devolvê-las a Si próprio. Por esta razão, não é fácil conhecer os planos
eternos de Deus no castigo com que Ele fere os países. O que devemos considerar
é que Deus pode punir, que Ele pune, e que para evitar estas punições é
necessário que toda a ordem social se submeta a Ele.
78. O que foi dito parece
correto. Mas poderão estes ensinamentos ser confirmados por palavras e
doutrinas enunciadas pelas Autoridades que governam a Igreja?
Os Papas e os Bispos
falaram muito clara e inequivocamente pronunciaram os seus pensamentos. O Papa
Pio XI escreveu na sua primeira encíclica (Ubi Arcano):
"Muito antes de a
guerra incendiar a Europa, a principal causa de tantos males já estava em ação
com força crescente, tanto por culpa de indivíduos como das nações; uma causa
que o próprio horror da guerra teria eliminado se todos tivessem compreendido o
significado destes terríveis acontecimentos [...] Porque se separaram miseravelmente
de Deus e de Jesus Cristo, os homens caíram da sua felicidade passada neste
abismo de males; pela mesma razão, todos os programas que conspiraram para
reparar as perdas e para salvar o que resta no meio de tanta ruína, caíram numa
esterilidade quase completa. Desde que Jesus Cristo foi excluído da legislação
e dos assuntos públicos, as leis perderam a garantia de sanções reais e
eficazes".
No seu discurso
consistório de 24 de dezembro de 1917, o Papa Bento XV declarou solenemente:
"Tal como o
desarranjo dos sentidos mergulhou em tempos as cidades mais célebres num mar de
fogo, também nos nossos dias a impiedade da vida pública, o ateísmo que se
tornou o sistema da chamada civilização, mergulhou o mundo num mar de
sangue".
O mesmo Papa no mesmo
discurso afirma que "as atuais calamidades não terminarão até que o
gênero humano se volte para Deus".
79. Com que castigos é
que Deus aflige as nações culpadas?
Todas as calamidades que
podem levar as nações à reflexão servem para o cumprimento dos planos de Deus.
Guerra, doenças, catástrofes de todo o tipo e, sobretudo, calamidades de ordem
intelectual e moral podem afetá-los e levá-los ao arrependimento.
Nosso Senhor Jesus Cristo
fala-nos de todos estes males. Ele fala especialmente do grande mal da
cegueira. Dirigindo-se aos judeus: Este povo não compreenderá, disse ele,
porque não podem compreender, e não podem compreender porque não querem
compreender.
Estas palavras devem ser
entendidas no sentido de um castigo social. Não há nada pior do que sermos nós
próprios a causa do nosso próprio mal, porque não queremos compreender. Os
judeus – e Nosso Senhor reprovou-os – não compreendem que Ele é o Messias, o
Filho de Deus, quando para a nação judaica o único meio de salvação é o reconhecimento
e a profissão da Fé na Divindade de Jesus Cristo. No entanto, o povo judeu
teimosamente recusa-se a compreender que esta é a realidade, e Deus fala-lhes
desta forma: “Ó povo que é o meu povo, só há um meio de salvação para vós:
Jesus Cristo. Aceite-o e será salvo”. E o povo responde: “não quero
compreender que esta é a realidade”. E Deus responde: “Como não queres
compreender, Eu aceito a tua vontade: não compreenderás. Este é o castigo que
vos dou”. O mesmo se passa com a Sociedade Católica dos nossos dias. A fim
de salvar a ordem social e o povo, devem começar por compreender que só Jesus
Cristo é a sua salvação. Mas eles não querem compreender isto. Deus está
satisfeito com a sua vontade teimosa. Eles não compreendem, não veem, nem podem
ver em Jesus Cristo somente a sua Salvação: tal é o seu castigo. A este ponto
de vista geral são acrescentados muitos outros, de uma ordem mais especial. Não
compreendem que é necessário suprimir na Ordem Social os princípios do Direito
Moderno, as grandes liberdades modernas. Não se compreende que seja necessário
negar a liberdade de opinião a todos. Não se compreende que seja necessário, a
todo o custo, opor-se à invasão de princípios perversos e favorecer apenas a
verdade católica. Há muitas coisas que não são compreendidas. Tudo isto denota
o carácter e a marca de um castigo que aflige os Países e os leva à sua
desgraça. O Papa Leão XIII escreveu em 1881: "Como consequência fatal
da guerra travada contra a Igreja, a sociedade civil está agora exposta aos
mais graves perigos, uma vez que os fundamentos da ordem pública foram
abalados, e os povos e os seus líderes veem perante eles apenas ameaças e
calamidades". E o mesmo Papa também escreveu: "De todos os
ataques cometidos contra a religião católica vieram e continuarão a vir sobre
as nações os piores e mais numerosos males".
XI – REMÉDIOS AOS MALES
ATUAIS
81. Quais são os remédios
para os grandes males que assolam o mundo inteiro e cada país em particular?
A esta pergunta, o Papa
Leão XIII dá a resposta. Eis as palavras em que se exprime:
"Este é o segredo do
problema: quando um ser orgânico perece e se torna corrupto, é porque deixou de
estar sob a ação das causas que lhe tinham dado a sua forma e constituição.
Para o restituir à saúde e ao vigor, não é de duvidar que tenha de ser
novamente sujeito à ação vivificadora destas mesmas causas. Agora, porém, a atual
Sociedade, na sua louca tentativa de estar fora do alcance de Deus, rejeitou a
ordem sobrenatural e a revelação divina; retirou-se assim da eficácia salutar
do cristianismo, que é manifestamente a garantia mais sólida da ordem, o bem
mais forte da fraternidade, e a fonte inesgotável de virtudes privadas e
públicas [...] Desta negligência surgiu o tumulto que encontramos hoje. Esta
sociedade mal orientada deve portanto regressar ao seio do cristianismo se
estiver interessada no seu bem-estar, no seu descanso e na sua salvação".
Noutro lugar o mesmo Papa
diz:
"Voltar aos
princípios cristãos e conformar-se com eles toda a vida, costumes e
instituições do povo é uma necessidade que se torna cada vez mais evidente a
cada dia que passa. Do desprezo em que estas regras foram relegadas, surgiram
males tão grandes, que só um homem tolo poderia considerar, sem ansiedade
dolorosa, as provações do presente, ou não prever sem medo as perspectivas do
futuro".
82. Existe algum meio
eficaz para aplicar estes remédios?
Quando Jesus Cristo veio
à terra e Deus lhe confiou a sua missão, o objetivo era a salvação dos povos de
todas as épocas. O Divino Mestre disse: "Estarei convosco até a
consumação dos séculos". O que era o mundo na altura do nascimento de
Jesus Cristo? Todas as nações e Povos, exceto o povo judeu, foram vítimas do
erro, impiedade e imoralidade do paganismo. Numa palavra: o gênero humano foi
vítima do pecado e perdeu-se por causa dele. O homem, que devia a Deus
adoração, amor, reparação, reconhecimento, ação de graças e petição, já não
podia esperar da justiça divina, mas o golpe da justiça. O que faz Jesus
Cristo? Ele quer tornar o homem capaz de dar os seus deveres a Deus de uma
forma digna. Esta capacidade e este poder, único entre as criaturas, Jesus-Homem
possui em si mesmo. Ele toma para si a totalidade do pecado do gênero humano e
faz a reparação por ele; e dá ao homem a capacidade de adorar dignamente, de
fazer a reparação dignamente, de dar graças dignamente e de pedir dignamente.
Deus castiga Jesus. A justiça é satisfeita e o mundo é salvo. Os povos
prostram-se perante o Crucifixo. Com Constantino, a Cruz ascende ao Trono, e
Jesus Cristo, Rei dos Povos, preside aos destinos das Nações. Pela Sua Imolação
e Sacrifício, Jesus Cristo salvou o mundo. Quem pode então salvar o mundo dos
males atuais? Apenas Jesus Cristo, pela aplicação dos méritos da Sua Paixão e
Morte às nações, bem como aos indivíduos.
83. Como é que Deus fará
com que isto seja eficaz?
Eis o lugar para
compreender e aplicar as palavras do Apóstolo Paulo: “Adimpleo ea quac
desunt Passionum Christi in carne mea, pro corpore suo quod est Ecciesia” –
"Cumpro na minha carne o que resta a padecer a Jesus Cristo pelo seu
Corpo, que é a Igreja". As palavras do grande Apóstolo são
significativas.
84. Sim, estas palavras
são significativas, mas ainda é necessário compreender o seu significado.
Pode-se dizer que falta algo na Paixão de Cristo?
Isso seria um erro grave.
Jesus Cristo plenamente satisfeito por todos os homens do passado, presente e
futuro. Ele não se contentou em tomar sobre si os pecados individuais dos
homens, nem em tomar sobre si o grande pecado social que consiste na injustiça
e injustiça feita a Deus, que já explicamos. Ele tomou sobre si o pecado da
humanidade na totalidade do seu pecado. Segundo o ensinamento do Apóstolo
Paulo, Deus constituiu-o pecado: "Tuni qui non noverat peccatum, pro
nobis peccatum fécit". Deus na realidade constituiu-O pecado no lugar
da humanidade culpada. Castigou-O porque viu nele o pecado que Ele próprio assumiu.
Pela Sua imolação e sacrifício, Jesus Cristo realizou a obra da redenção, mas
Ele quer unir à Sua ação a ação das almas que querem redimir o mundo com Ele.
Isto explica as palavras do grande Apóstolo.
85. Ele parece significar
que certas almas estão mais estreitamente unidas à obra redentora de Cristo.
Este mistério é revelado
pelo Apóstolo Paulo. Ele diz-nos que realiza para a Igreja uma obra que está
ligada à Paixão de Jesus Cristo. Uma vez que a Paixão de Jesus Cristo converteu
o universo, se Jesus Cristo me pede para fazer meus os Seus sofrimentos, ou,
além disso, me inspira a tomar sobre mim, em parte, o pecado da humanidade que
Ele tomou sobre Si na sua totalidade, não posso recusar este fardo, mas
contribuir por ele para a salvação das nações.
86. Nestas condições,
considera a intervenção da criatura, ou seja, da alma fiel, como necessária à
obra de Cristo.
Não é necessário
exagerar. Observamos que existe uma doutrina pregada pelo Apóstolo sob a
inspiração do Espírito Santo. Esta doutrina afirma: por amor a Deus e à
humanidade, Jesus Cristo tornou-se pecado no lugar da humanidade. Em vez de
castigar a humanidade, Deus castigou Jesus Cristo. O Apóstolo Paulo intervém;
declara que Jesus Cristo quer ter parceiros na Sua obra redentora, ou seja,
almas que, por amor de Deus, Jesus Cristo e dos homens, se submetem como Jesus
Cristo e com Ele aos sofrimentos da Sua Paixão. A Paixão de Jesus Cristo passa
de alguma forma sobre eles, para ser aplicada ao mundo culpado.
87. Será que esta
imolação com Cristo implica uma grande intensidade de vida espiritual?
É evidente que, para
reparar uma falta cometida pelo homem culpado, é necessário apresentar-se
perante Deus como uma alma unida a Ele pela graça e amor divinos.
Como e com Jesus Cristo
que sofre e morre, ele deve estar estreitamente unido com as três Pessoas
Divinas. Por esta razão, as almas que desejam praticar a corredenção devem, em
certa medida, aplicar-se à prática da vida espiritual e sobrenatural. Devem viver
uma vida de união divina e imolação.
88. Desta forma, é
necessário algo mais do que ação para atingir este fim?
Claro que sim. A ação é
inteiramente necessária, mas o trabalho da alma unida a Deus e imolada em Jesus
Cristo é também necessário. Iremos falar sobre isso.
XII – A AÇÃO
89. É necessária uma ação
para a restauração da ordem social?
É claro que sim. Devemos
aplicar aqui as palavras de Jesus Cristo aos seus Apóstolos: "Ide por
todo o mundo, ensinai todas as nações". Jesus Cristo não disse: "Permanecei
no vosso lugar, fazei penitência". Ele disse: "Vai,
ensina". Trabalhemos, pois, de boca em boca e por todos os meios que
possam penetrar as almas com a verdade.
90. Para além da palavra,
existem outros meios de inculcar a verdade?
É claro que há. Além
disso, vemos que os inimigos de Cristo recorrem a outros meios. Tudo lhes é
útil, desde que atinjam o seu fim. A fim de se apropriarem da classe
trabalhadora, recorreram a obras adaptadas: cooperativas, sindicatos, criação
de conselhos de empresa, células comunistas e outras obras de todo o tipo,
jornais, palestras, cursos, cartazes, propaganda, etc., etc., etc.
91. Quem deve mobilizar
estes meios de ação? Ou, por outras palavras, quem é obrigado a recorrer a
estes meios de ação?
Obviamente, antes de
tudo, as autoridades eclesiásticas. Desde o Papa Pio VI, os Papas têm procurado
inculcar o clero e o povo apenas com os princípios salutares à sociedade, mas
não têm sido ouvidos. Entre os bispos, são bastante raros aqueles que aplicaram
nas suas dioceses os princípios que, pela sua natureza, se dirigem a todo o
mundo. Isto explica por que razão, ao manterem-se fiéis às necessidades locais,
não contribuíram tanto quanto se poderia esperar para desenvolver e aplicar as
diretivas dadas para todo o mundo pelos Sumo Pontífices, e por que razão, a
fortiori, o simples clero não foi capaz de se dedicar a uma ação viva e
eficaz para estabelecer Cristo em cada sociedade e em cada país. Claramente, é
o Papa, os Bispos e o Clero que têm a missão de instruir e ensinar.
92. Será que esta missão
não corresponde também aos leigos?
É evidente que os leigos
devem iluminar o seu próximo e fazer-lhe bem por uma necessidade urgente de
caridade, tanto na ordem social como na ordem individual. O Papa Leão XIII
colocou nestes termos:
“Até mesmo essa
cooperação dos particulares pareceu aos Padres do Concílio Vaticano I tão
oportuna e frutuosa, que não hesitaram em reclamá-la nos termos seguintes: ‘A
todos os fiéis cristãos, principalmente àqueles que tem superioridade e
obrigação de ensino, suplicamos pelas entranhas de Jesus Cristo, e em virtude
da autoridade deste mesmo Senhor e Salvador nosso lhes ordenamos, que apliquem
todo o seu zelo e trabalho em desviar esses erros e eliminá-los da luta da
Igreja, e difundir a luz puríssima da nossa fé’. Por fim lembrem-se todos que
podem e devem disseminar a fé católica com a autoridade do exemplo e pregá-la
com uma profissão constante. Desse modo nos deveres que nos ligam com Deus e
com a Igreja está em primeiro lugar o zelo que cada qual deve trabalhar segundo
as suas forças em propagar a doutrina cristã e refutar os erros” (Sapientiae
Christianae).
O Papa Pio XI também se
dirige à cooperação dos leigos. Na sua encíclica Ubi Arcano, o Papa,
depois de ter invocado todas as obras, escreve aos bispos:
"Lembrai-vos ainda,
em atenção aos fiéis, que é trabalhando nas obras de apostolado privado e
público, sob a direção de vós próprios e do vosso clero, que o conhecimento de
Jesus Cristo pode crescer e o seu amor reinar, que merecereis o magnífico
título de raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo redimido; é
unindo-vos estreitamente a nós e a Cristo para estender e fortalecer pelo vosso
zelo diligente e ativo o reino de Cristo, que trabalhareis mais eficazmente
para a restauração da paz geral entre os homens".
Os Papas não podem expor
a doutrina de forma mais clara, nem afirmar a sua vontade de forma mais
enérgica.
Para um trabalho que lhes
diz respeito tanto como o da restauração da Ordem Social em Cristo, é
necessário que os fiéis se tornem o braço direito dos Bispos. Em tempos
anteriores, para cumprir a sua missão, a Igreja era assistida pelo braço
secular, ou seja, pela autoridade civil do Estado. Agora que isto foi abolido,
é necessário que os leigos católicos ajudem a Igreja, a sua Mãe, e
especialmente que contribuam para restaurar a Ela, a Jesus Cristo e a Deus, o
lugar que lhes pertence no mundo.
93. Qual deve ser o objetivo
imediato da ação?
O fim imediato da ação é
a reforma dos espíritos. De acordo com a mentalidade atual, não há nem pode
haver verdade nem erro. Será necessário introduzir as noções fundamentais da
existência real da verdade, dos seus direitos, bem como da injustiça do erro,
na mente das pessoas tão infectadas.
94. Neste caso é
necessário lutar até à morte contra as modernas teorias da liberdade e da
legislação, teorias que até alguns teólogos admitem.
De fato, como já observamos,
alguns católicos, alguns por cortesia, outros por ignorância, caminham à luz
dos princípios modernos. A fim de deixar intacta a fé católica, estabelecem que
praticamente todas as opiniões têm direito a existir. Este é o seu modo de
pedir desculpa; parecem dizer aos incrédulos: "Respeitamos a vossa fé e
vós respeitais a nossa". Para
além das condenações da própria razão, que já expusemos, estes católicos
esquecem as condenações de autoridade, que os Sumo Pontífices deram contra os
princípios modernos. Na sua carta ao
Bispo de Tróia, o Papa Pio VII condena formalmente a introdução das liberdades
modernas na Constituição francesa. Ele expressa a sua tristeza nestas palavras
cheias de angústia:
"Uma nova causa de
dor, que mais uma vez abaixa o nosso coração aflito, e que, como confessamos,
nos causa tormento externo, fardo e angústia, é o vigésimo segundo artigo da
Constituição. Não só a liberdade de culto e de consciência é permitida – para
usar os mesmos termos do referido artigo –, mas também o apoio e a proteção são
prometidos a esta liberdade, e ainda, aos ministros dos chamados
"cultos". Não requer muitos discursos, quando se dirige a um bispo
como vós, para o fazer reconhecer claramente o dano moral dado à religião
católica em França por este artigo. Pelo próprio fato de estabelecer a
liberdade de todos os cultos sem distinção, a verdade e o erro são confundidos,
e as seitas heréticas, e mesmo a perfídia judaica, são colocadas em pé de
igualdade com a Santa e imaculada Noiva de Cristo, a Igreja, fora da qual não
há salvação. Além disso, ao prometer favor e apoio às seitas hereges e aos seus
ministros, não só as suas pessoas, mas também os seus erros são tolerados e
favorecidos. Implicitamente, esta é a heresia desastrosa e para sempre
deplorável que Santo Agostinho menciona nestes termos: ‘Afirmam que todos os
hereges estão no caminho certo e falam a verdade. Absurdidade tão monstruosa
que não posso acreditar que uma seita a professa realmente’. A nossa admiração
não foi menor quando lemos o vigésimo terceiro artigo da Constituição que
estabelece e permite a liberdade de imprensa, uma liberdade que ameaça a fé e a
moral com os maiores perigos e certa ruína. Se alguém duvidasse disto, bastaria
a experiência de tempos passados sozinho para o ensinar. É um fato
perfeitamente estabelecido: esta liberdade de imprensa tem sido o principal
instrumento que, em primeiro lugar, depravou os costumes do povo, depois
corrompeu e trouxe a sua fé ao chão e, finalmente, despertou expedições,
distúrbios e revoltas. Estes resultados infelizes ainda seriam de temer, dada a
grande malícia dos homens, se, Deus nos livre, todos tivessem a liberdade de
imprimir o que quiserem".
O Papa Gregório XVI
escreveu:
"Dessa fonte lodosa
do indiferentismo promana aquela sentença absurda e errônea, digo melhor
disparate, que afirma e defende a liberdade de consciência. Este erro corrupto
abre alas, escudado na imoderada liberdade de opiniões que, para confusão das
coisas sagradas e civis, se estendo por toda parte, chegando à imprudência de
alguém se asseverar que dela resulta grande proveito para a causa da religião. ‘Que
morte pior há para a alma, do que a liberdade do erro!’ dizia Santo Agostinho.
Certamente, roto o freio que mantém os homens nos caminhos da verdade, e
inclinando-se precipitadamente ao mal pela natureza corrompida, consideramos já
escancarado aquele abismo do qual, segundo foi dado ver a São João, subia
fumaça que entenebrecia o sol e arrojava gafanhotos que devastavam a terra.
Daqui provém a efervescência de ânimo, a corrupção da juventude, o desprezo das
coisas sagradas e profanas no meio do povo; em uma palavra, a maior e mais
poderosa peste da república, porque, segundo a experiência que remonta aos
tempos primitivos, as cidades que mais floresceram por sua opulência, extensão
e poderio sucumbiram, somente pelo mal da desbragada liberdade de opiniões,
liberdade de ensino e ânsia de inovações. Devemos tratar também neste lugar da
liberdade de imprensa, nunca condenada suficientemente, se por ela se entende o
direito de trazer-se à baila toda espécie de escritos, liberdade que é por
muitos desejada e promovida. Horroriza-Nos, Veneráveis Irmãos, o considerar que
doutrinas monstruosas, digo melhor, que um sem-número de erros nos assediam,
disseminando-se por todas as partes, em inumeráveis livros, folhetos e artigos
que, se insignificantes pela sua extensão, não o são certamente pela malícia
que encerram, e de todos eles provém a maldição que com profundo pesar vemos
espalhar-se por toda a terra. Há, entretanto, oh que dor! quem leve a ousadia a
tal requinte, a ponto de afirmar intrepidamente que essa aluvião de erros que
se está espalhando por toda parte é compensada por um ou outro livro que, entre
tantos erros, se publica para defender a causa da religião. É por toda forma
ilícito e condenado por todo direito fazer um mal certo e maior, com pleno
conhecimento, só porque há esperança de um pequeno bem que daí resulte. Porventura
dirá alguém que se podem e devem espalhar livremente venenos ativos, vendê-los
publicamente e dá-los a tomar, porque pode acontecer que, quem os use, não seja
arrebatado pela morte?”
Os ensinamentos do Papa
Pio IX são suficientemente bem conhecidos para não se insistir neles. Basta
recordar as proposições condenadas pelo Syllabus:
“77. Na nossa época já
não é útil que a Religião Católica seja tida como a única Religião do Estado,
com exclusão de quaisquer outros cultos.
78. Por isso
louvavelmente determinaram as leis, em alguns países católicos, que aos que
para aí emigram seja lícito o exercício público de qualquer culto próprio.
79. É falso que a
liberdade civil de todos os cultos e o pleno poder concedido a todos de manifestarem
clara e publicamente as suas opiniões e pensamentos produza corrupção dos
costumes e dos espíritos dos povos, como contribua para a propagação da peste
do Indiferentismo.”
O Papa Leão XIII não é
menos categórico no seu ensino:
“A liberdade, aquele
elemento que aperfeiçoa o homem, deve ser aplicada ao que é verdadeiro e bom. A
essência do bem e da verdade não pode ser mudada pelo homem à vontade, mas
permanece sempre a mesma, pois é imutável, tal como a natureza das coisas é
imutável. Se a inteligência aderir a opiniões falsas, se a vontade escolher o
mal e o seguir, nenhum dos dois atinge a sua perfeição, mas ambos decaem da sua
dignidade nativa e se tornam corruptos. Não é permitido, portanto, trazer à
tona e expor aos olhos dos homens aquilo que é contrário à virtude e à verdade,
e muito menos abrigar esta licença sob a tutela e proteção das leis. Há apenas
um caminho para o céu, para o qual todos nós estamos a caminhar: o bom caminho.
O Estado, portanto, afasta-se das regras e prescrições da natureza se favorecer
de tal forma o licenciamento de opiniões e ações culpadas que seja permitido,
com impunidade, afastar os espíritos da verdade e as almas da virtude. Excluir
a Igreja, que o próprio Deus estabeleceu, da vida pública, das leis, da
educação da juventude, da verdade doméstica, é um erro grave e pernicioso. Uma
sociedade sem religião não pode ser controlada; e já podemos ver, talvez mais
do que deveríamos, o valor da chamada moralidade civil em si mesma e nas suas
consequências”.
Na sua encíclica Libertas,
o próprio Papa Leão XIII condena as mesmas liberdades:
“Outros são um pouco mais
moderados, mas sem serem mais consequentes consigo mesmos. Segundo estes, as
leis divinas devem regular a vida e o modo de proceder dos particulares, mas
não o dos Estados; é permitido, nas coisas públicas, desviar-se das ordens de
Deus e legislador sem as ter em conta alguma. Donde nasce esta perniciosa consequência
da separação da Igreja e do Estado. Mas o absurdo destas opiniões facilmente se
compreende. É necessário a própria natureza o proclama é necessário que a
sociedade dê aos cidadãos os meios e as facilidades de passarem a sua vida
segundo a honestidade, isto é, segundo as leis de Deus, pois que Deus é o
princípio de toda a honestidade e de toda a justiça. Repugnaria, pois,
absolutamente que o Estado pudesse desinteressar-se destas mesmas leis ou ir
mesmo contra elas, fosse no que fosse. Demais, aqueles que governam os povos
devem certamente procurar à causa pública, pela sabedoria das suas leis, não
somente as vantagens e os bens exteriores, mas também e principalmente os bens
da alma. Ora, para conseguir estes bens, nada mais eficaz pode imaginar-se do
que essas leis de que Deus é o autor; e, por isso, aqueles que não querem, no
governo dos Estados, ter em conta alguma as leis divinas, desviam realmente o
poder político da sua instituição, e da ordem prescrita pela natureza. Mas há
uma observação ainda mais importante e que Nós mesmos temos recordado mais de
uma vez em outras ocasiões: e é que o poder civil e o poder sagrado, conquanto
não tenham o mesmo fim e não marchem pelos mesmos caminhos, devem, contudo,
encontrar-se algumas vezes, no desempenho das suas funções. Ambos, com efeito,
exercem a sua autoridade sobre os mesmos súditos e, mais duma vez, sobre as
mesmas matérias, embora sob pontos de vista diferentes. O conflito, nesta
ocorrência, seria absurdo e repugnaria inteiramente à infinita sabedoria dos
conselhos divinos. Deve, portanto, necessariamente haver um meio, um processo
para fazer desaparecer as causas de conflitos e lutas, e estabelecer o acordo
na prática. E este acordo não é sem razão que foi comparado à união que existe
entre a alma e o corpo, e isto para maior vantagem de ambos, pois a separação é
particularmente funesta ao corpo, porque o priva da vida. Mas, para evidenciar
melhor estas verdades, é mister consideremos separadamente as diversas espécies
de liberdades que se dão como conquistas da nossa época. E primeiramente, a
propósito dos indivíduos, examinemos esta liberdade tão contrária à virtude da
religião, a liberdade de culto, como lhe chamam, liberdade que se baseia no
princípio de que é lícito a cada qual professar a religião que mais lhe agrade,
ou mesmo não professar nenhuma. Mas, precisamente ao contrário, sem dúvida
alguma, entre todos os deveres do homem, o maior e o mais santo é aquele que
ordena ao homem que renda a Deus um culto de piedade e de religião. E este
dever não é senão uma consequência do fato de nós estarmos pela vontade e
providencia de Deus, e de que, saídos d’Ele, devemos voltar a Ele. Deve-se
acrescentar que nenhuma virtude digna deste nome pode existir sem a religião,
pois a virtude moral é aquela cujos atos têm por objeto tudo o que conduz a
Deus considerado como supremo e soberano bem do homem; e por isso é que a
religião, que pratica os atos tendo por fim direto e imediato a honra divina?
(S. Th. 2-2, q. 81, a 6), é a rainha e ao mesmo tempo a regra de todas as
virtudes. E se se pergunta qual, entre todas essas religiões opostas que têm
curso, se deve seguir com exclusão das outras, a razão e a natureza unem-se
para nos responder: a que Deus prescreveu e que é fácil de distinguir, graças a
certos sinais exteriores pelos quais a divina Providência a quis tornar
reconhecível, pois que em coisa de tanta importância o erro acarretaria consequências
muito desastrosas. É por isso que oferecer ao homem a liberdade de que falamos,
é dar-lhe o poder de desvirtuar ou abandonar impunemente o mais santo dos
deveres, afastando-se do bem imutável, a fim de se voltar para o mal. Isto, já
o dissemos, não é liberdade, mas uma depravação da liberdade, e uma escravidão
da alma na abjeção do pecado. Encarada sob o ponto de vista social, esta mesma
liberdade quer que o Estado não renda culto algum a Deus, ou que não autorize
nenhum culto público; que nenhuma religião seja preferida a outra, que todas
sejam consideradas como tendo os mesmos direitos, sem mesmo ter atenção para
com o povo, até quando esse mesmo povo faz profissão de catolicismo. Mas, para
que assim fosse justo, seria necessário que realmente a comunidade civil não
tivesse nenhum dever para com Deus, ou que, tendo-o, pudesse impunemente
afastar-se dele: duas coisas manifestamente falsas. Com efeito, não se pode pôr
em dúvida que a reunião dos homens em sociedade seja obra da vontade de Deus; e
isto quer se considere em seus membros, na sua forma que é autoridade, na sua
causa, ou em número e importância das vantagens que ela procura ao homem. Foi Deus
quem fez o homem para a sociedade e o uniu aos seus semelhantes, a fim de que
as necessidades da sua natureza, às quais os seus esforços isolados não
poderiam dar satisfação, a possam encontrar na comunidade. Eis aí por que a
sociedade civil como sociedade deve necessariamente reconhecer Deus como seu
princípio e seu autor, e, por conseguinte, render ao seu poder e à sua
autoridade a homenagem do seu culto. Veda-o a justiça, e veda-o a razão que o
Estado seja ateu, ou, o que viria a dar no ateísmo, esteja animado a respeito
de todas as religiões, como se diz, das mesmas disposições e conceder-lhes
indistintamente os mesmos direitos”.
95. Nestas condições, o
que acontece ao trabalho das eleições?
Em muitos casos, as
eleições servem um bom propósito. Assim, a fim de dar à Igreja uma Cabeça,
procede-se por meio de eleições. Em muitos casos é utilizado o mesmo procedimento.
Mas há uma dificuldade, que decorre precisamente do fato de as eleições – que
devem dar a um país, províncias, comunas, etc. – legisladores e líderes,
poderem colocar como cabeças malfeitores que, pela sua ação, se tornarão malfeitores
públicos e corruptores de almas. Já insistimos suficientemente na necessidade
de colocar Deus e Jesus Cristo como a cabeça e a base de toda a Ordem Social.
Agora, a vontade de um país de se entregar a Deus é manifestada pela sua
legislação. Para estar em conformidade com a intenção divina, cada país deve,
através de eleições, expressar a sua firme vontade de viver para Cristo e de O
servir.
96. Em suma, então,
submete a política a Deus e a Jesus Cristo?
Já demonstrámos
claramente: toda a política deve estar sujeita a Deus e a Jesus Cristo, de quem
depende inteiramente. É o dever de toda a política colocar-se na perspectiva do
fim supremo da vida e de todos os atos privados e públicos: Deus.
97. Mas, desta forma, não
serão acusados de fazer política a partir do púlpito cristão?
As acusações feitas
contra a verdade e contra a missão que a verdade deve cumprir são para nós
motivo de pouca preocupação. Certamente, certas medidas de prudência são
necessárias; mas a prudência não pode, como já foi estabelecido, transformar-se
numa aprovação do erro e numa traição à verdade. E é precisamente porque
quisemos agradar àqueles que não querem aceitar a completa dependência da
política de Deus que chegamos à situação deplorável de hoje. Nunca deveria ter
sido silenciado dos púlpitos e em todo o lado que a política deve ser acima de
tudo submissa a Deus e a Jesus Cristo. O silêncio dos pregadores é o que
aqueles que mais lucram com ele desejam. É o meio de inculcar líderes e mesmo
sujeitos com princípios perniciosos. Devemos, portanto, ser penetrados com a
necessidade de fazer com que o público compreenda o seu erro nesta matéria, e
de fazer com que a doutrina da verdade penetre em todo o lado e por todas as
razões. Assim, em vez de nos retrairmos por medo de colidir com certas
convicções, devemos ver nelas um estímulo para a luta.
XIII – RECAPITULAÇÃO: A
FESTA DE CRISTO REI
98. poderia, em nome da
utilidade, resumir as verdades ensinadas neste catecismo?
Certamente. E são elas:
I - Deus é o Ser Supremo,
supremamente independente. Tudo o que existe fora d'Ele é criado por Ele e
depende d'Ele com dependência suprema e absoluta. Só Ele tem total autoridade e
poder sobre todas as coisas. Não só tudo depende d'Ele, mas tudo deve regressar
a Ele como o seu único fim último. Em suma, todas as Sociedades, Nações e
Estados devem recorrer a Ele como seu Criador e Fim Supremo.
II – Jesus Cristo – o
Deus-Homem – de Deus, recebeu na Sua Humanidade todo o poder no céu e na terra.
Ele tem autoridade e poder sobre todas as outras autoridades. Ele está vestido
com o verdadeiro poder régio. A Igreja e o Papa partilham este poder.
III – É evidente que, de
acordo com o que foi dito, todas as Constituições dos Povos e a sua Legislação
devem ter Deus, Jesus Cristo e a Missão da Igreja como base e cabeça.
IV – Pela Declaração dos
Direitos do Homem, Deus e tudo o que é de Deus foi suprimido das Constituições
e da Legislação, e o homem divinizado foi substituído por Ele.
V – A consequência desta
substituição foi a abolição de todo o Direito Divino e da única profissão de
direitos humanos. Isto significa o triunfo do laicismo, do ateísmo e de todos
os erros que são a consequência lógica da Declaração dos Direitos do Homem.
VI – Consequentemente, na
lei, o homem é supremamente independente. Deve gozar de todas as liberdades:
liberdade de consciência, liberdade de ensino, liberdade de imprensa, liberdade
de associação, liberdade de culto... Por uma rara contradição, ele pode criar
leis e impô-las pela força.
VII – Se não queremos
sofrer um dia os castigos divinos e todas as catástrofes, devemos abolir das
Constituições dos Povos a chamada Lei moderna e as grandes liberdades já
mencionadas. Para tal, devemos utilizar estas mesmas liberdades que nos são
concedidas para as suprimir no sentido moderno da palavra e para poder fazer o
máximo de bem possível. Devemos usar a liberdade de ensino para ensinar Jesus
Cristo livremente; devemos usar a liberdade de imprensa para tornar conhecida a
Verdade divina que salva; devemos usar a liberdade de associação para nos
unirmos para o bem das almas; devemos professar ostensivamente a adoração do
verdadeiro Deus. Devemos tirar partido destes chamados direitos para fazer
compreender às pessoas e às almas que só a verdade e o bem têm direitos, e que
o erro e o mal não têm nenhum.
VIII – Desta forma tudo
voltará à ordem e à paz, porque tudo voltará a ser submisso a Deus e ao Seu
Cristo através da Santa Igreja. As nações estarão unidas pelos laços da justiça
e da caridade em Cristo e sob a orientação espiritual do Papa. Os Povos serão
constituídos numa verdadeira Liga Apostólica das Nações: e o mundo será salvo.
99. Quais foram as
intenções do Papa Pio XI ao instituir a Festa em honra de Cristo Rei?
O Sumo Pontífice quis
comemorar, numa festa especial em honra da Realeza de Jesus Cristo, a
recordação de todos os benefícios que o Homem-Deus trouxe à humanidade, e
especialmente o benefício da Ordem Social, que é a condição para a paz interna
e externa dos povos. Basta-nos ouvir a voz do Sumo Pontífice enquanto ele
próprio expõe o seu pensamento. Qualquer comentário diminuiria a força e a
clareza da palavra pontifícia. Estes são os termos em que o Papa Pio XI
instituiu a Festa que o mundo inteiro celebra:
“E a fim de que a
sociedade cristã goze largamente de tão preciosas vantagens e para sempre as
conserve, é mister que se divulgue quanto possível o conhecimento da dignidade
real de Nosso Salvador. Ora, nada pode, pelo que Nos parece, conseguir melhor
este resultado, do que a instituição de uma festa própria e especial em honra
de Cristo-Rei.
Com efeito, para instruir
o povo nas verdades da fé e levá-lo assim às alegrias da vida interna, mais
eficazes que os documentos mais importantes do Magistério eclesiástico são as
festividades anuais dos sagrados mistérios. Os documentos do Magistério, de
fato, apenas alcançam um restrito número de espíritos mais cultos, ao passo que
as festas atingem e instruem a universalidade dos fiéis. Os primeiros, por
assim dizer, falam uma vez só, as segundas falam sem intermitência de ano para
ano; os primeiros dirigem-se, sobretudo, ao entendimento; as segundas influem
não só na inteligência, mas também no coração, quer dizer no homem todo.
Composto de corpo e alma, precisa o homem dos incitamentos exteriores das
festividades, para que, através da variedade e beleza dos sagrados ritos,
recolha no ânimo a divina doutrina, e, transformando-a em substância e sangue,
tire dela novos progressos em sua vida espiritual.
Além disso, ensina-nos a
própria história, que estas festividades litúrgicas foram introduzidas, no
decorrer dos séculos, umas após outras, para responder a necessidades ou
vantagens espirituais do povo cristão. Foram-se constituindo para fortalecer os
ânimos em presença de algum perigo comum, para premunir os espíritos contra os
ardis da heresia, para mover e inflamar os corações a celebrar com mais ardente
piedade algum mistério de nossa fé ou algum benefício da divina graça. Assim é
que, desde os primeiros tempos da era cristã, quando, acossados das mais
cruentas perseguições, os fiéis começaram, com sagrados ritos, a comemorar os
mártires, para que como diz S. Agostinho “as solenidades dos mártires fossem
exortação ao martírio”. As honras litúrgicas, mais tardes decretadas aos
confessores, às virgens, às viúvas, contribuíram singularmente para promover
nos fiéis o zelo pela virtude, indispensável mesmo em tempo de paz.
Especialmente as festas em honra da Virgem Beatíssima fizeram com que o povo
cristão não só tributasse à Mãe de Deus, sua Protetora por excelência, culto
mais assíduo, senão que ao mesmo tempo fosse de contínuo crescendo seu amor
filial à Mãe que o Redentor lhe deixara como que em testamento. Dentre os
benefícios que dimanaram do culto público e legitimamente prestado à Mãe de
Deus e aos Santos do Céu, não é o menor a vitória constante com que a Igreja se
cobriu de louros, ao debelar e repelir a heresia e o erro. E nisto devemos
admirar os desígnios da Divina Providência, que, segundo costuma, tira o bem do
mal. Permitiu que, de tempos a tempos, entibiasse a fé e a piedade popular;
permitiu que doutrinas errôneas armassem insídias à piedade católica, mas
sempre com o intuito de fazer finalmente fulgir a verdade com novo esplendor e
mover os fiéis, espertos da tibieza, a tenderem com novo zelo a graus mais
elevados de santidade e perfeição cristã. Idêntica é a origem, idênticos os
frutos que produziram as solenidades recentemente introduzidas no calendário
litúrgico. Tal é a festa do “Corpus Christi”, instituída quando se esfriava a
reverência e o culto para com o SS. Sacramento; celebrada com brilho singular,
protraída por oito dias de suplicações coletivas, a nova solenidade devia
reconduzir os povos à adoração pública do Senhor. Tal é a festa do Coração Santíssimo
de Jesus estabelecida na época em que, abatidos e desalentados pelas tristes
doutrinas e o rigorismo sombrio do jansenismo, os fiéis sentiam seus corações
regelados e com escrúpulo deles excluíam todo sentimento de amor de Deus e a
esperança de conseguirem a eterna salvação.
Para Nós também soou a
hora de provermos às necessidades dos tempos presentes e de opormos um remédio
eficaz à peste que corrói a sociedade humana. Fazemo-lo, prescrevendo ao
universo católico o culto de Cristo-Rei. Peste de nossos tempos é o chamado
“laicismo”, com seus erros e atentados criminosos.
Como bem sabeis,
Veneráveis Irmãos, não é num dia que esta praga chegou à sua plena maturação;
há muito, estava latente nos estados modernos. Começou-se, primeiro, a negar a
soberania de Cristo sobre todas as nações; negou-se, portanto, à Igreja o
direito de doutrinar o gênero humano, de legislar e reger os povos em ordem à
eterna bem-aventurança. Aos poucos, foi equiparada a religião de Cristo aos
falsos cultos e indecorosamente rebaixada ao mesmo nível. Sujeitaram-na, em
seguida, à autoridade civil, entregando-a, por assim dizer, ao capricho de
príncipes e governos. Houve até quem pretendesse substituir à religião de
Cristo um simples sentimento de religiosidade natural. Certos estados, por fim,
julgaram poder dispensar-se do próprio Deus e fizeram consistir sua religião na
irreligião e no esquecimento consciente e voluntário de Deus.
Os frutos sobremodo
amargosos que, tantas vezes e com tanta persistência, produziu esta apostasia
dos indivíduos e dos estados, que desertam a Cristo, expendemo-los na Encíclica
“Ubi arcano”. Tornamos a lamentá-los hoje. Frutos desta apostasia são os germes
de ódio esparsos por toda parte, as invejas e rivalidades entre nações, que
alimentam as discórdias internacionais e dificultam ainda agora a restauração
da paz; frutos desta apostasia as ambições desenfreadas, que muitas vezes se
encobrem com a máscara do interesse público e do amor da pátria, e suas tristes
consequências: dissensões civis, egoísmo cego e desmedido, sem outro fito nem
outra regra mais que vantagens pessoais e proveitos particulares. Fruto desta
apostasia a perturbação da paz doméstica, pelo esquecimento e desleixo das
obrigações familiares, o enfraquecimento da união e estabilidade no seio das
famílias, e por fim o abalo na sociedade toda, que ameaça ruir.
A festa, doravante ânua,
de “Cristo-Rei” dá-nos a mais viva esperança de acelerarmos a tão desejada
volta da humanidade a seu Salvador amantíssimo. Fora, com certeza, dever dos
católicos, apressar e preparar esta volta com diligente empenho; a muitos
deles, contudo, pelo que parece, não toca, na sociedade civil, o posto e a
autoridade que conviriam aos apologistas da fé. Talvez deva este fato
atribuir-se à indolência e timidez dos bons que se abstêm de toda resistência,
ou resistem com moleza, donde provém, nos adversários da Igreja, novo acréscimo
de pretensões e de audácia. Mas, desde que a massa dos fiéis se compenetre de
que é obrigação sua combater com valentia e sem tréguas sob os estandartes de
Cristo-Rei, o zelo apostólico abrasará seus corações, e todos se esforçarão de
reconciliar com o Senhor as almas que o ignoram ou dele desertaram; todos,
enfim, se esforçarão por manter inviolados os direitos do próprio Deus.
Mas não basta. Uma festa,
anualmente celebrada por todos os povos em homenagem a Cristo-Rei, será sobremaneira
eficaz para condenar e ressarcir, de algum modo, esta apostasia pública, tão
desastrada para as nações, gerada pelo laicismo. Com efeito, quanto mais
vergonhosamente se passa em silêncio, quer nas conferências internacionais,
quer nos Parlamentos, o nome suavíssimo do nosso Redentor, tanto mais alto o
devemos aclamar, tanto mais devemos reconhecer os direitos que a Cristo
conferem sua dignidade e poder real.
E quem não vê que, desde
os últimos anos do século passado, se ia, de modo admirável, preparando o
caminho à instituição desta festa? Ninguém, com efeito, ignora como, com livros
que se escreveram nas várias línguas do mundo inteiro, este culto foi explicado
e doutamente defendido. Sabem todos que a autoridade e realeza de Cristo foi já
reconhecida pela piedosa prática de se consagrarem e dedicarem ao Sagrado
Coração de Jesus famílias inumeráveis. E não só famílias, mas também estados e
reinos praticaram o mesmo ato. Antes, por iniciativa e direção de Leão XIII, o
universo gênero humano foi felizmente consagrado a este Coração Santíssimo, no
correr do Ano Santo de 1900. Não podemos preterir os congressos eucarísticos que
nossa época viu multiplicar-se em tão grande número. Tão bem serviram à causa
da solene proclamação humana. Reunidos para apresentar à veneração e às
homenagens populares de uma diocese, de uma província, de uma nação, ou mesmo
do mundo inteiro, Cristo-Rei, oculto sob os véus eucarísticos, esses
congressos, em conferências realizadas nas suas assembleias, em sermões
proferidos nas igrejas, por meio da exposição pública ou da adoração em comum
do Santíssimo Sacramento e de grandiosas procissões, enaltecem a Cristo como a
Rei que de Deus receberam os homens. Este Jesus, que os ímpios recusaram
acolher quando veio a seu reino, pode-se dizer, com toda a verdade, que o povo
cristão, movido de uma inspiração divina, vai arrancá-l’O ao silêncio e, por
assim dizer, à obscuridão dos templos, para levá-l’O, qual triunfador, pelas
ruas das grandes cidades e reintegrá-1’O em todos os direitos de sua realeza.
Para a realização deste
Nosso desígnio, de que acabamos de falar, oferece-Nos ensejos sumamente
oportunos o “Ano Santo” que finda. Este ano veio relembrar ao espírito e ao
coração dos fiéis os bens celestes que sobrepujam todo sentimento natural. Em
sua bondade infinita, Deus restitui a uns a sua graça, e confirma a outros no
bom caminho, infundindo-lhes novo ardor para aspirarem a dons mais perfeitos.
Quer atendamos às numerosas súplicas que nos foram dirigidas, quer consideremos
os acontecimentos que se dirigidas, quer consideremos os acontecimentos que se
deram no correr do “Ano Santo”, sobeja razão nos assiste de pensarmos que
deveras para Nós soou a hora de proferirmos a sentença tão ansiosamente de
todos aguardada e que decretemos uma festa especial em honra de Cristo, Rei de
todo o gênero humano. Durante este ano, com efeito, como a princípio dissemos,
este divino Rei, deveras admirável em seus Santos, conquistou novos triunfos,
com a elevação às honras dos altares de mais um manípulo de soldados seus.
Durante este ano, uma exposição extraordinária pôs ante os olhos do mundo as
fadigas e, de algum modo, os próprios trabalhos dos arautos do Evangelho, e
todos puderam admirar as vitórias ganhas por esses campeões de Cristo, para a
extensão do seu reino; durante este ano, finalmente, com o centenário do Concílio
de Nicéia, comemoramos, contra os seus detratores, a defesa e definição do
dogma da consubstancialidade do Verbo Humanado com seu Pai, verdade na qual
descansa, como em fundamento, a soberania de Cristo sobre todos os povos.
Portanto, em virtude de
Nossa autoridade apostólica, instituímos a festa de “Nosso Senhor Jesus Cristo
Rei”, mandando que seja celebrada cada ano, no mundo inteiro, no último domingo
de outubro imediato à solenidade de Todos os Santos. Prescrevemos igualmente
que, cada ano, se renove, nesse dia, a consagração do gênero humano ao Coração
de Jesus, que já Nosso Predecessor de saudosa memória Pio X ordenara se fizesse
anualmente. Contudo, queremos que, neste ano, a renovação se faça a 31 de dezembro;
nesse dia, celebraremos missa pontifical em honra de “Cristo-Rei”, e mandaremos
proferir, em Nossa presença, o ato de consagração. Quer parecer-Nos que não
pode haver melhor encerramento do “Ano Santo”, e que destarte daremos a
“Cristo, Rei Imortal dos séculos”, o testemunho mais eloquente de nossa
gratidão e do reconhecimento do universo católico, de quem Nos fazemos
intérpretes, pelos benefícios que, neste período de graças, concedeu a Nós
mesmo, à Igreja, à cristandade toda.
É escusado, Veneráveis
Irmãos, explicar-vos longamente os motivos de uma festa especial em honra de
“Cristo-Rei”. Pois, conquanto outras festas, já existentes, enalteçam e de
algum modo glorifiquem sua dignidade real, basta, contudo, observar que, se
todas as festas de Nosso Senhor têm a Cristo, segundo a linguagem dos teólogos,
por “objeto material”, de modo algum é o poder e apelativo de Rei “objeto
formal” das mesmas.
Fixando a nova festa em
um domingo, quisemos que o clero fosse o único em prestar suas homenagens a
“Cristo-Rei”, com a celebração do Santo Sacrifício e a reza do Santo Ofício,
mas que o povo, desimpedido de suas ocupações ordinárias, e animado de santa
alegria, pudesse dar a Cristo, como a seu Senhor e Soberano, um manifesto
testemunho de obediência. Finalmente mais apropriado Nos pareceu o último
domingo de outubro, porque este domingo, em certo modo, encerra o ciclo do ano
litúrgico; destarte, os mistérios da vida de Jesus Cristo, comemorados no decorrer
do ano que finda, terão na solenidade de “Cristo-Rei” seu como termo e coroa, e
antes de celebrar a glória de todos os Santos, a liturgia proclamará e
enaltecerá a glória d’Aquele que em todos os Santos e em todos os eleitos
triunfa. É dever, é direito vosso, Veneráveis Irmãos, fazer preceder a festa
por uma série de instruções que se deem, em dias determinados, nas diferentes
paróquias, para instruir acuradamente o povo da natureza, significado e
importância desta festa, por onde os fiéis regulem a sua vida em modo a
torná-la digna de súbditos leais e submissos de coração à soberania do Divino
Rei”.
