segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Vida de Calvino – Capítulo I – Jerônimo Bolsec

 


Entre todos os males introduzidos neste mundo pelo pai da mentira e autor do pecado, após a queda dos primeiros pais, a heresia é o que trouxe mais problemas, sedições e divisões em todos os tempos e épocas. Este monstro horrível e perniciosíssimo é engendrado a partir do orgulho e da ignorância; o herege tem a estes dois como pais e progenitores, pois todos os hereges são soberbos, orgulhosos e de si presumem que há grande bondade e virtude do que há de fato, a ponto de desprezar todos os outros que não são de sua seita e até mesmo a odiá-los. Eles são, além disso, ignorantes, nutrem-se e contentam-se com sua própria opinião, que têm enraizada em seus cérebros, dos quais são incapaz dela se afastar, e nem por qualquer demonstração são trazidos de volta à luz da verdadeira ciência e ao conhecimento da verdade. Em todas os tempos e épocas, esse pai da mentira, inimigo da paz e da tranquilidade, tem se esforçado para perturbar e corromper a união dos espíritos humanos e esconder o sincero conhecimento da verdade.

Agora, pois, não enumerarei as diversas seitas dos filósofos, dos físicos e os diversos modos de idolatria dos pagãos. Deterei-me apenas nas seitas heréticas que nasceram dentre os cristãos.  Quanto à nação judaica, Santo Hegésipo, autor cristão muito antigo, descreve que por lá houve sete seitas diferentes: os essênios, os galileus, os hemerobatistas, os masboteus, os samaritanos, os saduceus e os fariseus, todos estes estavam divididos pela opinião e eram inimigos entre si.

 Desde a recepção da lei evangélica vários hereges surgiram pela persuasão diabólica, no qual, São Hegésipo, testemunha ter sido o bispo Teóbuto aquele que começou a perturbar os cristãos e a paz da Igreja suas falsas ideias e opiniões vãs. Seguiram-se alguns que levantaram a heresia contra a consubstancialidade e coeternidade do Verbo Divino com o Pai. Desta seita foram os principais: Cerinto, Artemão, Paulo de Samósata e, por fim, Ário.

Depois veio Carpócrates, seus adeptos espalharam seus ensinamentos a uma comunidade cristã e introduziram uma confusão licenciosa de desejos sensuais e voluptuosidade carnal. Tal seita nesses tempos foi trazida de volta por Satanás pelos anabatistas.

A terceira seita, dos ebionistas, ensinavam que a observância das cerimônias mosaicas era necessária na lei do Evangelho, o que trouxe grandes problemas para a Igreja. A quarta seita foi iniciada por Basílides, Marcião e Manes que contestaram a causa do pecado, afirmando que havia dois princípios contrários e coeternos, o bem e o mal, a luz e as trevas, também sustentavam que havia uma necessidade estoica em todas as boas e más ações humanas. Em quinto lugar veio a heresia de Pelágio que atribui às boas obras o merecimento, a salvação e a condenação à vida eterna. Entremeados estavam vários membros de Satanás, magos e feiticeiros que por suas ilusões abusaram de um grande número de simples idiotas desviando-os da fé em Jesus Cristo. Um outro grande número de cabeças fantásticas semeou muitas questões e opiniões errôneas sobre a processão do Espírito Santo, a invocação dos santos, sobre a oração pelos mortos e muitas controvérsias.

 

 

domingo, 30 de outubro de 2022

Catecismo do Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo – Rev. Pe. Auguste Philippe, C.Ss.R.

 


Introdução

A Semana Católica no início de 1926, organizada pela Liga Apostólica, confiou-nos um desejo: possuir um Catecismo que expusesse o fato e a natureza da realeza social de Jesus Cristo. A fim de responder a este desejo, demos estas páginas ao público sob o título Catecismo dos Direitos Divinos na Ordem Social – Jesus Cristo Mestre e Rei!.

Dizemos Catecismo dos Direitos Divinos na Ordem Social, porque sob o pretexto de seguir apenas a luz da consciência, espalhou-se o costume de deixar o cumprimento de todos os deveres à livre disposição da consciência.

Os direitos da verdade, e especialmente os da Verdade Suprema, são espezinhados. O nosso catecismo exige um grande ato de Fé: um ato de Fé em Deus e em Jesus Cristo, intervindo por autoridade à medida que intervêm pela sua ação criadora em toda Sociedade. Os povos devem saber que em cada relação de homem a homem, de sociedade a sociedade, de país a país e em tudo o que constitui o interior de uma nação, dependem de Deus e de Jesus Cristo. Sobre este ponto, como sobre o da própria existência de Deus, todos nós devemos curvar-se e dizer com toda nossa alma: "Creio".

Rev. Pe. A. Philippe, C.Ss.R.

 

I – SUPREMO DOMÍNIO DE DEUS SOBRE TODA A SOCIEDADE

1. Diga os primeiros artigos do Credo.

Creio em Deus, Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra. E em Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor.

2. Como é que a Santa Igreja se exprime sobre este ponto no Credo da Missa?

Creio em um só Deus, Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, o Filho unigênito do Pai.

3. O que se entende por estas palavras: “Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”?

Se entende, por estas palavras, que tudo o que existe fora de Deus foi feito por Deus, que todas as coisas visíveis e invisíveis foram criadas por Ele.

4. Que diferença fazes entre coisas visíveis e invisíveis?

Há coisas que são perceptíveis pelo sentido da visão, audição ou outros sentidos, que podem ser sentidas de alguma forma, estas são as coisas visíveis. Para além destas, existem outras coisas que realmente existem, de cuja existência podemos estar conscientes, mas que não são perceptíveis pelos sentidos.

5. Enumere alguns exemplos de coisas invisíveis.

É invisível no sentido em que não pode ser tocado, mas é perfeitamente perceptível de modo que a sua existência pode ser percebida. Desta forma, pode-se ver e perceber que tal nação é diferente de outra, que tal sociedade pública ou privada é diferente de qualquer outra sociedade.

6. A Sociedade dos homens é uma coisa invisível?

 

Sim, e quando no Credo se diz: “Creio em um só Deus, Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”, é professado solenemente que cada Sociedade, tal como o homem, foi criada por Deus, e por isso é absolutamente dependente d'Ele. Esta doutrina aplica-se a qualquer sociedade, quer seja uma sociedade natural, ou seja, imposta pela natureza do homem, ou uma sociedade livre, ou seja, fundada pela vontade do homem.

7. Será a Sociedade, considerada como visível e invisível, uma criatura?

Para além do testemunho de Deus e do Espírito Santo nas Escrituras e do testemunho da Santa Igreja, podem ser aduzidas provas racionais. Cada Sociedade é composta por homens. E todo o homem é uma criatura. Daí resulta que as relações mútuas dos homens são coisas criadas. E uma vez que cada sociedade, como cada nação, é uma unidade moral que realmente existe fora de Deus, na medida em que não é Deus, é criada por Deus, de quem não pode deixar de depender no mais alto grau, tal como cada criatura depende de Deus.

8. Podes dar alguma prova da condição criada da Sociedade?

Há ainda outra verdade fundamental. O homem depende de Deus não só porque é uma criatura, mas também porque Deus é o seu fim último. É evidente que o fim último de todas as coisas criadas é Deus. Mais particularmente, Deus é o fim último, supremo e infinito de toda a criatura inteligente. O homem foi criado com o objetivo de chegar a Deus. Ele deve compreender que foi criado para este fim e deve querer alcançá-lo, e Deus colocou o homem em tal condição que não pode deixar de viver em sociedade. Portanto, como ser social, o homem deve ter Deus como seu fim último e supremo. Dizer o contrário seria afirmar que o homem encontra o fim da Sociedade na própria Sociedade, o que seria uma idolatria. Mas as sociedades enquanto tais não passam para a eternidade. Segue-se, então, que o fim último está no fato de a inteligência e a vontade dos indivíduos serem dirigidas a Deus nas – e por meio – das sociedades.

 

II – CONSEQUÊNCIAS DE A SOCIEDADE SER ALGO CRIADO

9. Qual é a consequência imediata da condição da sociedade ser algo criado?

A primeira consequência é a dependência necessária, absoluta e completa de cada sociedade e de cada ordem social estabelecida, como de cada ordem social possível, de Deus.

10. Não compreendo a dependência de um organismo social de Deus. O organismo social não é dotado de consciência. Cabe apenas ao indivíduo compreender o seu dever moral e cumpri-lo.

Há uma triste confusão nas considerações que acabaste de fazer. Em primeiro lugar, a criação, e a dependência que se lhe segue para cada sociedade, não provêm do fato do homem ter recebido de Deus o ser e a existência. O que seja criado não depende dele; quer ele queira ou não, o homem é uma criatura. O mesmo se aplica a todas as sociedades. Não depende dela se é ou não uma criatura; a criatura pertence à sua própria essência. A fortiori, cada sociedade representa uma coletividade inteligente. Esta coletividade tem como primeira obrigação compreender o que é essencial para ela. Deve conhecer os seus deveres primordiais ligados à sua condição criada. E a primeira verdade da qual as outras dependem, e que dita à criatura as suas obrigações, é a do supremo domínio de Deus sobre cada criatura e que cada criatura é absolutamente dependente d'Ele. Uma coletividade que, como tal, não estivesse convencida desta verdade falharia na mais rigorosa das suas obrigações; estaria infalivelmente no caminho errado. Por conseguinte, é estritamente necessário que cada Estado, cada Nação – numa palavra – cada Sociedade, seja inteiramente submissa a Deus. Afirma-se assim a obrigação da Ordem Social, tanto para a consciência coletiva como para a consciência individual.

11. Existem outras consequências da condição de criatura inerente de cada sociedade?

Outra consequência do que tem sido dito é que cada Sociedade depende de Deus na sua constituição interior. Com isto, tudo o que contribui para a formação de uma sociedade deve ser permeado por Deus. Expliquemos. Em cada sociedade existe a união íntima de vontades, de meios adequados e um fim a alcançar. Em cada um destes elementos a Sociedade depende de Deus, porque é uma criatura. A consequência estritamente lógica segue-se facilmente. Quando uma sociedade é constituída, deve considerar o seu fim do ponto de vista do fim último e supremo: Deus. A união de vontades deve ser feita sob a dependência prática de Deus. Os meios adequados devem estar em conformidade com os requisitos da Lei Eterna. Assim, quando um Estado é constituído, o seu primeiro dever é colocar como base da sua Carta fundamental, da sua legislação e de tudo o resto, a mais absoluta dependência de Deus e a sua mais completa conformidade com a Lei Eterna. Afirmar o contrário seria estabelecer a desordem e acabar em idolatria.

13. Como podem os Estados ser obrigados a adorar a Deus?

Esta pergunta é respondida pelas palavras do Apóstolo Paulo. No primeiro capítulo da Epístola aos Romanos, ele fala assim:

“Porque a ira de Deus manifesta do Céu contra toda a impiedade, e injustiça daqueles homens, que retêm na injustiça a verdade de Deus. Porque o que se pode conhecer de Deus lhe é manifesto a eles, porque Deus lho manifestou. Na verdade, as suas perfeições invisíveis, tornadas compreensíveis depois da criação do mundo, consideradas pelas obras que foram feitas, e que passaram a ser tão visíveis como a virtude sempiterna e a sua divindade, de tal sorte que são inescusáveis. Porquanto depois de terem reconhecido a Deus, não o glorificaram como a Deus, ou deram graças" (Rm I,18-21).

O Espírito Santo, através da boca do Doutor das Gentes, proclama que os pagãos, imersos em todos os horrores da impiedade, são indesculpáveis por não terem conhecido e glorificado a Deus. Ele acusa-os de terem rejeitado a luz; não os pode desculpar em nada. Como os pagãos, de quem São Paulo fala, os Estados modernos, sejam eles quais forem, são indesculpáveis. Não se pode admitir que a sua atitude esteja em conformidade com as exigências da razão. Aos governantes e líderes, como a todos os outros, Deus mostra-Se a Si próprio pelos seus atos. Se há aqueles que não querem exigir que os Estados deem a Deus um culto social e oficial, são indesculpáveis pelas razões dadas por São Paulo. Do simples ponto de vista racional, Governantes, Parlamentos, Legisladores etc., devem praticar um culto a Deus, do qual não se podem dispensar a si próprios e do qual não podem dispensar nenhum Estado ou Sociedade. Dito isto, deve concluir-se que mesmo que um Estado pudesse ser dispensado de não se submeter às diretivas da Igreja por não as conhecer, não pode ser dispensado de falhar a Deus ou de não se ter submetido aos preceitos divinos da Lei Eterna.

14. Assim, considera como indesculpáveis todos os homens públicos que, por razões políticas e prudenciais, não querem afirmar o supremo domínio de Deus sobre todas as criaturas e especialmente sobre os organismos sociais.

Exatamente. E o Apóstolo São Paulo vai ainda mais longe. Ele declara que a severidade de Deus será manifestada contra aqueles que desobedecerem a esta lei primordial. Aqueles que não querem aceitar Deus como Criador, Chefe e Dominador Supremo de toda a Sociedade vão contra a lei natural e as luzes da sua própria razão. Não podemos aceitar as suas teorias, mas devemos combatê-las com extrema energia.

15.   Sob estas condições, toda a política é e deve ser submissa a Deus.

Já o disse. Toda a política deve ser submissa a Deus. Qualquer que seja o significado atribuído ao termo política, este deve ser reconhecido no que exprime como uma realidade dependente de Deus. Além disso, é nesta área que deve ser aplicada a teoria do fim último acima exposta. Nunca devemos perder de vista o fato de que o homem está na Terra para se preparar para a felicidade eterna. Todas as instituições divinas ou humanas têm como fim último a glória de Deus e a salvação das almas. Assim, todas as instituições sociais, todas as ações e diretivas políticas devem ter em conta esta verdade fundamental, que o homem não foi feito para este mundo, mas para a Eternidade. As constituições dos povos, a sua legislação, as suas disposições legais e administrativas etc., devem considerar antes de mais nada, o fim último de toda a existência humana. Todas as políticas devem, para este fim último, estar em conformidade com a Lei Eterna de Deus, o Credo e o Decálogo.

16. Diz-se que o Estado deve ser totalmente submisso a Deus. Mas a Igreja não deve ser igualmente assim?

É claro que deve. A Igreja, como qualquer Sociedade, deve a Deus toda a obediência e submissão. No mundo existem muitas sociedades diversas. Duas sociedades dominam sobre as outras: a Igreja e o Estado. Se insistimos na dependência do Estado de Deus, é devido aos erros que reinam sobre este assunto. A Igreja deve a Deus uma submissão ainda maior porque a sua função é conduzir os homens ao seu destino eterno. Depende de Deus para a sua existência, para os meios que Deus coloca à sua disposição para a santificação das almas; depende de Deus para a obrigação em que se encontra de mostrar aos indivíduos bem como aos homens públicos, às sociedades privadas bem como aos Estados, o caminho que deve ser seguido para ser salvo. Em suma, cada sociedade depende de Deus. O Estado é uma Sociedade: por conseguinte, depende de Deus. A Igreja é uma Sociedade: por isso depende de Deus, e a sua dependência é ainda mais íntima.

17. O que tem sido dito parece estabelecer que a Igreja e o Estado devem concordar no governo dos homens, não é verdade?

Exatamente. Os Papas sempre ensinaram que deve haver um perfeito acordo entre a Igreja e o Estado. A razão disto é muito simples: Igreja e Estado são duas instituições estabelecidas por Deus. A missão da Igreja é conduzir os homens à sua felicidade eterna. A missão do Estado é adquirir o bem material e temporal dos seus súbditos. O Estado deve adquirir este bem para que os seus súbditos possam atingir o seu fim final sem demasiadas dificuldades. Uma vez que o fim último é a coisa mais importante para o homem, é evidente que tudo o resto deve estar subordinado a ele. Uma vez que a missão da Igreja é conduzir os homens em segurança até ao seu fim último, Deus quer que ela seja obedecida. O seu poder, sem se estender às coisas de uma ordem material, inclui também a forma como os bens temporais e transitórios são empregues tendo em vista o fim a alcançar. Os Papas Pio IX e Leão XIII condenaram fortemente a doutrina da separação da Igreja e do Estado.

18. Estes ensinamentos são muito importantes. Parece que, para estar em conformidade com a verdade e com a lei divina, nenhuma inteligência humana pode jamais ter o pensamento consensual da independência do Estado, de uma Sociedade ou simplesmente da política, com respeito a Deus.

Já o disse. Qualquer pensamento assim consentido envolve uma declaração formal de independência da criatura contra o Criador. Esta é uma rebelião do espírito contra Deus e esta rebelião constitui um pecado particularmente grave.

 

III – O SUPREMO DOMÍNIO DE JESUS CRISTO SOBRE TODA SOCIEDADE E NAÇÃO

19. Poderia dizer-me o segundo artigo do Credo?

"[Creio] em Jesus Cristo, Nosso Senhor”. E no Credo da Missa diz: “Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por ele todas as coisas foram feitas. E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus: e se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem”.

20. Existe uma relação especial entre a Santíssima Humanidade de Jesus Cristo e a Ordem Social estabelecida neste mundo?

Sem dúvida existe. O homem é criado de tal forma que é feito para a Sociedade. Pela sua natureza e condições de existência, é chamado a viver em sociedade. Jesus Cristo tornou-se homem a fim de conduzir o homem à sua Eterna Beatitude. Assim, o Divino Redentor deve ter uma influência eficaz em todas as condições entre as quais Ele deve conduzir o homem ao seu fim; mas o homem, sendo feito para a Sociedade, deve tender para o seu fim na medida em que é um ser social, ou seja, através da Sociedade para a qual é feito. A sociedade não pode ser um fim supremo, mas apenas um meio. Para ser um meio, deve estar santificada e ser santificante. Isto só pode ser obtido através da Humanidade Sagrada de Cristo e em Cristo. Por esta razão, é evidente que deve existir uma relação especial entre a Humanidade Sagrada de Cristo e a Ordem Social estabelecida no mundo.

21.   Mas por que falar de Cristo em particular, não é Ele Deus? Não é verdade, portanto, que tudo o que foi dito sobre Deus já se aplica a Ele?

Naturalmente, tudo o que foi dito de Deus, aplica-se ao Verbo Eterno feita homem para nós. Jesus Cristo é Deus, por isso toda Sociedade depende d'Ele com dependência suprema e absoluta. Contudo, é preciso lembrar que em Jesus Cristo existe apenas uma Pessoa e duas naturezas: a Pessoa do Verbo e as naturezas divina e humana. A Pessoa do Verbo assumiu e uniu-se hipostaticamente com a natureza humana. Assim, a natureza humana de Cristo subsiste apenas no Verbo; em Jesus Cristo, ela assume condições bastante especiais.

22. Quais são as condições especiais que a Humanidade Santa de Cristo possui em virtude da dignidade que a Sua união hipostática criou para Ele?

As ações de Cristo são divinas. Isto decorre do fato de que todos os atos são atribuídos à pessoa. Uma vez que em Jesus Cristo existe apenas uma pessoa, não duas, todos os atos da natureza humana são atribuídos à pessoa divina.

23. Mas não é Jesus Cristo ao mesmo tempo Redentor?

Jesus Cristo é Redentor. Ele redimiu o gênero humano pela sua natureza humana. Nesta natureza, Ele é Mediador entre a Santíssima Trindade e o homem. A fim de defender os poderes especiais e a missão com que Jesus Cristo, homem, foi revestido, as condições dadas ao Divino Mestre na sua qualidade de Homem-Mediador não devem ser perdidas de vista. Ele é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Como Deus independe de alguém, Ele não tem nada para receber de alguém, e tudo depende d'Ele. Como homem, Ele deve receber tudo de Deus, assim como todas as criaturas, mas em condições especiais.

 

IV – CONDIÇÕES E SENTIDO EXATO DA REALEZA DE JESUS CRISTO

24. Qual é a condição fundamental da Realeza Social de Jesus Cristo?

A condição essencial da Realeza Social de Jesus Cristo é a vontade formal da Santíssima Trindade de dar a Jesus Cristo homem um verdadeiro e absoluto poder real. Não se trata aqui dos Direitos do Verbo de Deus, que são infinitos, mas dos Direitos e Poderes que Deus dá à Humanidade Santa assumidos pelo Verbo.

25. Deus deu-nos a conhecer a sua vontade a este respeito?

Sem qualquer dúvida. Na encíclica Quas Primas o Papa Pio XI dá-nos duas provas que indicam a vontade divina sobre este assunto.

26. Quais são estas duas provas?

O Papa Pio XI afirma a primeira prova:

"São Cirilo de Alexandria, quando escreve: ‘Numa palavra, possui o domínio de todas as criaturas, não pelo ter arrebatado com violência, senão em virtude de sua essência e natureza’. Esse poder dimana daquela admirável união que os teólogos chamam de hipostática. Portanto, não só merece Cristo que anjos e homens O adorem como a seu Deus, senão que também devem homens e anjos prestar-Lhe submissa obediência como a Homem. E assim, só em força dessa união, a Cristo cabe o mais absoluto poder sobre todas as criaturas".

Este é o pensamento do Papa sobre o assunto: a união hipostática da natureza humana com a pessoa do Verbo confere à natureza humana assumida em Jesus Cristo uma dignidade que transcende todas as outras dignidades com as quais uma natureza humana pode ser revestida. Não seria admissível nem aceitável colocar ao lado da natureza humana assumida o Verbo uma dignidade que, na lei, poderia reivindicar uma superioridade sobre o Homem-Cristo. Não seria admissível que um Príncipe, uma Câmara legislativa, pudesse declarar-se efetiva e juridicamente superior Àquele a quem Deus investiu com a prerrogativa transcendente da união hipostática. Este é o primeiro e essencial fundamento do poder real atribuído a Jesus Cristo.

27. Declare o segundo fundamento da doutrina da Verdade ensinada por Pio XI.

Pio XI prossegue:

“Mas haverá, outrossim, pensamento mais suave do que refletir que Cristo é nosso Rei não só por direito de natureza, mas também a título de Redentor? Lembrem-se os homens esquecidos de quanto custamos a nosso Salvador. ‘Não fostes resgatados a preço de coisas perecíveis, prata e outro, mas com o sangue precioso de Cristo, como de cordeiro sem mancha nem defeito’. Já nos não pertencemos, pois que deu Cristo por nós ‘tão valioso resgate’. Até nossos corpos são ‘membros de Cristo’”.

E este é o pensamento do Papa. Toda a criatura pertence a Deus. O homem tinha-se perdido pelo pecado e não tinha nada com que pagar por ele. Jesus Cristo, o Verbo de Deus feito Homem, tomou sobre Si o encargo de pagar esta dívida com o Seu Sangue divino. Por sua vez, a Santíssima Trindade deu-lhe como recompensa todo o gênero humano e cada criatura, e concedeu-lhe especialmente o privilégio de formar um só corpo e uma só coisa com todos os homens que a Ele se uniriam pela graça.

28. Jesus Cristo deu a conhecer as intenções da Santíssima Trindade relativamente ao Seu poder real?

Jesus Cristo, em plena majestade divina, perante o mundo inteiro e perante todas as eras, declarou: “Todo o poder me é dado no céu e na terra” (Mt XXVIII, 18). Note-se que o poder de que Ele fala lhe foi dado, então Ele obteve esse poder. Em segundo lugar, note-se que lhe foi dado todo o poder. Por conseguinte, não há poder na terra que não pertença a Cristo. O poder foi-lhe dado pela Santíssima Trindade e, portanto, o poder dos reis, príncipes, e de toda a autoridade constituída é o poder de Cristo. É assim que São Paulo nos explica: "Non est enim potestas nisi a Deo", "Não há poder que não venha de Deus" (Rm XIII, 1). Esta é a origem do poder. Todo o poder vem de Deus e não pode vir senão d'Ele. Todo o poder foi confiado a Cristo; portanto todo o poder passa por Cristo e procede d'Ele.

29. Pode deduzir-se do que foi dito que Jesus Cristo exerce um poder régio sobre todas as sociedades?

A resposta a esta pergunta é absolutamente afirmativa. Em primeiro lugar, como diz o Papa Leão XIII, a autoridade pertence essencialmente como algo próprio de cada sociedade. Sem autoridade não pode haver sociedade. Todas as sociedades são governadas pela autoridade. Se estabelecermos uma relação entre estas verdades devemos concluir o seguinte: a autoridade que se encontra numa dada sociedade ou num dado país vem de Jesus Cristo, procede d'Ele e depende d'Ele. Por conseguinte, esta autoridade é necessariamente de tal natureza que deve estar sujeita a Cristo. Pelo próprio facto, Jesus Cristo é o verdadeiro Rei das sociedades, cuja autoridade lhe pertence.

30. O Papa Pio XI fala também de um poder legislativo, executivo e judiciário. Cristo também está investido com este triplo poder?

É claro, uma vez que é impossível compreender um poder que não goza da prerrogativa de fazer leis, julgar e executar. Este triplo poder é uma consequência necessária da autoridade com que Jesus Cristo foi investido por Deus.

31. Pode haver qualquer outra razão que justifique a Realeza Social de Jesus Cristo?

Sim, pela própria natureza de cada Sociedade, e especialmente do seu propósito, vemos mais uma prova da Realidade Social de Jesus Cristo sobre cada Ordem Social.

32. Não é a autoridade que estabelece o fim da Sociedade?

Sem dúvida. Reconhecer que existe autoridade numa sociedade é afirmar que essa autoridade deve conduzir a sociedade até ao seu fim. Este fim é determinado pela união de vontades que tendem a realizá-lo. O fim de uma sociedade pode ser considerado a partir do seu próprio ângulo especial. Este ângulo especial nunca pode permitir que se perca de vista o fim supremo e último. Se, de fato, a missão da autoridade é conduzir a Sociedade que ela governa para o seu fim, é evidente que a autoridade que procede de Cristo – e não é inútil insistir, toda a autoridade procede d'Ele – deve ter como fim último o próprio fim da vida e morte de Jesus Cristo. É impossível que Jesus Cristo deseje delegar em alguém uma autoridade sobre a qual não retenha a sua própria autoridade para alcançar o fim da sua Redenção. Da mesma forma, é impossível para Ele abdicar da mínima autoridade sobre os meios a utilizar pela Sociedade para atingir o seu fim, ou sobre os testamentos que foram unidos na Sociedade.

 

V – CARÁTER ESPIRITUAL DA REALEZA DE JESUS CRISTO

33. Que outra característica possui a Realeza Social de Cristo?

O Papa Pio XI explica-o nos seguintes termos:

“Esta realeza, porém, é principalmente interna e respeita sobretudo a ordem espiritual. Provam-no com toda evidência as palavras da Escritura acima referidas, e, em muitas circunstâncias, o proceder do próprio Salvador. Quando os judeus, e até os Apóstolos, erradamente imaginavam que o Messias libertaria seu povo para restaurar o reino de Israel, Jesus desfez o erro e dissipou a ilusória esperança. Quando, tomada de entusiasmo, a turba, que O cerca, O quer proclamar rei, com a fuga furta-se o Senhor a estas honras, e oculta-se. Mais tarde, perante o governador romano, declara que seu reino ‘não é deste mundo’. Neste reino, tal como no-lo descreve o Evangelho, é pela penitência que devem os homens entrar. Ninguém, com efeito, pode nele ser admitido sem a fé e o batismo; mas o batismo, conquanto seja um rito exterior, figura e realiza uma regeneração interna. Este reino opõe-se ao reino de Satanás e ao poder das trevas; de seus adeptos exige o desprendimento não só das riquezas e dos bens terrestres, como ainda a mansidão, a fome e sede da justiça, a abnegação de si mesmo, para carregar com a cruz. Foi para adquirir a Igreja que Cristo – enquanto Redentor – verteu o seu sangue; para isto é, que, enquanto Sacerdote, se ofereceu e de contínuo se oferece como vítima. Quem não vê, em consequência, que sua realeza deve ser de índole toda espiritual, e participar da natureza deste seu duplo ofício? Todavia, fora erro grosseiro denegar a Cristo Homem a soberania sobre as coisas temporais todas, sejam quais forem. Do Pai recebeu Jesus o mais absoluto domínio das criaturas, que Lhe permite dispor delas todas como Lhe aprouver. Contudo, enquanto viveu sobre a Terra, absteve-se totalmente de exercer este domínio temporal, e desprezou a posse e regimento das coisas humanas, que deixou – e deixa ainda – ao arbítrio e domínio dos homens. Verdade graciosamente expressa no conhecido verso: ‘Não arrebata diademas terrestres, quem distribui coroas celestes’”. 

34. Explique este carácter espiritual da Realeza de Cristo.

É necessário recordar o que já foi dito. Em razão da união hipostática e da Sua ação redentora, Jesus Cristo possui plena autoridade sobre cada criatura. O homem deve alcançar o seu fim último através de Jesus Cristo. Ele é o Caminho a ser seguido para a salvação, a Verdade que ilumina cada homem que vem a este mundo, a Vida cuja missão é vivificar as almas pela graça. Por causa do Seu poder supremo, Jesus Cristo deve trabalhar sobre cada homem, para que Ele possa estar em toda a realidade para cada um: Caminho, Verdade e Vida. Também por causa deste mesmo poder supremo que Lhe dá autoridade sobre cada Sociedade e cada Autoridade, Ele deve necessariamente trabalhar de tal forma que, por um lado, nenhuma autoridade terrena impeça ou possa impedir alguém de fazer Jesus Cristo Caminho, Verdade e Vida; e por outro lado, que cada Autoridade ou Sociedade coopere de facto para fazer Jesus Cristo Caminho, Verdade e Vida para todos. O carácter social e espiritual da Realeza de Cristo é explicado com perfeita clareza pelas considerações que acabam de ser feitas. Jesus Cristo é Rei. Todo o poder lhe foi dado, mesmo sobre coisas temporais. Este poder pode ser exercido por direito, tanto na ordem temporal como na ordem espiritual. De fato, limita-se à intervenção espiritual.

35. Em que medida é que Cristo intervém espiritualmente nas organizações sociais?

 Não há limites ao seu poder de intervenção. De direito e de fato, Cristo Rei deve intervir por Ele próprio e pela Sua Igreja, ou seja, pelos Seus ensinamentos, nas constituições fundamentais dos povos e países, nas organizações sociais e mesmo na própria Liga das Nações. Isto deve ser assim, porque é o único meio para o Rei Divino cumprir a missão divina e terrestre que a Santíssima Trindade se impôs a Si próprio e lhe confiou.

36. Será Jesus Cristo é Rei de todas as Nações?

Sim, Ele é. Segundo a palavra do Profeta: Todas as nações lhe foram dadas como herança, e o seu império, ou mais precisamente a seu domínio, estende-se até aos confins da terra.

37. A homenagem pública devida a Jesus Cristo Deus e Homem surge do carácter espiritual com que a Realeza de Jesus Cristo está revestida?

Sim, as homenagens públicas de adoração e amor, de reconhecimento e reparação, de petição e impetração, são devidas a Jesus Cristo Deus. Eles são impostos a Cristo Homem e a todos os homens por Cristo Rei. Cristo Rei exerce uma realeza espiritual porque Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Além disso, exerce-o porque só Ele possui os meios para adorar e render todos os Seus deveres à Santíssima Trindade. Que o homem devia cumprir estes deveres era um dos fins da vinda de Cristo ao mundo. Cabe, portanto, à Sua realeza impor estas homenagens espirituais ao homem e a cada Sociedade, pois é o único meio tanto para um como para o outro de atingir o seu fim último.

 

VI – O PODER DA IGREJA NA ORDEM ESTABELECIDA POR DEUS

38. Qual é a vontade de Cristo, Rei das Sociedades, para a Igreja?

A sua vontade é dupla. Em primeiro lugar, como já foi dito, a Igreja deve a Deus e a Jesus Cristo a mais completa submissão. Não é permitido acrescentar uma única verdade às ensinadas por Jesus Cristo. Da mesma forma, não é permitido suprimir nenhuma. Depende de Deus, mesmo nos mínimos detalhes, com dependência absoluta. Também, pela vontade de Jesus Cristo, é investido de uma missão que deve cumprir. Foi devido a esta autoridade sobre toda a autoridade que Jesus Cristo lhe confiou esta missão. Implica necessariamente uma participação na sua autoridade sobre toda a autoridade.

39. Pode explicar um pouco desta missão da Igreja?

Esta é a situação em que Cristo colocou a Sua Igreja. Ele disse-lhe: "Ide, pois, e ensinai todas as gentes, eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos". Estas palavras explicam as intenções de Jesus Cristo. O Divino Mestre quer que a Sua Igreja no mundo seja o instrumento para a salvação das almas. Quer de tal forma que confiou apenas à Igreja, à exclusão de qualquer outro organismo, a missão de conduzir as almas à sua bem-aventurança final. Ele deseja, portanto, que a Sua Igreja cumpra no mundo, para a salvação do mundo, a função de um organismo necessário.

40. Mas nestas condições a Igreja seria tão necessária como o próprio Cristo, o que é inadmissível.

É perfeitamente admissível que a Igreja seja tão necessária como o próprio Cristo, se tal for a vontade de Cristo. E, de fato, Cristo ordena à Sua Igreja que ensine o povo e administre os sacramentos. Ou melhor, Jesus Cristo, através da mediação da Santa Igreja, deseja ser para cada homem e para cada sociedade o Caminho, a Verdade e a Vida.

41. Mas nestas condições, a Igreja pertence ao título de Rainha, e o Papa ao título de Rei.

Inquestionavelmente. A Igreja não tem ninguém acima dela ou no mesmo nível com ela, que a possa iluminar, ensinar e dirigir, mas o próprio Deus, o Espírito de Deus e Jesus Cristo. Se Cristo é verdadeiramente Rei porque Ele exerce autoridade sobre indivíduos, sociedades e todas as outras autoridades, da mesma forma a Igreja é Rainha, porque Ela deve ensinar aos homens com autoridade os seus deveres. E porque ela governa verdadeiramente, ela é Rainha. Pelo mesmo título e pelas mesmas razões, o Papa é verdadeiramente Rei.

42. Quais são as consequências imediatas destas verdades?

O primeiro de tudo é que Jesus Cristo e a Sua Igreja são obrigados a intervir em todas as ordens sociais. Em cada obrigação social, seja ela qual for, é sua missão divina iluminar os povos e as sociedades quanto aos seus deveres. É isto que a Santa Sé ensina numa carta dirigida ao Arcebispo de Tours (França):

"No meio das atuais desordens, é necessário recordar às pessoas que a Igreja é, pela sua instituição divina, a única arca de salvação para a humanidade. Fundada pelo Filho de Deus em São Pedro e seus sucessores, é não só a guardiã das verdades reveladas, mas também a necessária guardiã da lei natural. Por esta razão, hoje mais do que nunca, deve ser ensinado, como o senhor está a fazer, Monsenhor, que a verdade libertadora, tanto para os indivíduos como para as sociedades, é verdade sobrenatural na sua plenitude e pureza, sem atenuação ou diminuição ou compromisso, apenas, numa palavra, como Nosso Senhor Jesus Cristo veio trazê-la ao mundo, tal como Ele a confiou à custódia e magistério de Pedro e da sua Igreja". (Carta de 16 de Março de 1917).

A segunda consequência, que se segue à primeira, é que Jesus Cristo e a sua Igreja são necessários para a Ordem Social. Se não fossem necessários, Deus não os teria imposto ao mundo como meio de salvação.

43. Mas será que a Igreja tem uma missão não só para com as almas, mas também para com as sociedades?

Sim, a Igreja e o Papa têm uma tarefa divinamente imposta, não só para com as almas, mas também para com as sociedades. Em primeiro lugar, só à Igreja na terra foi confiado o depósito não só das verdades reveladas, mas também das verdades morais da ordem natural. Sem a existência e a prática desta lei moral, nenhuma Sociedade pode existir. Pertence, portanto, à Igreja ensinar as verdades primordiais que só por si podem salvar o mundo e cada país em particular. Pertence também à Igreja e apenas a ela a interpretação autorizada das leis da justiça natural que devem reger as relações dos Povos entre si. É correto que assim seja. A Igreja deve conduzir as nações ao seu fim último. A Igreja, portanto, deve conduzi-los ao seu fim, através da sociedade em que Deus quer que vivam. Esta é a verdade primordial do fim último querido por Deus e que o homem, que ilumina todas as grandes questões, deve querer. Não é surpreendente que o desprezo por esta verdade e pela lei que ela implica atraia castigos divinos? Não será a impotência em que os governos que procuram a Paz das Nações se encontram um verdadeiro castigo? Deus, a Igreja e o Papa estão encurralados, e as coisas querem ser feitas sem eles. A consequência deste esquecimento criminoso é fatal: quer ser feito sem Deus, e Deus deixa que as coisas sejam feitas sem Ele. Nada de bom é feito.

44. Nestas condições os homens devem ser ensinados, a todo o custo, a dependência de cada Sociedade de Deus, do seu Cristo, e da Missão da Igreja.

Sem dúvida. Nestas condições, os homens devem ser ensinados, a todo o custo, a dependência de cada Sociedade de Deus, do seu Cristo e da Missão da Igreja. Sem dúvida. Há um ditado comum: "Entre dois males é preciso escolher o menor". E é uma certeza que o mal que vem do silêncio daqueles cuja missão é ensinar é o mal maior e mais pernicioso. Jesus Cristo ou de uma forma categórica para circunstâncias como estas, para estabelecer a Sua Verdade no mundo, se é necessário sofrer sofrimento e perseguição, deve ser feito. É melhor martírio do que o sacrifício e renúncia às verdades necessárias para a salvação. 

 

VII – O ERRO FUNDAMENTAL QUE REINA ATUALMENTE

45. Qual é o erro mais pernicioso e prejudicial sobre o assunto com que estamos a lidar?

Sem dúvida, o erro mais pernicioso e irredutível é aquele que diz que não há nem pode haver, nem para os indivíduos nem para as sociedades, nenhuma verdade que se imponha a si própria, ou seja, que exista. Assim, de facto e de jure, não haveria, nem poderia haver, verdade ou erro. A consequência estritamente lógica é que não haveria nem bem nem mal, nem certo nem errado. Todos os direitos seriam dados tanto ao erro como à verdade, tanto ao bem como ao mal.

46 O que significa dar direito ao erro?

É fácil de explicar este ponto. Todos os organismos sociais oficiais e, particularmente, as constituições dos Povos colocaram como base prática "A Declaração dos Direitos do Homem" da Revolução Francesa de 1789. Os direitos humanos são absolutos; o homem está à cabeça. Tudo, incluindo a Verdade, depende dele e foi feito por ele. 

47 Qual é o significado da Declaração dos Direitos do Homem quando considerada do ponto de vista da sociedade moderna?

Algo muito simples. Em tempos anteriores, Deus era o centro, o início e o fim de tudo na organização social e em relação ao indivíduo. As constituições das nações baseavam-se em Deus, Jesus Cristo e na missão da Igreja, de acordo com os requisitos dos direitos divinos. Mas de repente os direitos de Deus foram abolidos. Assim, onde antes Deus era o Senhor e reinava como tal, o homem, cujos pensamentos e vontades substituíram os pensamentos, a verdade, a vontade e a lei de Deus, tomou o controle.

48. De que forma foram estas teorias apresentadas ao público?

Este estado de coisas foi instituído pela teoria das grandes liberdades modernas, que são a base das constituições de todos os países. Existem as liberdades de consciência, ensino, imprensa, associação e culto. Estas liberdades são moderadas por lei. A lei é a expressão da vontade geral.

49. Qual é o significado exato destas liberdades? Não significam que o homem deve ser inteiramente livre para ensinar e praticar o bem?

Poderiam ser compreendidos desta forma. Mas infelizmente, não é o significado que corresponde à realidade. O liberalismo moderno compreendeu e aplicou estas liberdades de forma muito diferente. Para o liberalismo, estas liberdades consistem no fato de que cada um é livre de viver como quiser e de ensinar o que quiser; de escrever e publicar o que quiser; de se associar para qualquer fim, bom ou mau. Todos são livres de adorar quem quiserem, Deus, Jesus Cristo, Maomé e o próprio Satanás se ele quiser.

50. E qual é a relação entre esta teoria das liberdades modernas e o erro fundamental de que se tem falado?

A relação é óbvia. Para as Sociedades e Nações contemporâneas, e para o homem formado de acordo com os Princípios de 1789, a verdade não existe; a única coisa que existe é o homem, ou seja, o pensamento e a vontade do homem. Todos têm o direito estrito de conceber e manter quaisquer ideias que desejem e de as estabelecer como diretivas da sua vida. Esta é a prova manifesta de que para o homem só o seu próprio pensamento, por ele conhecido e elaborado, existe como uma realidade da qual ele tem de ter em conta. Fora dele próprio, a verdade não existe. Como consequência desta doutrina, cada um tem o direito estrito de ensinar o que quer ensinar por palavra ou por escrito. Também pela mesma razão, a lei que dirige os países é válida na medida em que expressa a vontade geral conhecida por eleição e votação, e não na medida em que expressa a Verdade e a Vontade Divinas. Em suma, a lei moderna não reconhece nem professa qualquer verdade; apenas se curva ao pensamento humano. 

51. Então, atribui à Declaração dos Direitos do Homem uma influência preponderante na mentalidade moderna e nos erros predominantes?

Sem dúvida. Se, em nome de um direito, o homem pode pensar o que gosta, se de repente pode, em nome do mesmo direito (e isto é muito grave) querer o que gosta e agir como lhe apetece, para ele não existe outro além dele próprio e os direitos de um homem deificado, independente de toda a autoridade e de toda a verdade. Esta doutrina permite todos os erros em todas as ordens de coisas. Na filosofia, na teologia, na política, nas ciências econômicas e sociais, os pensamentos e caprichos do homem predominariam e serviriam de guia. Mas o que dá a esta doutrina a sua importância e a sua excepcional gravidade é que todos os direitos, que se diz autor da Declaração de 1789, seriam devidos ao homem em lei estrita, oficialmente reconhecidos e aprovados. Cada pensamento, palavra, ação etc., basear-se-iam nestes direitos e seriam inteiramente legítimos.

52. Mas não é verdade que a Declaração dos Direitos do Homem coloca limites à ação humana?

Vejamos. De acordo com os Princípios de 1789, os direitos do homem são limitados pelos direitos dos seus semelhantes. Assim, o meu direito de tomar os bens de outrem é limitado pelo direito de propriedade do seu vizinho. O meu direito a matar é limitado pelo direito do meu semelhante à vida. Todos estes limites obtêm o seu reconhecimento e valor na lei. Mas é imediatamente aparente que são ilógicos. Se os meus direitos são absolutos em princípio, ninguém pode impor-lhes um limite. Apesar de todas as restrições impostas pela lei, o dogma fundamental da liberdade sem restrições e dos direitos irrestritos do homem prevalecerá sempre contra a lei. A licença que seria dada a qualquer doutrina e ensino é imediatamente visível. Sob a capa dos direitos do homem, os erros mais perniciosos e monstruosos poderiam ser introduzidos nos organismos sociais, e poderiam reivindicar legitimamente a proteção da autoridade, cuja função seria proteger, não a Verdade, mas o pensamento do homem.

53. Ao dizer isto, está a confrontar-se com todas as ideias que hoje em dia são admitidas, e a pôr fim ao direito moderno.

De fato, desta forma, todos os chamados princípios modernos são cortados na raiz.

54. Não poderia dar-me uma noção exata do direito moderno?

Pode-se dar a noção dada pelo Papa Leão XIII na sua colossal Encíclica Immortale Dei:

“Todos os homens, já que são da mesma raça e da mesma natureza, são semelhantes, e, ipso facto, iguais entre si na prática da vida; cada um depende tão bem só de si, que de modo algum está sujeito à autoridade de outrem: pode com toda liberdade pensar sobre qualquer coisa o que quiser, fazer o que lhe aprouver; ninguém tem o direito de mandar aos outros. Numa sociedade fundada sobre estes princípios, a autoridade pública é apenas a vontade do povo, o qual, só de si mesmo dependendo, é também o único a mandar a si. Escolhe os seus mandatários, mas de tal sorte que lhes delega menos o direito do que a função do poder, para exercê-la em seu nome. A soberania de Deus é passada em silencia, exatamente como se Deus não existisse, ou não se ocupasse em nada com a sociedade do gênero humano; ou então como se os homens, quer em particular, quer em sociedade, não devessem nada a Deus, ou como se pudesse imaginar-se um poder qualquer cuja causa, força, autoridade não residisse inteira no próprio Deus. Destarte, como se vê, o Estado não outra coisa mais senão a multidão soberana e que se governa por si mesma e desde que o povo é considerado a fonte de todo o direito e de todo o poder, segue-se que o Estado não se julga jungido a nenhuma obrigação para com Deus, não professa oficialmente nenhuma religião, não é obrigado a perquirir qual é a única verdadeira entre todas, nem a preferir uma às outras, nem a favorecer uma principalmente; mas a todas deve atribuir a igualdade em direito, com este fim apenas, de impedi-las de perturbarem a ordem pública. Por conseguinte, cada um será livre de se fazer juiz de qualquer questão religiosa, cada um será livre de abraçar a religião que prefere ou de não seguir nenhuma se nenhuma lhe agradar. Daí decorrem necessariamente a liberdade sem freio de toda consciência, a liberdade absoluta de adorar ou de não adorar a Deus, a licença sem limites de pensar e de publicar os próprios pensamentos”.

Em suma, segundo o Papa Leão XIII, os princípios do Direito Moderno são os seguintes: I – Todo o poder e autoridade emanam do homem, esta é a primeira consequência da Declaração dos Direitos do Homem; II – Este poder traduz-se na aceitação e prática da liberdade mais absoluta: o homem não pode sofrer coerção ou obrigação, pois tem todos os direitos; III – Uma vez que o direito de um homem pode ser oposto ao direito de outro, o Direito Moderno estabelece uma restrição ao uso da liberdade absoluta: o direito de um é limitado pelo direito de outro. Embora esta disposição seja ilógica, é necessária a fim de evitar conflitos e os abusos que seriam inevitáveis. Em qualquer sociedade organizada, a legislação é necessária. Esta legislação tomará como base a vontade geral dos homens que pertencem a essa Sociedade, e não Deus, Jesus Cristo e a Sua Lei Eterna. Os indivíduos nomeiam os oficiais que expressarão a sua vontade no Parlamento. A legislação será apenas a expressão da vontade da multidão. Este é o resultado dos Direitos do Homem. Insistamos neste ponto capital: a vontade geral, que só pode ser responsável perante si mesma, pode impor leis que são prejudiciais e contrárias a todos os direitos. Contudo, estas leis tornam-se lei pelo facto de serem a lei, ou seja, a expressão da vontade geral.

55 Haverá uma grande diferença entre o Direito Moderno e o Direito Católico, fundado no Direito Divino?

A diferença é enorme. O Direito moderno baseia-se no homem. A lei católica é baseada em Deus. O direito católico tem como ponto de vista o fim supremo e último do homem. O direito moderno tem o homem e o seu fim, que é ele próprio, como o seu ponto de vista. O Direito Católico tem em primeiro lugar em conta a dependência absoluta de cada criatura de Deus e especialmente a dependência que lhe é devida por cada sociedade e Estado. O Direito moderno estabelece que a união de vontades funda a Sociedade sobre a vontade dos associados, independentemente de qualquer vontade divina. O Direito Católico é o estabelecimento, por direito, do Reino de Deus no indivíduo e na Sociedade. O Direito Moderno é a negação prática da Verdade Católica e de toda a Verdade divina. É o estabelecimento oficial, e consagrado por lei, do secularismo, do ateísmo e mesmo de todo o erro. Em suma, o Direito Católico é a Lei, a autoridade e o poder que derivam do Direito, colocados ao serviço da Verdade, que por si só salva indivíduos e Sociedades. O direito moderno é a lei, a autoridade e o poder do Direito, colocado ao serviço do homem, a fim de colocar as inteligências e os testamentos, as Sociedades e os Estados juridicamente (e portanto legitimamente) ao nível do homem deificado, ou seja, o princípio e o fim de todas as coisas. Compare as Constituições dos Povos que provêm dos Princípios modernos com as que provêm dos Princípios Católicos e terá uma pequena ideia das catástrofes produzidas pelo Direito Moderno.

56 Não haverá um liberalismo que, nestas matérias, faça uma distinção completamente admissível?

Existem diferentes tipos de liberalismo. Não é apropriado falar aqui longamente sobre o assunto. Mas limitar-nos-emos à substância da doutrina, que se manifesta sob dois aspectos diferentes. Em primeiro lugar, há o liberalismo que atribui direitos ao Erro e ao Mal, assim como à Verdade e ao Bem. Este é o princípio, como já foi dito, de toda a licenciosidade. O Papa Leão XIII condena com razão este liberalismo como herético e impiedoso. Mas há um liberalismo mais mitigado. Aquilo que por uma estranha aberração é chamado liberalismo católico. Nas suas consequências, não é menos pernicioso do que o primeiro. Sem afirmar que o Erro e o Mal têm direitos, este liberalismo não afirma que eles não têm. Pelo contrário, é de opinião que, em conformidade com o espírito de tolerância e caridade cristã, os erros modernos e aqueles que os professam devem ser tratados como se esses erros tivessem direitos. Ele declara que todos têm as suas opiniões e o direito de as ter, e que ninguém deve ser perturbado por causa das suas opiniões ou ideias. Praticamente isto está a colocar Erro e Verdade, Bem e Mal, em pé de igualdade. Os resultados desta doutrina são altamente desastrosos, pois é proclamado que não só aqueles que professam tal doutrina, mas a própria doutrina que Deus condena, devem ser tratados com respeito. 

Consideremos as palavras do Papa Leão XIII na sua encíclica Libertas Praestantissimum:

“[P]odem-se distinguir muitas espécies de liberalismo, porque existem para a vontade mais duma forma e mais dum grau na recusa da obediência devida a Deus ou àqueles que participam da sua autoridade divina.

A insurreição completa contra o império supremo de Deus e recusar-lhe absolutamente toda a obediência, quer seja na vida pública, quer na vida particular e doméstica, é a um tempo, sem dúvida alguma, a maior depravação da liberdade e a pior espécie de liberalismo. É sobre ela que devem cair, sem restrição, todas as censuras que até aqui temos formulado.

Imediatamente depois vem o sistema daqueles que, concedendo que se deve depender de Deus, autor e senhor do universo, pois que toda a natureza é regida pela sua Providência, ousam repudiar as regras da fé e da moral que, ultrapassando a ordem da natureza, nos vêm da própria autoridade de Deus; ou pretendem, pelo menos, que não é preciso tê-las em conta, principalmente nos negócios públicos do Estado. Qual a gravidade do seu erro e quão pouco de acordo estão consigo mesmos, também o vimos acima. É esta doutrina que deriva, como da sua fonte e princípio, o pernicioso erro da separação da Igreja e do Estado; quando, pelo contrário, é manifesto que estes dois poderes, embora diferentes na sua missão e na sua dignidade, devem, todavia, entender-se na concórdia da sua ação e na reciprocidade dos seus bons ofícios.

A este erro, como a um gênero, se liga uma dupla opinião. Muitos, com efeito, querem uma separação radical e total entre a Igreja e o Estado: consideram estes que, em tudo o que diz respeito ao governo da sociedade humana, nas instituições, nos costumes, nas leis, nas funções públicas, na instrução da juventude, se não deve fazer caso da Igreja como se ela não existisse; apenas deixam aos membros individuais da sociedade a faculdade de cumprirem particularmente, se quiserem, os deveres da religião. Contra estes conservam toda a sua força os argumentos pelos quais refutamos a opinião da separação da Igreja e do Estado, com a agravante de que é completamente absurdo que a Igreja seja, ao mesmo tempo, respeitada pelo cidadão e desprezada pelo Estado.

Os outros não põem em dúvida a existência da Igreja, o que lhes seria impossível, mas tiram-lhe o caráter e os direitos próprios duma sociedade perfeita, e querem que o seu poder, privado de toda a autoridade legislativa, judicial e coercitiva, se limite a dirigir pela exortação e pela persuasão aqueles que de bom grado e por sua própria vontade se submetem a ela. E assim, nesta teoria, o caráter desta divina sociedade é completamente desvirtuado, a sua autoridade, o seu magistério, toda a sua ação é diminuída e restringida, ao mesmo temo que a ação e a autoridade do poder civil são por eles exagerada até ao ponto de quererem que a Igreja de Deus, como qualquer outra associação voluntária, seja colocada sob a dependência e dominação do Estado. Para os convencer de erro, os apologistas têm empregado poderosos argumentos que Nós mesmo não deixamos no olvido, deles se conclui que, pela vontade de Deus, a Igreja possui todas as qualidades e todos os direitos que caracterizam uma sociedade legítima, soberana e, em todos os pontos, perfeita.

Muitos, finalmente, não aprovam esta separação da Igreja e do Estado, mas julgam que é necessário induzir a Igreja a ceder às circunstancias, fazer com que ela se acomode e se preste ao que reclama a prudência destes tempos no governo das sociedades. Esta opinião é boa quando entendida dum certo modo equitativo de proceder, conforme com a verdade e com a justiça, a saber: que a Igreja, na expectativa certa dum grande bem, se mostre indulgente e conceda às circunstâncias do tempo o que pode conceder sem violar a santidade da sua missão. Mas sucede o contrário com as práticas e doutrinas que a relaxação dos costumes e os erros correntes introduziram contra o direito. Não pode haver época alguma sem religião, verdade e justiça; e como estas grandes e santas coisas Deus as colocou sob a guarda da Igreja, nada há tão estranho como pretender que deixe passar sem reparo o que é falso ou injusto, ou que se torne conivente com o que prejudicar a religião”.

57. Mas, apesar de tudo, não será preferível agir desta forma?

Certamente que não. Há duas razões para não estar em conformidade com os pontos de vista do chamado liberalismo católico. A primeira é que para este liberalismo Deus e Jesus Cristo estão privados da sua glória na ordem social. Devido à posição do chamado liberalismo católico, Deus nunca será reconhecido, amado e glorificado como Ele deveria ser seriamente. A segunda razão é o perigo de condenação das almas numa Sociedade formada de acordo com os princípios do chamado liberalismo católico. O catolicismo é essencialmente um invasor e um educador. Se não invade, não educa de acordo com o Espírito de Cristo. Este liberalismo forma um meio em que a atmosfera se torna fatalmente acatólica e mesmo ateia. Desta forma, o liberalismo, chamado católico, contribui para a perda de incontáveis almas.

58. Mas o Papa Leão XIII fala sobretudo dos males causados pelo laicismo, então por que falar da questão do liberalismo?

É bastante evidente que o secularismo reina na ordem social devido aos princípios do liberalismo. Qualquer que seja o significado dado à palavra secularismo, deve admitir-se que a doutrina oferecida ao povo sob este nome coloca o homem no lugar de Deus. O homem deve reinar onde só Deus possui autoridade. Bem, todas as teorias deste tipo provêm da Declaração dos Direitos do Homem e da liberdade de que goza sobre e contra tudo, em particular contra Deus. O secularismo vem diretamente do liberalismo. O liberalismo é o seu maior apoio, e justifica-o como uma revolta contra o Ser Supremo.

 

VIII –DIREITOS INTANGÍVEIS DA VERDADE E DO BEM

59. Só a Verdade e o Bem têm direitos?

É claro que sim.

60. Como é que prova a sua afirmação?

Por argumentos teológicos e filosóficos. 

61 Quais são os argumentos filosóficos?

O nada não tem direitos, uma vez que não existe. É impossível que o que não existe possa ter direitos. Atribuir direitos ao nada é uma injustiça. Agora, o que significa atribuir direitos ao erro? Significa a atribuição de um direito ao nada. Para compreender isto é suficiente perceber o que são Verdade e Erro. A verdade encontra-se na inteligência, na medida em que a inteligência reproduz exatamente a realidade existente. Quando a inteligência produz intelectualmente em si uma coisa que não existe, somos confrontados com o erro. E o que acontece num caso destes? Tenho tal ideia de uma coisa na minha mente, de modo que para mim é como se ela existisse. Atribuo-lhe, portanto, o direito de estar na minha mente como se de fato existisse. Mas na realidade, não existe. E uma vez que não existe numa criação da minha mente, sem qualquer fundamento, como posso então tornar realidade uma realidade que não existe o fundamento da minha vida e obra? Qual será o resultado de uma tal aberração? O resultado será o mesmo que para um edifício erguido sem fundações. Se eu colocar como fundamento da minha vida e das minhas ações uma ideia própria que não corresponde a nada objetivo e real, todo o edifício intelectual e social que construo sobre esta base está necessariamente condenado ao colapso. A única base possível para a vida e a ação deve ser uma verdadeira realidade. Por esta razão, só a Verdade tem, na ordem individual e social, o direito de existir. De nenhum ponto de vista se pode reivindicar por erro este direito. E se se realiza numa inteligência ou nas massas, é usurpar direitos que não lhe pertencem, e, portanto, cometer injustiça.

62. Que argumentos teológicos apoiam a sua afirmação?

A afirmação baseia-se na Revelação feita ao mundo por Jesus Cristo. Nosso Senhor veio ao mundo para o salvar como um todo e a cada homem em particular. Para este fim, Ele revelou ao mundo a Verdade. Esta Verdade pertence-lhe em nome do Seu direito divino e também em nome da Sua Obra Redentora. Se esta Verdade lhe pertence e se foi dada ao mundo através dele num sentido muito específico e com um propósito muito específico, estragá-la ou diminuí-la é uma injustiça. Isso seria sacrificar o direito de Cristo.

63. Mas nestas condições só há lugar para a Verdade. O que dizer então da bem conhecida distinção entre tese e hipótese?

De facto, só há lugar para a Verdade e o Bem. Quanto à distinção entre tese e hipótese, é necessário compreendê-la bem, pois de facto, o recurso a esta distinção tem sido a causa da perda de muitas almas.

64. Mas será que a Igreja não aprovou tal distinção?

De modo algum. É uma subtileza inventada por certos teólogos, que a utilizam para formar uma consciência ou para sair do caminho.

65. poderia explicar esta distinção e como é utilizada?

Por tese entendemos a situação em que a Verdade e o Bem gozam de todos os seus direitos. Assim, no estado de tese, a Santíssima Trindade, Jesus Cristo e a Igreja têm no país e entre as nações o lugar que é seu por direito. Neste caso, vive-se praticamente sob o domínio de Jesus Cristo e da sua Igreja. Ao contrário desta situação na lei, encontramo-nos noutra situação de fato. De fato, Jesus Cristo não exerce o seu domínio sobre as sociedades; de fato, a Verdade e o Bem não gozam das prerrogativas que lhes são devidas. Mais: o Mundo e os Estados são corruptos. A sua corrupção é tal que é praticamente impossível pensar, neste momento, em restaurar à Verdade e ao Bem o que é para eles um direito estrito. Este é o estado de hipótese, ou seja, o estado em que nos encontramos, confrontados com o poder – poder muitas vezes organizado – dos inimigos de Jesus Cristo e da Igreja. O que fazer em tal caso? Ninguém tem o direito de trair a Verdade e o Bem, ninguém tem o direito de negar Deus e a Igreja, mas nas atuais circunstâncias nada pode ser feito para melhorar esta situação. É de notar, contudo, que esta tolerância é uma mera tolerância e não uma aprovação. Nesse caso, todos devem reter na sua alma a vontade firme de dar à Verdade e ao Bem os direitos a que têm direito. E além disso, deve fazer uso da liberdade concedida a todos, para fazer o bem e especialmente para difundir os princípios da Verdade em todas as coisas, e assim, insensivelmente, voltar de novo ao estado de tese.

66. Não disse que, ao recorrer a esta distinção, se fez um grande mal?

Sim, para muitos católicos aceitou-o sem distinção como um meio de se libertarem dos seus deveres apostólicos. É simplesmente declarado: "estamos num estado de hipótese", e nada é feito para voltar ao estado de tese. Este é um dos primeiros efeitos desastrosos desta distinção. E outra decorre da anterior: esta distinção, ao acalmar e descansar as consciências dos militantes, cria uma atmosfera de inação e por vezes de desânimo do lado social. A tal ponto que as pessoas habituam-se a respirar uma tal atmosfera que já não se apercebem do veneno que ela traz consigo e o absorvem inconscientemente. Escusado será dizer que as palavras de Nosso Senhor, "Sim, sim; não, não", devem ser novamente postas em prática. Estas palavras do Mestre Divino só podem ser realizadas numa adesão franca, leal e sincera aos princípios da Verdade que devem orientar a Ordem Social para Deus. O que já foi dito deve ser dito novamente. Se a distinção entre tese e hipótese diminui na prática a ação e missão educativa da Igreja entre as nações, ela falha parcialmente na sua missão. Não só as almas não são santificadas, como ficam entorpecidas e acabam por ficar na indiferença prática.

67. Permitam-me que apresente uma dificuldade. Quando estamos no estado de hipótese, tolera-se a existência de erro; e quando estamos no estado de tese, não se tolera a existência de erro. Nesse caso, estamos sujeitos a ver surgir um estado de tirania em todo o lado, sob a proteção do Supremo Domínio de Deus e da Realeza de Cristo.

Esta é a dificuldade que os incrédulos nos opõem. Parece que nos dizem: “quando são os senhores, são de uma exigência exorbitante, e podemos esperar de vós o mais inesperado. Quando não são os senhores da situação, reclamam a liberdade que negam aos outros”. Para julgar esta questão, é necessário que nos coloquemos à frente da verdadeira realidade. Estas realidades são: que o homem está neste mundo para salvar a sua alma, que é confrontado com a temível alternativa de ser salvo ou condenado eternamente. Não há meio-termo. E sabemos que estas são as exigências divinas. Para ser salvo, o homem deve morrer em estado de graça, para que não possa haver maior crueldade para com o homem do que proporcionar-lhe os meios de estar perdido. E não lhe pode ser dada maior e mais verdadeira caridade do que contribuir para obter para ele a sua Eterna Beatitude. Agora, as modernas Constituições, que permitem e consagram todas as perversões do espírito e do coração, proporcionam às almas todas as facilidades para a sua condenação. Dito isto, eis, em duas palavras, a resposta à dificuldade que é proposta: I – Inquestionavelmente, se fôssemos senhores da situação, faríamos todo o possível para que uma alma não fosse condenada; II – Lembremo-nos que existe uma diferença entre a Ordem Social e a Ordem Individual. Na ordem estritamente individual, não podemos fazer violência às consciências. Mas se, apesar de nós e contra a nossa vontade, alguém quiser condenar-se a si próprio, a questão é sua. Consequentemente, se alguém obstinadamente recusar a obediência a Cristo e à Igreja, deixaremos isso à sua própria consciência, desde que não cause escândalo. Dizemos, desde que não cause escândalo, porque é evidente que não podemos tolerar que a descrença de um indivíduo prejudique o bem geral de uma Sociedade ou País, ou mesmo o bem particular de uma alma. Portanto: III – Proibimos a propagação de qualquer erro ou maldade. Este é o sentido no qual suprimiríamos dos Códigos e Constituições dos Países as grandes liberdades modernas.

 

IX – O PECADO DO LIBERALISMO: PECADO DA EUROPA E DO MUNDO

68. Será o liberalismo um pecado?

É claro que sim. As boas intenções, a falta de conhecimento e o ambiente atual devem ser tidos em conta, o que diminui a responsabilidade; mas se considerarmos as coisas em si, o liberalismo é um pecado da inteligência.

69. Como se deve entender este pecado da inteligência?

Lembre-se do que foi dito em resposta à pergunta 18. O pecado que aí foi apontado é um pecado da inteligência. Este pecado, que é o Liberalismo, significa uma injustiça suprema e um prejuízo para Deus, pois na Declaração dos Direitos do Homem e nas liberdades que dela derivam, o homem é substituído por Deus.

Foi assim que as coisas aconteceram. De acordo com princípios e leis modernas, só o homem pode e deve estar onde Deus – porque ele é Deus – deve estar. Sendo o Criador e Dono absoluto, pela própria natureza das coisas, Ele é Deus da consciência individual, bem como da Sociedade, das Nações e do Universo. Mas suprimindo-O, o espírito humano coloca o homem e o pensamento humano no Seu lugar, como substituto de Deus, ou seja, deificado, como o mestre absoluto e árbitro do seu destino pessoal e social, nacional, internacional e mundial.

O homem é e declara-se a si mesmo o mestre. E se, na sua sabedoria, ele achar conveniente, submeter-se-á àqueles que no seu pensamento acredita serem "Deus", "Cristo", "a Igreja", sem que isso o impeça, porque ele é o mestre da sua própria consciência. Mas não é o mesmo em relação à introdução deste Deus e da Sua Igreja na Sociedade e nos Estados. Porque o homem substitui Deus, qualquer pessoa que queira restaurar Deus ao Seu legítimo lugar torna-se o inimigo do homem, que é o mestre do Universo e da Ordem Social.

Pela força, Deus é um usurpador. A Igreja é uma usurpadora. Todos os esforços da Igreja para cumprir a sua missão na Ordem Social são inevitavelmente uma intrusão clerical na Sociedade. A secularização geral e universal é necessária. O indivíduo é secularizado. Nele apenas uma grandeza humana, feita de princípios naturais de humanidade, justiça, bondade etc., deve ser reconhecida. Todas as instituições sociais devem ser laicizadas: os Estados, as constituições dos povos e a sua legislação, os governos, os parlamentos, os senados, todos os organismos oficiais, todas as instituições públicas, e mesmo as instituições privadas, assim que entram em contato com um organismo oficial, devem ser marcados apenas com um carácter humano.

A impressão sobrenatural é obliterada em todos os planos. Não deve haver uma ordem sobrenatural. Se a Igreja sobreviver devido à vontade dos indivíduos, o máximo que pode ser é uma sociedade privada sem qualquer direito público. Do ponto de vista social, só pode gozar dos direitos e privilégios que o homem lhe concede. Um governo composto por indivíduos católicos pode ser-lhe favorável, mas este favor virá necessariamente do homem, que, de direito, o concederá ou o reterá como lhe apetecer.

Em suma: é a suprema injustiça, pois o Estado Supremo é privado do seu direito absoluto. É o dano supremo, porque depois de o ter privado injustamente, é declarado como usurpador. 

70. Como é que as liberdades modernas chegam a esta conclusão fatal?

Já foi dito que para o homem moderno a única verdade que existe é o pensamento do homem. Devido a isto, cada Sociedade e cada Estado fundado nos princípios de 1789 é colocado na impossibilidade de reconhecer ou professar qualquer verdade; de reconhecer ou professar qualquer culto. Esta é a consequência lógica das grandes liberdades modernas.  Vamos explicar. Tomemos como exemplo a liberdade de ensino. Um tal professor ensina o seguinte: "Deus existe"; "Jesus Cristo é Deus"; "A Igreja Católica é uma obra divina". De acordo com estes princípios, o Estado deve permitir isto. Tal outro professor ensina as doutrinas contraditórias com as primeiras: "Deus não existe"; "Jesus Cristo não é Deus"; "A Igreja é uma grande conspiração". De acordo com os mesmos princípios, o Estado também deve permitir isto. Ou seja, o Estado não aprova nem apoia nenhum destes ensinamentos, nem reconhece nenhum deles como verdade. Deve protegê-los a todos com o mesmo título constitucional e no mesmo grau.

A única verdade para ele é que todos têm a liberdade da educação. Do ponto de vista estritamente lógico, o Estado Moderno é necessariamente ateu e de pensamento livre, porque as constituições dos Estados são de pensamento livre, ateu ou mais precisamente "sem verdade", ou seja, na prática, contra a verdade, contra Deus.

Quando o Estado moderno é confrontado com uma verdade realmente existente, por exemplo a primeira verdade: Deus, qual deve ser a sua atitude perante a dor de renunciar aos seus princípios? É necessário que se ignore que na proposta "Deus existe" a verdade está para ser encontrada. É necessário que ele não adira a tal proposta. Pois se ele aderisse, proclamaria o seu conhecimento da verdade e a sua vontade de concordar. E nem um nem o outro lhe é permitido. A sua atitude deve ser a mesma para cada um destes ensinamentos: "Deus existe" e "Deus não existe". Socialmente, o Estado Moderno deve ignorar se a verdade existe. Deve opor-se a qualquer ensino que o penetre com o título da verdade. Esta introdução da verdade seria uma superioridade sobre o Estado e a constituição dos países. E isso não pode ser.

Os Estados e as Constituições dos Povos devem opor-se à ação da Verdade para continuarem a ser o que são, ou seja, ateísta, oposta a qualquer princípio que os priva do domínio e controlo do seu próprio destino, e na prática contra Deus, contra Cristo e contra a Igreja.

Pelo contrário, cada pensamento, como o pensamento do homem, tem o direito de ser ensinado. Tem, portanto, o sufrágio do Estado. A razão é convincente. O Estado reconhece apenas o homem. O pensamento humano e cada ideia é um produto do espírito humano. Ao ensiná-los, nada de superior ao homem é introduzido na Sociedade.

Que "Deus existe", "A Igreja Católica é divina", são pensamentos que podem ser ensinados na lei, não porque expressam verdade objetiva, mas porque alguns sujeitos do Estado acreditam que estes pensamentos são bons e de utilidade privada ou pública. Da mesma forma pode ser ensinado que "Deus não existe" e que "A Igreja Católica é um embuste".

O mesmo se aplicará logicamente ao ensino do roubo, assassinato, imoralidade e assassinato. A legislação que contradiz os princípios do Estado condena e executa o infeliz que chega aos feitos, mas não proíbe o ensino que conduz a esses caminhos. Assim, o Estado ensina, através dos seus sujeitos, o pensamento dos seus sujeitos. Isto é como deve ser, uma vez que só conhece o homem e o que dele provém.

É desta forma que os Princípios Modernos e o Direito Moderno conduzem fatalmente a uma injustiça suprema e a um prejuízo para Deus.

Estes são os termos em que o Papa Leão XIII se expressou na sua carta ao Arcebispo de Bogotá: "Quando se trata de como se comportar em política, os católicos são solicitados por interesses opostos e tornam-se exasperados em discórdias violentas que resultam, na maioria das vezes, de interpretações divergentes da doutrina católica do liberalismo[...] O Sumo Pontífice ensina que o princípio e o fundamento do liberalismo é a rejeição da lei divina: o que os partidários do naturalismo ou racionalismo querem na filosofia, os partidários do liberalismo querem na ordem moral e civil, pois introduzem os princípios do naturalismo nos costumes e na prática da vida. E o ponto de partida de todo o racionalismo é a soberania da razão humana, que, rejeitando a submissão devido à razão divina e eterna, e afirmando depender apenas de si própria, se considera, e apenas a si própria, como o princípio supremo, a fonte e o juiz da verdade. Esta é a reivindicação daquilo a que chamámos os defensores do liberalismo. Segundo eles, não há poder divino a ser obedecido na prática da vida, mas cada homem é a sua própria lei. Daí vem esta moralidade dita independente, que, sob o pretexto da liberdade, se afasta da observância dos preceitos divinos, e dá ao homem uma licença ilimitada. Este é o primeiro e mais pernicioso dos graus de liberalismo, enquanto, por um lado, rejeita ou, melhor ainda, destrói totalmente toda a autoridade e lei divina, seja ela natural ou sobrenatural, por outro lado afirma que a constituição da Sociedade depende da vontade de cada indivíduo, e que o poder supremo vem da multidão como da sua primeira fonte".

71. Nesta forma de agir do liberalismo, não haverá uma injustiça para com o homem?

Para ser completo na resposta, seria necessário explicar o dogma da Redenção, mostrar uma vez mais os direitos de Jesus Cristo sobre toda a inteligência e toda a vontade, e mostrar como o liberalismo, usurpando os direitos divinos, peca contra Jesus Cristo. Mas esta injustiça existe e manifesta-se de outra forma. Jesus Cristo, ao redimir o homem pela Sua Redenção, adquiriu direitos incontestáveis sobre o homem, que se tornam em Cristo os direitos do homem. Expliquemos: imaginemos que uma coisa é necessária para a nossa salvação; por exemplo, para a nossa santificação é necessário que Jesus Cristo seja teórica e praticamente Rei do Universo e das almas. Tenho, portanto, o direito, desde que Jesus Cristo o adquiriu para mim, de que a Sociedade seja colocada sob a sua direção. Tenho o direito, em Jesus Cristo e através de Jesus Cristo, de que a Sociedade seja cristã e católica, de que os Estados sejam católicos. Como Louis Veuillot disse, com fama: "O povo tem o direito de Jesus Cristo". Este direito é tanto mais digno de respeito quanto não pertence ao homem, mas apenas na medida em que o próprio Jesus Cristo o concedeu ao homem.

72. Que atitude criam na prática os princípios liberais na mente das pessoas?

O resultado direto do liberalismo é a anarquia ou tirania. É evidente que a anarquia vem do liberalismo, como consequência do seu princípio. Repitamo-lo pela enésima vez: de acordo com as constituições modernas, todos têm o direito de pensar como quiserem, e de viver como pensam. E se o pensamento serve como uma linha de conduta para todos, sem a restrição da verdade objetiva, é evidente que estamos a caminhar para o maior desenfreado excesso de espírito e de ação. Por outro lado, a consequência fatal do liberalismo é a tirania. Mais de uma vez já demonstramos que para refrear todo o descontrole de espírito, coração e paixão, a vontade geral é invocada, e tornou-se necessário fazer leis, de modo que só a lei cria o direito. Mas se a lei representa a vontade geral do povo, e se este povo é conduzido por uma vontade maligna, ateia, impiedosa e imoral, o que podemos esperar senão tirania? É governado em nome do povo; e em nome do povo serão impostas as injustiças mais alarmantes e muitas vezes as mais caprichosas. A anarquia e o sovietismo descendem dela por uma linha direta. O liberalismo coloca um fim a toda a ordem na base, em qualquer Sociedade que seja.

73. Os Princípios Modernos têm alguma influência sobre a salvação das almas?

O Papa Leão XIII fala nestas palavras de uma das consequências do liberalismo: “O número de almas que são condenadas devido às condições que os princípios do direito moderno estabelecem entre o povo é incalculável”.

Tomemos, por exemplo, o mal causado apenas pela liberdade de imprensa. Quantas almas são corrompidas pela leitura de maus jornais, as publicações imorais e ímpias que abundam em todos os países. Quantas almas são condenadas para sempre devido à proteção concedida pela lei a todas as publicações literárias, científicas etc. Quantas almas que já foram condenadas neste momento, não teriam sido condenadas se esta maldita liberdade de imprensa não tivesse existido. O mesmo se aplica à liberdade de educação. E nada mais é do que esta liberdade absoluta, que é benevolentemente concedida àqueles que inventam perturbações, que lhes permite ensinar as suas doutrinas e corromper os espíritos.

74. Na teoria que acabou de explicar, não é verdade que a distinção entre tese e hipótese é novamente condenada?

Exatamente. A fim de realizar o mal causado pelo chamado liberalismo "católico", é necessário colocar-se no ponto de vista que acaba de ser explicado. O tranquilizar e adormecer das consciências não impedem a existência do mal, mas impedem que o bem se propague.

 

X – OS CASTIGOS QUE DEUS MANDA AOS PAÍSES E NAÇÕES QUE ABANDONAM AO SENHOR

75. Deus nesta vida castiga as nações culpadas?

É bastante difícil responder a esta pergunta de forma clara e completa. Entre os católicos mergulhados no liberalismo, a teoria do castigo infligido às nações culpadas não é aceite.

76. Em que base os católicos afirmam que a expiação tem lugar neste mundo para as Sociedades?

A teoria em que nos apoiamos é a seguinte: os indivíduos que cometeram falhas podem expiar por elas neste mundo. Se não expiarem por eles aqui, expiarão por eles na eternidade. Os indivíduos serão punidos na medida dos pecados que cometeram, quer no Purgatório, fazendo reparações por eles, quer no inferno, sofrendo tormentos eternos. As sociedades enquanto tais não entram na eternidade. Se se tornaram culpados, só podem ser punidos neste mundo. E uma vez que o seu pecado é um pecado contra a justiça, exige uma reparação. Por esta razão, os países que abandonaram o Senhor devem expiar e reparar aqui, neste mundo, pelo que a Sabedoria de Deus deve infligir aos Povos os castigos de acordo com os Seus eternos desígnios.

77. Quais são os castigos de acordo com os desígnios eternos?

Países e povos, como qualquer Sociedade, devem a Deus, em estrita justiça, se são culpados, reparação e expiação. A medida desta expiação, especialmente quando se trata de ter o seu cumprimento através de castigos divinos, está nas mãos da sabedoria divina e de decretos. Deus não é obrigado a infligir um castigo social porque este castigo tem sido merecido. Muito frequentemente, pode-se mesmo dizer sempre, Deus comporta-se para com as pessoas segundo os Seus desígnios de misericórdia e amor, guiado pelo Seu desejo de salvar almas. Num castigo social, preparado, querido e posto em prática por Ele, encontramos sempre a vontade salvífica de Deus. Através do castigo social, Deus quer mover almas e devolvê-las a Si próprio. Por esta razão, não é fácil conhecer os planos eternos de Deus no castigo com que Ele fere os países. O que devemos considerar é que Deus pode punir, que Ele pune, e que para evitar estas punições é necessário que toda a ordem social se submeta a Ele.

78. O que foi dito parece correto. Mas poderão estes ensinamentos ser confirmados por palavras e doutrinas enunciadas pelas Autoridades que governam a Igreja?

Os Papas e os Bispos falaram muito clara e inequivocamente pronunciaram os seus pensamentos. O Papa Pio XI escreveu na sua primeira encíclica (Ubi Arcano):

"Muito antes de a guerra incendiar a Europa, a principal causa de tantos males já estava em ação com força crescente, tanto por culpa de indivíduos como das nações; uma causa que o próprio horror da guerra teria eliminado se todos tivessem compreendido o significado destes terríveis acontecimentos [...] Porque se separaram miseravelmente de Deus e de Jesus Cristo, os homens caíram da sua felicidade passada neste abismo de males; pela mesma razão, todos os programas que conspiraram para reparar as perdas e para salvar o que resta no meio de tanta ruína, caíram numa esterilidade quase completa. Desde que Jesus Cristo foi excluído da legislação e dos assuntos públicos, as leis perderam a garantia de sanções reais e eficazes".   

No seu discurso consistório de 24 de dezembro de 1917, o Papa Bento XV declarou solenemente:

"Tal como o desarranjo dos sentidos mergulhou em tempos as cidades mais célebres num mar de fogo, também nos nossos dias a impiedade da vida pública, o ateísmo que se tornou o sistema da chamada civilização, mergulhou o mundo num mar de sangue".

O mesmo Papa no mesmo discurso afirma que "as atuais calamidades não terminarão até que o gênero humano se volte para Deus".

79. Com que castigos é que Deus aflige as nações culpadas?

Todas as calamidades que podem levar as nações à reflexão servem para o cumprimento dos planos de Deus. Guerra, doenças, catástrofes de todo o tipo e, sobretudo, calamidades de ordem intelectual e moral podem afetá-los e levá-los ao arrependimento.

Nosso Senhor Jesus Cristo fala-nos de todos estes males. Ele fala especialmente do grande mal da cegueira. Dirigindo-se aos judeus: Este povo não compreenderá, disse ele, porque não podem compreender, e não podem compreender porque não querem compreender.

Estas palavras devem ser entendidas no sentido de um castigo social. Não há nada pior do que sermos nós próprios a causa do nosso próprio mal, porque não queremos compreender. Os judeus – e Nosso Senhor reprovou-os – não compreendem que Ele é o Messias, o Filho de Deus, quando para a nação judaica o único meio de salvação é o reconhecimento e a profissão da Fé na Divindade de Jesus Cristo. No entanto, o povo judeu teimosamente recusa-se a compreender que esta é a realidade, e Deus fala-lhes desta forma: “Ó povo que é o meu povo, só há um meio de salvação para vós: Jesus Cristo. Aceite-o e será salvo”. E o povo responde: “não quero compreender que esta é a realidade”. E Deus responde: “Como não queres compreender, Eu aceito a tua vontade: não compreenderás. Este é o castigo que vos dou”. O mesmo se passa com a Sociedade Católica dos nossos dias. A fim de salvar a ordem social e o povo, devem começar por compreender que só Jesus Cristo é a sua salvação. Mas eles não querem compreender isto. Deus está satisfeito com a sua vontade teimosa. Eles não compreendem, não veem, nem podem ver em Jesus Cristo somente a sua Salvação: tal é o seu castigo. A este ponto de vista geral são acrescentados muitos outros, de uma ordem mais especial. Não compreendem que é necessário suprimir na Ordem Social os princípios do Direito Moderno, as grandes liberdades modernas. Não se compreende que seja necessário negar a liberdade de opinião a todos. Não se compreende que seja necessário, a todo o custo, opor-se à invasão de princípios perversos e favorecer apenas a verdade católica. Há muitas coisas que não são compreendidas. Tudo isto denota o carácter e a marca de um castigo que aflige os Países e os leva à sua desgraça. O Papa Leão XIII escreveu em 1881: "Como consequência fatal da guerra travada contra a Igreja, a sociedade civil está agora exposta aos mais graves perigos, uma vez que os fundamentos da ordem pública foram abalados, e os povos e os seus líderes veem perante eles apenas ameaças e calamidades". E o mesmo Papa também escreveu: "De todos os ataques cometidos contra a religião católica vieram e continuarão a vir sobre as nações os piores e mais numerosos males".

 

XI – REMÉDIOS AOS MALES ATUAIS

81. Quais são os remédios para os grandes males que assolam o mundo inteiro e cada país em particular?

A esta pergunta, o Papa Leão XIII dá a resposta. Eis as palavras em que se exprime:

"Este é o segredo do problema: quando um ser orgânico perece e se torna corrupto, é porque deixou de estar sob a ação das causas que lhe tinham dado a sua forma e constituição. Para o restituir à saúde e ao vigor, não é de duvidar que tenha de ser novamente sujeito à ação vivificadora destas mesmas causas. Agora, porém, a atual Sociedade, na sua louca tentativa de estar fora do alcance de Deus, rejeitou a ordem sobrenatural e a revelação divina; retirou-se assim da eficácia salutar do cristianismo, que é manifestamente a garantia mais sólida da ordem, o bem mais forte da fraternidade, e a fonte inesgotável de virtudes privadas e públicas [...] Desta negligência surgiu o tumulto que encontramos hoje. Esta sociedade mal orientada deve portanto regressar ao seio do cristianismo se estiver interessada no seu bem-estar, no seu descanso e na sua salvação".

Noutro lugar o mesmo Papa diz:

"Voltar aos princípios cristãos e conformar-se com eles toda a vida, costumes e instituições do povo é uma necessidade que se torna cada vez mais evidente a cada dia que passa. Do desprezo em que estas regras foram relegadas, surgiram males tão grandes, que só um homem tolo poderia considerar, sem ansiedade dolorosa, as provações do presente, ou não prever sem medo as perspectivas do futuro". 

82. Existe algum meio eficaz para aplicar estes remédios?

Quando Jesus Cristo veio à terra e Deus lhe confiou a sua missão, o objetivo era a salvação dos povos de todas as épocas. O Divino Mestre disse: "Estarei convosco até a consumação dos séculos". O que era o mundo na altura do nascimento de Jesus Cristo? Todas as nações e Povos, exceto o povo judeu, foram vítimas do erro, impiedade e imoralidade do paganismo. Numa palavra: o gênero humano foi vítima do pecado e perdeu-se por causa dele. O homem, que devia a Deus adoração, amor, reparação, reconhecimento, ação de graças e petição, já não podia esperar da justiça divina, mas o golpe da justiça. O que faz Jesus Cristo? Ele quer tornar o homem capaz de dar os seus deveres a Deus de uma forma digna. Esta capacidade e este poder, único entre as criaturas, Jesus-Homem possui em si mesmo. Ele toma para si a totalidade do pecado do gênero humano e faz a reparação por ele; e dá ao homem a capacidade de adorar dignamente, de fazer a reparação dignamente, de dar graças dignamente e de pedir dignamente. Deus castiga Jesus. A justiça é satisfeita e o mundo é salvo. Os povos prostram-se perante o Crucifixo. Com Constantino, a Cruz ascende ao Trono, e Jesus Cristo, Rei dos Povos, preside aos destinos das Nações. Pela Sua Imolação e Sacrifício, Jesus Cristo salvou o mundo. Quem pode então salvar o mundo dos males atuais? Apenas Jesus Cristo, pela aplicação dos méritos da Sua Paixão e Morte às nações, bem como aos indivíduos.

83. Como é que Deus fará com que isto seja eficaz?

Eis o lugar para compreender e aplicar as palavras do Apóstolo Paulo: “Adimpleo ea quac desunt Passionum Christi in carne mea, pro corpore suo quod est Ecciesia” – "Cumpro na minha carne o que resta a padecer a Jesus Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja". As palavras do grande Apóstolo são significativas.

84. Sim, estas palavras são significativas, mas ainda é necessário compreender o seu significado. Pode-se dizer que falta algo na Paixão de Cristo?

Isso seria um erro grave. Jesus Cristo plenamente satisfeito por todos os homens do passado, presente e futuro. Ele não se contentou em tomar sobre si os pecados individuais dos homens, nem em tomar sobre si o grande pecado social que consiste na injustiça e injustiça feita a Deus, que já explicamos. Ele tomou sobre si o pecado da humanidade na totalidade do seu pecado. Segundo o ensinamento do Apóstolo Paulo, Deus constituiu-o pecado: "Tuni qui non noverat peccatum, pro nobis peccatum fécit". Deus na realidade constituiu-O pecado no lugar da humanidade culpada. Castigou-O porque viu nele o pecado que Ele próprio assumiu. Pela Sua imolação e sacrifício, Jesus Cristo realizou a obra da redenção, mas Ele quer unir à Sua ação a ação das almas que querem redimir o mundo com Ele. Isto explica as palavras do grande Apóstolo.

85. Ele parece significar que certas almas estão mais estreitamente unidas à obra redentora de Cristo.

Este mistério é revelado pelo Apóstolo Paulo. Ele diz-nos que realiza para a Igreja uma obra que está ligada à Paixão de Jesus Cristo. Uma vez que a Paixão de Jesus Cristo converteu o universo, se Jesus Cristo me pede para fazer meus os Seus sofrimentos, ou, além disso, me inspira a tomar sobre mim, em parte, o pecado da humanidade que Ele tomou sobre Si na sua totalidade, não posso recusar este fardo, mas contribuir por ele para a salvação das nações.

86. Nestas condições, considera a intervenção da criatura, ou seja, da alma fiel, como necessária à obra de Cristo.

Não é necessário exagerar. Observamos que existe uma doutrina pregada pelo Apóstolo sob a inspiração do Espírito Santo. Esta doutrina afirma: por amor a Deus e à humanidade, Jesus Cristo tornou-se pecado no lugar da humanidade. Em vez de castigar a humanidade, Deus castigou Jesus Cristo. O Apóstolo Paulo intervém; declara que Jesus Cristo quer ter parceiros na Sua obra redentora, ou seja, almas que, por amor de Deus, Jesus Cristo e dos homens, se submetem como Jesus Cristo e com Ele aos sofrimentos da Sua Paixão. A Paixão de Jesus Cristo passa de alguma forma sobre eles, para ser aplicada ao mundo culpado.

87. Será que esta imolação com Cristo implica uma grande intensidade de vida espiritual?

É evidente que, para reparar uma falta cometida pelo homem culpado, é necessário apresentar-se perante Deus como uma alma unida a Ele pela graça e amor divinos.

Como e com Jesus Cristo que sofre e morre, ele deve estar estreitamente unido com as três Pessoas Divinas. Por esta razão, as almas que desejam praticar a corredenção devem, em certa medida, aplicar-se à prática da vida espiritual e sobrenatural. Devem viver uma vida de união divina e imolação.

88. Desta forma, é necessário algo mais do que ação para atingir este fim?

Claro que sim. A ação é inteiramente necessária, mas o trabalho da alma unida a Deus e imolada em Jesus Cristo é também necessário. Iremos falar sobre isso.

 

XII – A AÇÃO

89. É necessária uma ação para a restauração da ordem social?

É claro que sim. Devemos aplicar aqui as palavras de Jesus Cristo aos seus Apóstolos: "Ide por todo o mundo, ensinai todas as nações". Jesus Cristo não disse: "Permanecei no vosso lugar, fazei penitência". Ele disse: "Vai, ensina". Trabalhemos, pois, de boca em boca e por todos os meios que possam penetrar as almas com a verdade.

90. Para além da palavra, existem outros meios de inculcar a verdade?

É claro que há. Além disso, vemos que os inimigos de Cristo recorrem a outros meios. Tudo lhes é útil, desde que atinjam o seu fim. A fim de se apropriarem da classe trabalhadora, recorreram a obras adaptadas: cooperativas, sindicatos, criação de conselhos de empresa, células comunistas e outras obras de todo o tipo, jornais, palestras, cursos, cartazes, propaganda, etc., etc., etc.

91. Quem deve mobilizar estes meios de ação? Ou, por outras palavras, quem é obrigado a recorrer a estes meios de ação?

Obviamente, antes de tudo, as autoridades eclesiásticas. Desde o Papa Pio VI, os Papas têm procurado inculcar o clero e o povo apenas com os princípios salutares à sociedade, mas não têm sido ouvidos. Entre os bispos, são bastante raros aqueles que aplicaram nas suas dioceses os princípios que, pela sua natureza, se dirigem a todo o mundo. Isto explica por que razão, ao manterem-se fiéis às necessidades locais, não contribuíram tanto quanto se poderia esperar para desenvolver e aplicar as diretivas dadas para todo o mundo pelos Sumo Pontífices, e por que razão, a fortiori, o simples clero não foi capaz de se dedicar a uma ação viva e eficaz para estabelecer Cristo em cada sociedade e em cada país. Claramente, é o Papa, os Bispos e o Clero que têm a missão de instruir e ensinar.

92. Será que esta missão não corresponde também aos leigos?

É evidente que os leigos devem iluminar o seu próximo e fazer-lhe bem por uma necessidade urgente de caridade, tanto na ordem social como na ordem individual. O Papa Leão XIII colocou nestes termos:

“Até mesmo essa cooperação dos particulares pareceu aos Padres do Concílio Vaticano I tão oportuna e frutuosa, que não hesitaram em reclamá-la nos termos seguintes: ‘A todos os fiéis cristãos, principalmente àqueles que tem superioridade e obrigação de ensino, suplicamos pelas entranhas de Jesus Cristo, e em virtude da autoridade deste mesmo Senhor e Salvador nosso lhes ordenamos, que apliquem todo o seu zelo e trabalho em desviar esses erros e eliminá-los da luta da Igreja, e difundir a luz puríssima da nossa fé’. Por fim lembrem-se todos que podem e devem disseminar a fé católica com a autoridade do exemplo e pregá-la com uma profissão constante. Desse modo nos deveres que nos ligam com Deus e com a Igreja está em primeiro lugar o zelo que cada qual deve trabalhar segundo as suas forças em propagar a doutrina cristã e refutar os erros” (Sapientiae Christianae).

O Papa Pio XI também se dirige à cooperação dos leigos. Na sua encíclica Ubi Arcano, o Papa, depois de ter invocado todas as obras, escreve aos bispos:

"Lembrai-vos ainda, em atenção aos fiéis, que é trabalhando nas obras de apostolado privado e público, sob a direção de vós próprios e do vosso clero, que o conhecimento de Jesus Cristo pode crescer e o seu amor reinar, que merecereis o magnífico título de raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo redimido; é unindo-vos estreitamente a nós e a Cristo para estender e fortalecer pelo vosso zelo diligente e ativo o reino de Cristo, que trabalhareis mais eficazmente para a restauração da paz geral entre os homens".

Os Papas não podem expor a doutrina de forma mais clara, nem afirmar a sua vontade de forma mais enérgica.

Para um trabalho que lhes diz respeito tanto como o da restauração da Ordem Social em Cristo, é necessário que os fiéis se tornem o braço direito dos Bispos. Em tempos anteriores, para cumprir a sua missão, a Igreja era assistida pelo braço secular, ou seja, pela autoridade civil do Estado. Agora que isto foi abolido, é necessário que os leigos católicos ajudem a Igreja, a sua Mãe, e especialmente que contribuam para restaurar a Ela, a Jesus Cristo e a Deus, o lugar que lhes pertence no mundo.

93. Qual deve ser o objetivo imediato da ação?

O fim imediato da ação é a reforma dos espíritos. De acordo com a mentalidade atual, não há nem pode haver verdade nem erro. Será necessário introduzir as noções fundamentais da existência real da verdade, dos seus direitos, bem como da injustiça do erro, na mente das pessoas tão infectadas.

94. Neste caso é necessário lutar até à morte contra as modernas teorias da liberdade e da legislação, teorias que até alguns teólogos admitem.

De fato, como já observamos, alguns católicos, alguns por cortesia, outros por ignorância, caminham à luz dos princípios modernos. A fim de deixar intacta a fé católica, estabelecem que praticamente todas as opiniões têm direito a existir. Este é o seu modo de pedir desculpa; parecem dizer aos incrédulos: "Respeitamos a vossa fé e vós respeitais a nossa".  Para além das condenações da própria razão, que já expusemos, estes católicos esquecem as condenações de autoridade, que os Sumo Pontífices deram contra os princípios modernos.  Na sua carta ao Bispo de Tróia, o Papa Pio VII condena formalmente a introdução das liberdades modernas na Constituição francesa. Ele expressa a sua tristeza nestas palavras cheias de angústia:

"Uma nova causa de dor, que mais uma vez abaixa o nosso coração aflito, e que, como confessamos, nos causa tormento externo, fardo e angústia, é o vigésimo segundo artigo da Constituição. Não só a liberdade de culto e de consciência é permitida – para usar os mesmos termos do referido artigo –, mas também o apoio e a proteção são prometidos a esta liberdade, e ainda, aos ministros dos chamados "cultos". Não requer muitos discursos, quando se dirige a um bispo como vós, para o fazer reconhecer claramente o dano moral dado à religião católica em França por este artigo. Pelo próprio fato de estabelecer a liberdade de todos os cultos sem distinção, a verdade e o erro são confundidos, e as seitas heréticas, e mesmo a perfídia judaica, são colocadas em pé de igualdade com a Santa e imaculada Noiva de Cristo, a Igreja, fora da qual não há salvação. Além disso, ao prometer favor e apoio às seitas hereges e aos seus ministros, não só as suas pessoas, mas também os seus erros são tolerados e favorecidos. Implicitamente, esta é a heresia desastrosa e para sempre deplorável que Santo Agostinho menciona nestes termos: ‘Afirmam que todos os hereges estão no caminho certo e falam a verdade. Absurdidade tão monstruosa que não posso acreditar que uma seita a professa realmente’. A nossa admiração não foi menor quando lemos o vigésimo terceiro artigo da Constituição que estabelece e permite a liberdade de imprensa, uma liberdade que ameaça a fé e a moral com os maiores perigos e certa ruína. Se alguém duvidasse disto, bastaria a experiência de tempos passados sozinho para o ensinar. É um fato perfeitamente estabelecido: esta liberdade de imprensa tem sido o principal instrumento que, em primeiro lugar, depravou os costumes do povo, depois corrompeu e trouxe a sua fé ao chão e, finalmente, despertou expedições, distúrbios e revoltas. Estes resultados infelizes ainda seriam de temer, dada a grande malícia dos homens, se, Deus nos livre, todos tivessem a liberdade de imprimir o que quiserem".

O Papa Gregório XVI escreveu:

"Dessa fonte lodosa do indiferentismo promana aquela sentença absurda e errônea, digo melhor disparate, que afirma e defende a liberdade de consciência. Este erro corrupto abre alas, escudado na imoderada liberdade de opiniões que, para confusão das coisas sagradas e civis, se estendo por toda parte, chegando à imprudência de alguém se asseverar que dela resulta grande proveito para a causa da religião. ‘Que morte pior há para a alma, do que a liberdade do erro!’ dizia Santo Agostinho. Certamente, roto o freio que mantém os homens nos caminhos da verdade, e inclinando-se precipitadamente ao mal pela natureza corrompida, consideramos já escancarado aquele abismo do qual, segundo foi dado ver a São João, subia fumaça que entenebrecia o sol e arrojava gafanhotos que devastavam a terra. Daqui provém a efervescência de ânimo, a corrupção da juventude, o desprezo das coisas sagradas e profanas no meio do povo; em uma palavra, a maior e mais poderosa peste da república, porque, segundo a experiência que remonta aos tempos primitivos, as cidades que mais floresceram por sua opulência, extensão e poderio sucumbiram, somente pelo mal da desbragada liberdade de opiniões, liberdade de ensino e ânsia de inovações. Devemos tratar também neste lugar da liberdade de imprensa, nunca condenada suficientemente, se por ela se entende o direito de trazer-se à baila toda espécie de escritos, liberdade que é por muitos desejada e promovida. Horroriza-Nos, Veneráveis Irmãos, o considerar que doutrinas monstruosas, digo melhor, que um sem-número de erros nos assediam, disseminando-se por todas as partes, em inumeráveis livros, folhetos e artigos que, se insignificantes pela sua extensão, não o são certamente pela malícia que encerram, e de todos eles provém a maldição que com profundo pesar vemos espalhar-se por toda a terra. Há, entretanto, oh que dor! quem leve a ousadia a tal requinte, a ponto de afirmar intrepidamente que essa aluvião de erros que se está espalhando por toda parte é compensada por um ou outro livro que, entre tantos erros, se publica para defender a causa da religião. É por toda forma ilícito e condenado por todo direito fazer um mal certo e maior, com pleno conhecimento, só porque há esperança de um pequeno bem que daí resulte. Porventura dirá alguém que se podem e devem espalhar livremente venenos ativos, vendê-los publicamente e dá-los a tomar, porque pode acontecer que, quem os use, não seja arrebatado pela morte?”

Os ensinamentos do Papa Pio IX são suficientemente bem conhecidos para não se insistir neles. Basta recordar as proposições condenadas pelo Syllabus:

“77. Na nossa época já não é útil que a Religião Católica seja tida como a única Religião do Estado, com exclusão de quaisquer outros cultos.

78. Por isso louvavelmente determinaram as leis, em alguns países católicos, que aos que para aí emigram seja lícito o exercício público de qualquer culto próprio.

79. É falso que a liberdade civil de todos os cultos e o pleno poder concedido a todos de manifestarem clara e publicamente as suas opiniões e pensamentos produza corrupção dos costumes e dos espíritos dos povos, como contribua para a propagação da peste do Indiferentismo.”

O Papa Leão XIII não é menos categórico no seu ensino:

“A liberdade, aquele elemento que aperfeiçoa o homem, deve ser aplicada ao que é verdadeiro e bom. A essência do bem e da verdade não pode ser mudada pelo homem à vontade, mas permanece sempre a mesma, pois é imutável, tal como a natureza das coisas é imutável. Se a inteligência aderir a opiniões falsas, se a vontade escolher o mal e o seguir, nenhum dos dois atinge a sua perfeição, mas ambos decaem da sua dignidade nativa e se tornam corruptos. Não é permitido, portanto, trazer à tona e expor aos olhos dos homens aquilo que é contrário à virtude e à verdade, e muito menos abrigar esta licença sob a tutela e proteção das leis. Há apenas um caminho para o céu, para o qual todos nós estamos a caminhar: o bom caminho. O Estado, portanto, afasta-se das regras e prescrições da natureza se favorecer de tal forma o licenciamento de opiniões e ações culpadas que seja permitido, com impunidade, afastar os espíritos da verdade e as almas da virtude. Excluir a Igreja, que o próprio Deus estabeleceu, da vida pública, das leis, da educação da juventude, da verdade doméstica, é um erro grave e pernicioso. Uma sociedade sem religião não pode ser controlada; e já podemos ver, talvez mais do que deveríamos, o valor da chamada moralidade civil em si mesma e nas suas consequências”.

Na sua encíclica Libertas, o próprio Papa Leão XIII condena as mesmas liberdades:

“Outros são um pouco mais moderados, mas sem serem mais consequentes consigo mesmos. Segundo estes, as leis divinas devem regular a vida e o modo de proceder dos particulares, mas não o dos Estados; é permitido, nas coisas públicas, desviar-se das ordens de Deus e legislador sem as ter em conta alguma. Donde nasce esta perniciosa consequência da separação da Igreja e do Estado. Mas o absurdo destas opiniões facilmente se compreende. É necessário a própria natureza o proclama é necessário que a sociedade dê aos cidadãos os meios e as facilidades de passarem a sua vida segundo a honestidade, isto é, segundo as leis de Deus, pois que Deus é o princípio de toda a honestidade e de toda a justiça. Repugnaria, pois, absolutamente que o Estado pudesse desinteressar-se destas mesmas leis ou ir mesmo contra elas, fosse no que fosse. Demais, aqueles que governam os povos devem certamente procurar à causa pública, pela sabedoria das suas leis, não somente as vantagens e os bens exteriores, mas também e principalmente os bens da alma. Ora, para conseguir estes bens, nada mais eficaz pode imaginar-se do que essas leis de que Deus é o autor; e, por isso, aqueles que não querem, no governo dos Estados, ter em conta alguma as leis divinas, desviam realmente o poder político da sua instituição, e da ordem prescrita pela natureza. Mas há uma observação ainda mais importante e que Nós mesmos temos recordado mais de uma vez em outras ocasiões: e é que o poder civil e o poder sagrado, conquanto não tenham o mesmo fim e não marchem pelos mesmos caminhos, devem, contudo, encontrar-se algumas vezes, no desempenho das suas funções. Ambos, com efeito, exercem a sua autoridade sobre os mesmos súditos e, mais duma vez, sobre as mesmas matérias, embora sob pontos de vista diferentes. O conflito, nesta ocorrência, seria absurdo e repugnaria inteiramente à infinita sabedoria dos conselhos divinos. Deve, portanto, necessariamente haver um meio, um processo para fazer desaparecer as causas de conflitos e lutas, e estabelecer o acordo na prática. E este acordo não é sem razão que foi comparado à união que existe entre a alma e o corpo, e isto para maior vantagem de ambos, pois a separação é particularmente funesta ao corpo, porque o priva da vida. Mas, para evidenciar melhor estas verdades, é mister consideremos separadamente as diversas espécies de liberdades que se dão como conquistas da nossa época. E primeiramente, a propósito dos indivíduos, examinemos esta liberdade tão contrária à virtude da religião, a liberdade de culto, como lhe chamam, liberdade que se baseia no princípio de que é lícito a cada qual professar a religião que mais lhe agrade, ou mesmo não professar nenhuma. Mas, precisamente ao contrário, sem dúvida alguma, entre todos os deveres do homem, o maior e o mais santo é aquele que ordena ao homem que renda a Deus um culto de piedade e de religião. E este dever não é senão uma consequência do fato de nós estarmos pela vontade e providencia de Deus, e de que, saídos d’Ele, devemos voltar a Ele. Deve-se acrescentar que nenhuma virtude digna deste nome pode existir sem a religião, pois a virtude moral é aquela cujos atos têm por objeto tudo o que conduz a Deus considerado como supremo e soberano bem do homem; e por isso é que a religião, que pratica os atos tendo por fim direto e imediato a honra divina? (S. Th. 2-2, q. 81, a 6), é a rainha e ao mesmo tempo a regra de todas as virtudes. E se se pergunta qual, entre todas essas religiões opostas que têm curso, se deve seguir com exclusão das outras, a razão e a natureza unem-se para nos responder: a que Deus prescreveu e que é fácil de distinguir, graças a certos sinais exteriores pelos quais a divina Providência a quis tornar reconhecível, pois que em coisa de tanta importância o erro acarretaria consequências muito desastrosas. É por isso que oferecer ao homem a liberdade de que falamos, é dar-lhe o poder de desvirtuar ou abandonar impunemente o mais santo dos deveres, afastando-se do bem imutável, a fim de se voltar para o mal. Isto, já o dissemos, não é liberdade, mas uma depravação da liberdade, e uma escravidão da alma na abjeção do pecado. Encarada sob o ponto de vista social, esta mesma liberdade quer que o Estado não renda culto algum a Deus, ou que não autorize nenhum culto público; que nenhuma religião seja preferida a outra, que todas sejam consideradas como tendo os mesmos direitos, sem mesmo ter atenção para com o povo, até quando esse mesmo povo faz profissão de catolicismo. Mas, para que assim fosse justo, seria necessário que realmente a comunidade civil não tivesse nenhum dever para com Deus, ou que, tendo-o, pudesse impunemente afastar-se dele: duas coisas manifestamente falsas. Com efeito, não se pode pôr em dúvida que a reunião dos homens em sociedade seja obra da vontade de Deus; e isto quer se considere em seus membros, na sua forma que é autoridade, na sua causa, ou em número e importância das vantagens que ela procura ao homem. Foi Deus quem fez o homem para a sociedade e o uniu aos seus semelhantes, a fim de que as necessidades da sua natureza, às quais os seus esforços isolados não poderiam dar satisfação, a possam encontrar na comunidade. Eis aí por que a sociedade civil como sociedade deve necessariamente reconhecer Deus como seu princípio e seu autor, e, por conseguinte, render ao seu poder e à sua autoridade a homenagem do seu culto. Veda-o a justiça, e veda-o a razão que o Estado seja ateu, ou, o que viria a dar no ateísmo, esteja animado a respeito de todas as religiões, como se diz, das mesmas disposições e conceder-lhes indistintamente os mesmos direitos”.

95. Nestas condições, o que acontece ao trabalho das eleições?

Em muitos casos, as eleições servem um bom propósito. Assim, a fim de dar à Igreja uma Cabeça, procede-se por meio de eleições. Em muitos casos é utilizado o mesmo procedimento. Mas há uma dificuldade, que decorre precisamente do fato de as eleições – que devem dar a um país, províncias, comunas, etc. – legisladores e líderes, poderem colocar como cabeças malfeitores que, pela sua ação, se tornarão malfeitores públicos e corruptores de almas. Já insistimos suficientemente na necessidade de colocar Deus e Jesus Cristo como a cabeça e a base de toda a Ordem Social. Agora, a vontade de um país de se entregar a Deus é manifestada pela sua legislação. Para estar em conformidade com a intenção divina, cada país deve, através de eleições, expressar a sua firme vontade de viver para Cristo e de O servir. 

96. Em suma, então, submete a política a Deus e a Jesus Cristo?

Já demonstrámos claramente: toda a política deve estar sujeita a Deus e a Jesus Cristo, de quem depende inteiramente. É o dever de toda a política colocar-se na perspectiva do fim supremo da vida e de todos os atos privados e públicos: Deus.

97. Mas, desta forma, não serão acusados de fazer política a partir do púlpito cristão?

As acusações feitas contra a verdade e contra a missão que a verdade deve cumprir são para nós motivo de pouca preocupação. Certamente, certas medidas de prudência são necessárias; mas a prudência não pode, como já foi estabelecido, transformar-se numa aprovação do erro e numa traição à verdade. E é precisamente porque quisemos agradar àqueles que não querem aceitar a completa dependência da política de Deus que chegamos à situação deplorável de hoje. Nunca deveria ter sido silenciado dos púlpitos e em todo o lado que a política deve ser acima de tudo submissa a Deus e a Jesus Cristo. O silêncio dos pregadores é o que aqueles que mais lucram com ele desejam. É o meio de inculcar líderes e mesmo sujeitos com princípios perniciosos. Devemos, portanto, ser penetrados com a necessidade de fazer com que o público compreenda o seu erro nesta matéria, e de fazer com que a doutrina da verdade penetre em todo o lado e por todas as razões. Assim, em vez de nos retrairmos por medo de colidir com certas convicções, devemos ver nelas um estímulo para a luta.

 

XIII – RECAPITULAÇÃO: A FESTA DE CRISTO REI

98. poderia, em nome da utilidade, resumir as verdades ensinadas neste catecismo?

Certamente. E são elas:

I - Deus é o Ser Supremo, supremamente independente. Tudo o que existe fora d'Ele é criado por Ele e depende d'Ele com dependência suprema e absoluta. Só Ele tem total autoridade e poder sobre todas as coisas. Não só tudo depende d'Ele, mas tudo deve regressar a Ele como o seu único fim último. Em suma, todas as Sociedades, Nações e Estados devem recorrer a Ele como seu Criador e Fim Supremo.  

II – Jesus Cristo – o Deus-Homem – de Deus, recebeu na Sua Humanidade todo o poder no céu e na terra. Ele tem autoridade e poder sobre todas as outras autoridades. Ele está vestido com o verdadeiro poder régio. A Igreja e o Papa partilham este poder.

III – É evidente que, de acordo com o que foi dito, todas as Constituições dos Povos e a sua Legislação devem ter Deus, Jesus Cristo e a Missão da Igreja como base e cabeça.

IV – Pela Declaração dos Direitos do Homem, Deus e tudo o que é de Deus foi suprimido das Constituições e da Legislação, e o homem divinizado foi substituído por Ele.

V – A consequência desta substituição foi a abolição de todo o Direito Divino e da única profissão de direitos humanos. Isto significa o triunfo do laicismo, do ateísmo e de todos os erros que são a consequência lógica da Declaração dos Direitos do Homem.

VI – Consequentemente, na lei, o homem é supremamente independente. Deve gozar de todas as liberdades: liberdade de consciência, liberdade de ensino, liberdade de imprensa, liberdade de associação, liberdade de culto... Por uma rara contradição, ele pode criar leis e impô-las pela força.

VII – Se não queremos sofrer um dia os castigos divinos e todas as catástrofes, devemos abolir das Constituições dos Povos a chamada Lei moderna e as grandes liberdades já mencionadas. Para tal, devemos utilizar estas mesmas liberdades que nos são concedidas para as suprimir no sentido moderno da palavra e para poder fazer o máximo de bem possível. Devemos usar a liberdade de ensino para ensinar Jesus Cristo livremente; devemos usar a liberdade de imprensa para tornar conhecida a Verdade divina que salva; devemos usar a liberdade de associação para nos unirmos para o bem das almas; devemos professar ostensivamente a adoração do verdadeiro Deus. Devemos tirar partido destes chamados direitos para fazer compreender às pessoas e às almas que só a verdade e o bem têm direitos, e que o erro e o mal não têm nenhum.

VIII – Desta forma tudo voltará à ordem e à paz, porque tudo voltará a ser submisso a Deus e ao Seu Cristo através da Santa Igreja. As nações estarão unidas pelos laços da justiça e da caridade em Cristo e sob a orientação espiritual do Papa. Os Povos serão constituídos numa verdadeira Liga Apostólica das Nações: e o mundo será salvo.

99. Quais foram as intenções do Papa Pio XI ao instituir a Festa em honra de Cristo Rei?

O Sumo Pontífice quis comemorar, numa festa especial em honra da Realeza de Jesus Cristo, a recordação de todos os benefícios que o Homem-Deus trouxe à humanidade, e especialmente o benefício da Ordem Social, que é a condição para a paz interna e externa dos povos. Basta-nos ouvir a voz do Sumo Pontífice enquanto ele próprio expõe o seu pensamento. Qualquer comentário diminuiria a força e a clareza da palavra pontifícia. Estes são os termos em que o Papa Pio XI instituiu a Festa que o mundo inteiro celebra:

“E a fim de que a sociedade cristã goze largamente de tão preciosas vantagens e para sempre as conserve, é mister que se divulgue quanto possível o conhecimento da dignidade real de Nosso Salvador. Ora, nada pode, pelo que Nos parece, conseguir melhor este resultado, do que a instituição de uma festa própria e especial em honra de Cristo-Rei.

Com efeito, para instruir o povo nas verdades da fé e levá-lo assim às alegrias da vida interna, mais eficazes que os documentos mais importantes do Magistério eclesiástico são as festividades anuais dos sagrados mistérios. Os documentos do Magistério, de fato, apenas alcançam um restrito número de espíritos mais cultos, ao passo que as festas atingem e instruem a universalidade dos fiéis. Os primeiros, por assim dizer, falam uma vez só, as segundas falam sem intermitência de ano para ano; os primeiros dirigem-se, sobretudo, ao entendimento; as segundas influem não só na inteligência, mas também no coração, quer dizer — no homem todo. Composto de corpo e alma, precisa o homem dos incitamentos exteriores das festividades, para que, através da variedade e beleza dos sagrados ritos, recolha no ânimo a divina doutrina, e, transformando-a em substância e sangue, tire dela novos progressos em sua vida espiritual.

Além disso, ensina-nos a própria história, que estas festividades litúrgicas foram introduzidas, no decorrer dos séculos, umas após outras, para responder a necessidades ou vantagens espirituais do povo cristão. Foram-se constituindo para fortalecer os ânimos em presença de algum perigo comum, para premunir os espíritos contra os ardis da heresia, para mover e inflamar os corações a celebrar com mais ardente piedade algum mistério de nossa fé ou algum benefício da divina graça. Assim é que, desde os primeiros tempos da era cristã, quando, acossados das mais cruentas perseguições, os fiéis começaram, com sagrados ritos, a comemorar os mártires, para que como diz S. Agostinho “as solenidades dos mártires fossem exortação ao martírio”. As honras litúrgicas, mais tardes decretadas aos confessores, às virgens, às viúvas, contribuíram singularmente para promover nos fiéis o zelo pela virtude, indispensável mesmo em tempo de paz. Especialmente as festas em honra da Virgem Beatíssima fizeram com que o povo cristão não só tributasse à Mãe de Deus, sua Protetora por excelência, culto mais assíduo, senão que ao mesmo tempo fosse de contínuo crescendo seu amor filial à Mãe que o Redentor lhe deixara como que em testamento. Dentre os benefícios que dimanaram do culto público e legitimamente prestado à Mãe de Deus e aos Santos do Céu, não é o menor a vitória constante com que a Igreja se cobriu de louros, ao debelar e repelir a heresia e o erro. E nisto devemos admirar os desígnios da Divina Providência, que, segundo costuma, tira o bem do mal. Permitiu que, de tempos a tempos, entibiasse a fé e a piedade popular; permitiu que doutrinas errôneas armassem insídias à piedade católica, mas sempre com o intuito de fazer finalmente fulgir a verdade com novo esplendor e mover os fiéis, espertos da tibieza, a tenderem com novo zelo a graus mais elevados de santidade e perfeição cristã. Idêntica é a origem, idênticos os frutos que produziram as solenidades recentemente introduzidas no calendário litúrgico. Tal é a festa do “Corpus Christi”, instituída quando se esfriava a reverência e o culto para com o SS. Sacramento; celebrada com brilho singular, protraída por oito dias de suplicações coletivas, a nova solenidade devia reconduzir os povos à adoração pública do Senhor. Tal é a festa do Coração Santíssimo de Jesus estabelecida na época em que, abatidos e desalentados pelas tristes doutrinas e o rigorismo sombrio do jansenismo, os fiéis sentiam seus corações regelados e com escrúpulo deles excluíam todo sentimento de amor de Deus e a esperança de conseguirem a eterna salvação.

Para Nós também soou a hora de provermos às necessidades dos tempos presentes e de opormos um remédio eficaz à peste que corrói a sociedade humana. Fazemo-lo, prescrevendo ao universo católico o culto de Cristo-Rei. Peste de nossos tempos é o chamado “laicismo”, com seus erros e atentados criminosos.

Como bem sabeis, Veneráveis Irmãos, não é num dia que esta praga chegou à sua plena maturação; há muito, estava latente nos estados modernos. Começou-se, primeiro, a negar a soberania de Cristo sobre todas as nações; negou-se, portanto, à Igreja o direito de doutrinar o gênero humano, de legislar e reger os povos em ordem à eterna bem-aventurança. Aos poucos, foi equiparada a religião de Cristo aos falsos cultos e indecorosamente rebaixada ao mesmo nível. Sujeitaram-na, em seguida, à autoridade civil, entregando-a, por assim dizer, ao capricho de príncipes e governos. Houve até quem pretendesse substituir à religião de Cristo um simples sentimento de religiosidade natural. Certos estados, por fim, julgaram poder dispensar-se do próprio Deus e fizeram consistir sua religião na irreligião e no esquecimento consciente e voluntário de Deus.

Os frutos sobremodo amargosos que, tantas vezes e com tanta persistência, produziu esta apostasia dos indivíduos e dos estados, que desertam a Cristo, expendemo-los na Encíclica “Ubi arcano”. Tornamos a lamentá-los hoje. Frutos desta apostasia são os germes de ódio esparsos por toda parte, as invejas e rivalidades entre nações, que alimentam as discórdias internacionais e dificultam ainda agora a restauração da paz; frutos desta apostasia as ambições desenfreadas, que muitas vezes se encobrem com a máscara do interesse público e do amor da pátria, e suas tristes consequências: dissensões civis, egoísmo cego e desmedido, sem outro fito nem outra regra mais que vantagens pessoais e proveitos particulares. Fruto desta apostasia a perturbação da paz doméstica, pelo esquecimento e desleixo das obrigações familiares, o enfraquecimento da união e estabilidade no seio das famílias, e por fim o abalo na sociedade toda, que ameaça ruir.

A festa, doravante ânua, de “Cristo-Rei” dá-nos a mais viva esperança de acelerarmos a tão desejada volta da humanidade a seu Salvador amantíssimo. Fora, com certeza, dever dos católicos, apressar e preparar esta volta com diligente empenho; a muitos deles, contudo, pelo que parece, não toca, na sociedade civil, o posto e a autoridade que conviriam aos apologistas da fé. Talvez deva este fato atribuir-se à indolência e timidez dos bons que se abstêm de toda resistência, ou resistem com moleza, donde provém, nos adversários da Igreja, novo acréscimo de pretensões e de audácia. Mas, desde que a massa dos fiéis se compenetre de que é obrigação sua combater com valentia e sem tréguas sob os estandartes de Cristo-Rei, o zelo apostólico abrasará seus corações, e todos se esforçarão de reconciliar com o Senhor as almas que o ignoram ou dele desertaram; todos, enfim, se esforçarão por manter inviolados os direitos do próprio Deus.

Mas não basta. Uma festa, anualmente celebrada por todos os povos em homenagem a Cristo-Rei, será sobremaneira eficaz para condenar e ressarcir, de algum modo, esta apostasia pública, tão desastrada para as nações, gerada pelo laicismo. Com efeito, quanto mais vergonhosamente se passa em silêncio, quer nas conferências internacionais, quer nos Parlamentos, o nome suavíssimo do nosso Redentor, tanto mais alto o devemos aclamar, tanto mais devemos reconhecer os direitos que a Cristo conferem sua dignidade e poder real.

E quem não vê que, desde os últimos anos do século passado, se ia, de modo admirável, preparando o caminho à instituição desta festa? Ninguém, com efeito, ignora como, com livros que se escreveram nas várias línguas do mundo inteiro, este culto foi explicado e doutamente defendido. Sabem todos que a autoridade e realeza de Cristo foi já reconhecida pela piedosa prática de se consagrarem e dedicarem ao Sagrado Coração de Jesus famílias inumeráveis. E não só famílias, mas também estados e reinos praticaram o mesmo ato. Antes, por iniciativa e direção de Leão XIII, o universo gênero humano foi felizmente consagrado a este Coração Santíssimo, no correr do Ano Santo de 1900. Não podemos preterir os congressos eucarísticos que nossa época viu multiplicar-se em tão grande número. Tão bem serviram à causa da solene proclamação humana. Reunidos para apresentar à veneração e às homenagens populares de uma diocese, de uma província, de uma nação, ou mesmo do mundo inteiro, Cristo-Rei, oculto sob os véus eucarísticos, esses congressos, em conferências realizadas nas suas assembleias, em sermões proferidos nas igrejas, por meio da exposição pública ou da adoração em comum do Santíssimo Sacramento e de grandiosas procissões, enaltecem a Cristo como a Rei que de Deus receberam os homens. Este Jesus, que os ímpios recusaram acolher quando veio a seu reino, pode-se dizer, com toda a verdade, que o povo cristão, movido de uma inspiração divina, vai arrancá-l’O ao silêncio e, por assim dizer, à obscuridão dos templos, para levá-l’O, qual triunfador, pelas ruas das grandes cidades e reintegrá-1’O em todos os direitos de sua realeza.

 

Para a realização deste Nosso desígnio, de que acabamos de falar, oferece-Nos ensejos sumamente oportunos o “Ano Santo” que finda. Este ano veio relembrar ao espírito e ao coração dos fiéis os bens celestes que sobrepujam todo sentimento natural. Em sua bondade infinita, Deus restitui a uns a sua graça, e confirma a outros no bom caminho, infundindo-lhes novo ardor para aspirarem a dons mais perfeitos. Quer atendamos às numerosas súplicas que nos foram dirigidas, quer consideremos os acontecimentos que se dirigidas, quer consideremos os acontecimentos que se deram no correr do “Ano Santo”, sobeja razão nos assiste de pensarmos que deveras para Nós soou a hora de proferirmos a sentença tão ansiosamente de todos aguardada e que decretemos uma festa especial em honra de Cristo, Rei de todo o gênero humano. Durante este ano, com efeito, como a princípio dissemos, este divino Rei, deveras admirável em seus Santos, conquistou novos triunfos, com a elevação às honras dos altares de mais um manípulo de soldados seus. Durante este ano, uma exposição extraordinária pôs ante os olhos do mundo as fadigas e, de algum modo, os próprios trabalhos dos arautos do Evangelho, e todos puderam admirar as vitórias ganhas por esses campeões de Cristo, para a extensão do seu reino; durante este ano, finalmente, com o centenário do Concílio de Nicéia, comemoramos, contra os seus detratores, a defesa e definição do dogma da consubstancialidade do Verbo Humanado com seu Pai, verdade na qual descansa, como em fundamento, a soberania de Cristo sobre todos os povos.

Portanto, em virtude de Nossa autoridade apostólica, instituímos a festa de “Nosso Senhor Jesus Cristo Rei”, mandando que seja celebrada cada ano, no mundo inteiro, no último domingo de outubro imediato à solenidade de Todos os Santos. Prescrevemos igualmente que, cada ano, se renove, nesse dia, a consagração do gênero humano ao Coração de Jesus, que já Nosso Predecessor de saudosa memória Pio X ordenara se fizesse anualmente. Contudo, queremos que, neste ano, a renovação se faça a 31 de dezembro; nesse dia, celebraremos missa pontifical em honra de “Cristo-Rei”, e mandaremos proferir, em Nossa presença, o ato de consagração. Quer parecer-Nos que não pode haver melhor encerramento do “Ano Santo”, e que destarte daremos a “Cristo, Rei Imortal dos séculos”, o testemunho mais eloquente de nossa gratidão e do reconhecimento do universo católico, de quem Nos fazemos intérpretes, pelos benefícios que, neste período de graças, concedeu a Nós mesmo, à Igreja, à cristandade toda.

É escusado, Veneráveis Irmãos, explicar-vos longamente os motivos de uma festa especial em honra de “Cristo-Rei”. Pois, conquanto outras festas, já existentes, enalteçam e de algum modo glorifiquem sua dignidade real, basta, contudo, observar que, se todas as festas de Nosso Senhor têm a Cristo, segundo a linguagem dos teólogos, por “objeto material”, de modo algum é o poder e apelativo de Rei “objeto formal” das mesmas.

Fixando a nova festa em um domingo, quisemos que o clero fosse o único em prestar suas homenagens a “Cristo-Rei”, com a celebração do Santo Sacrifício e a reza do Santo Ofício, mas que o povo, desimpedido de suas ocupações ordinárias, e animado de santa alegria, pudesse dar a Cristo, como a seu Senhor e Soberano, um manifesto testemunho de obediência. Finalmente mais apropriado Nos pareceu o último domingo de outubro, porque este domingo, em certo modo, encerra o ciclo do ano litúrgico; destarte, os mistérios da vida de Jesus Cristo, comemorados no decorrer do ano que finda, terão na solenidade de “Cristo-Rei” seu como termo e coroa, e antes de celebrar a glória de todos os Santos, a liturgia proclamará e enaltecerá a glória d’Aquele que em todos os Santos e em todos os eleitos triunfa. É dever, é direito vosso, Veneráveis Irmãos, fazer preceder a festa por uma série de instruções que se deem, em dias determinados, nas diferentes paróquias, para instruir acuradamente o povo da natureza, significado e importância desta festa, por onde os fiéis regulem a sua vida em modo a torná-la digna de súbditos leais e submissos de coração à soberania do Divino Rei”.