domingo, 9 de outubro de 2022

Vita Christi – XVIII Domingo depois de Pentecostes – Ludolfo da Saxônia, O.Cart.

 


Evangelho:

Naquele tempo, entrando Jesus em uma barca, passou à outra banda, e foi à sua cidade. E eis que lhe apresentaram um paralítico, que jazia em um leito. E vendo Jesus a fé deles, disse ao paralítico: "Filho, tem confiança, perdoados te são teus pecados". E logo alguns dos escribas disseram dentro de si: "Este blasfema". E como visse Jesus os pensamentos deles, disse: "Por que cogitais mal nos vossos corações? Que coisa é mais fácil dizer: 'Perdoados te são teus pecados' ou dizer 'Levanta-te e anda?'". Pois para que saibais que o Filho do homem tem poder sobre a terra de perdoar pecados, disse Ele então ao paralítico: "Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa". E ele se levantou, e foi para sua casa. E vendo isto as gentes, temeram, e glorificaram a Deus, que deu tal poder aos homens.

 

Jesus, entrando em uma barca, deixou o país dos gerasenos para ir para a Galileia, de onde havia partido. Diz São Crisóstomo: “Jesus atravessa o mar em um barco frágil enquanto poderia atravessá-lo a pé”. Ele age assim para não mostrar seu poder com muita frequência por meio de milagres e não prejudicar o mistério de sua Encarnação. Quão diferente é a conduta dos homens! Eles têm algum poder? Eles sempre querem manifestá-lo em vez da verdade da justiça. Jesus ainda atravessa o mar em um barco, para nos ensinar a usar o barco da penitência no mar deste mundo para chegar à cidade celestial. É por isso que o Evangelho acrescenta. “E Jesus veio à sua cidade”, isto é, a Cafarnaum, onde costumava viver e realizar seus milagres. Segundo São Crisóstomo, o evangelista chama Cafarnaum a cidade do Salvador, não porque ali nasceu, mas porque a tornou famosa por seus milagres. Belém o deu à luz, Nazaré o viu crescer; Cafarnaum o manteve em seu seio por muito tempo. Jesus passou a maior parte de sua vida pública em Cafarnaum e lá fez maravilhas, porque, segundo Santo Agostinho, esta cidade era como a metrópole e o lugar mais importante da Galileia. Assim, por causa da grande multidão de pessoas que ali estava, a fé e sua doutrina deveriam brilhar mais ali e, confirmadas por milagres, se voltariam para a salvação de um grande número. O evangelista também chama Cafarnaum de a cidade de Jesus, porque, como já dissemos em capítulo anterior, Cafarnaum significa cidade de prazer, fertilidade e consolação, todas as coisas que são para muitas ocasiões de pecado; Jesus, portanto, permanece lá, porque ela precisava da visão de muitas maravilhas para se converter. Ou ainda, chamamos uma cidade de metrópole, embora pertençamos a outra cidade que está sob ela. Nesse sentido, Cafarnaum, a metrópole de Nazaré da Galileia, situada entre Nazaré e o lago, é considerada a cidade do Senhor, que foi concebido e criado em Nazaré.

E enquanto Jesus ensinava a multidão na casa onde morava, vieram quatro homens carregando um paralítico em seu leito. Encontrando a porta bloqueada pela multidão de assistentes, e impossibilitados de entrar por esse caminho e apresentar o paciente, subiram no telhado, descobriram-no das telhas e, tendo feito uma abertura, baixaram o paciente com o leito onde estava e o colocou diante de Jesus. Este passo prova a grandeza de sua fé. Assim, o Senhor imediatamente realizou um ato de poder divino tanto no corpo quanto na alma do paralítico. E isto se deu de três maneiras: primeiro, pela remissão de seus pecados; segundo, pelo conhecimento de seu pensamento (este duplo efeito é relativo à alma); terceiro, pela cura instantânea da doença do corpo.  Jesus, de fato, vendo a fé daqueles que o trouxeram, e também do paralítico (pois não teria permitido ser carregado e descido pelo telhado, se não tivesse fé na sua cura), perdoou-lhe pecados, dizendo-lhe: “Tem confiança, meu filho, os teus pecados te são perdoados”. E, note bem, Ele não diz “te perdoo”, mas “são perdoados”, para nos ensinar humildade e misericórdia. Assim, o paralítico teve fé, pois a saúde do corpo pode muito bem ser restituída ao paciente em nome da fé alheia (a sogra de Pedro e o servo do centurião são exemplos disso); mas para a remissão dos pecados, é concedida a um adulto somente em nome de sua própria fé; e é com razão que o Salvador chama esse aleijado de meu filho, pois ele já creu. O que faz São Jerônimo dizer:

“Que admirável humildade! Um homem sem nome e sem poder, um homem aleijado de todos os membros, um homem a quem os sacerdotes da Lei nem sequer se dignaram tocar, recebe de Jesus Cristo o título de filho”.

Ora, alguns dos escribas presentes diziam por si mesmos, isto é, pensamento, porque não ousavam traduzir seu pensamento em fala por causa do povo (e a palavra interior é o pensamento da alma): “Este homem blasfema”, isto é, dizer que ele é um usurpador dos atributos de Deus, porque a blasfêmia é uma injustiça para com Deus, uma injustiça que se realiza de três maneiras: primeiro, atribuindo a Deus o que não lhe convém; segundo, tirando d’Ele o que lhe convém; terceiro, quando o homem atribui a si mesmo o que pertence somente a Deus; e é nesse sentido que os escribas consideraram que Jesus blasfemou, pois eles o consideravam como um homem e não acreditavam que Ele fosse Deus. O perdão dos pecados é um atributo exclusivo de Deus. Mas Jesus os repreende com razão, provando-lhes sua divindade de duas maneiras: primeiro, Ele responde a seus pensamentos, que somente Deus pode saber com certeza, e lhes diz: “Por que cogitais mal em vossos corações? Acusando-me falsamente de blasfêmia, isto é, chamando-me impotente para perdoar pecados e chamando-me usurpador do que é meu?” Como se dissesse: “O poder que me faz ver os teus pensamentos também me permite perdoar os pecados, porque os pensamentos são a fonte do bem e a origem do mal”. Nosso Salvador, vendo os maus pensamentos dos escribas, para impedi-los de chegar a algo pior, os repreende, dizendo-lhes: Por que vocês têm maus pensamentos em seus corações? Tiremos uma lição disso: assim que percebermos que um mau pensamento bate à porta do nosso coração, devemos nos apressar em nos repreender e repetir para nós mesmos as palavras de Jesus Cristo: “Por que cogitais mal em vossos corações?”. Segundo, o Salvador ainda prova sua divindade pela cura do paralítico que ocorre em sua simples ordem. Este é um atributo do mesmo poder, como a remissão dos pecados; a paralisia, é verdade, às vezes pode ser curada pela energia das forças da natureza, mas esta cura não é instantânea, não é perfeita o suficiente para o homem poder carregar imediatamente o leito em que estava estendido, como aconteceu no exemplo anterior. É por isso que Jesus acrescenta: “Qual dessas duas coisas é mais fácil? Dizer: ‘Teus pecados estão perdoados’, ou dizer: ‘Levanta-te e anda’”, isto é, fazer com que os pecados sejam remidos por mera palavra, ou fazer com que um paralítico se levante, seja curado e ande? Como se dissesse: “Se isto lhe parece mais brilhante e maior, isto é, a cura instantânea dos corpos e não a das almas, pois bem, Eu tenho o poder de fazer o primeiro ato, então posso fazer o segundo, pois essas duas coisas são um atributo do mesmo poder, e ambas reivindicam poder infinito”. E Ele demonstra o poder de sua divindade de fato, dizendo: “Mas para que saibais que o Filho do Homem tem na terra poder para perdoar pecados, então disse ao paralítico: ‘Levanta-te’”, isto é, fique curado, “tome teu leito” onde ficou muito tempo pregado pela doença (para que este testemunho de sua enfermidade se torne prova de sua cura), “e volte para tua casa”, sem ajuda de nenhum portador como antes. E o paralítico partiu, dando glória a Deus, que acabara de curá-lo.

Que poder de curar imediatamente após a ordem! Já ninguém duvida que o mesmo que mandara o paralítico pegar o leito e andar, também lhe havia perdoado os pecados. Além disso, todos os espectadores foram tomados de extrema admiração e, renunciando às blasfêmias, começaram a elogiar tamanha majestade. Eis o que acrescenta o evangelista: E as multidões, vendo o milagre realizado na pessoa do paralítico, ficaram cheias de temor e admiração, e deram glória a Deus por ter dado tal poder, isto é, o poder de perdoar pecados e de curar os enfermos somente pela palavra, aos homens, isto é, para a salvação deles; ou, de acordo com a Glosa, que um homem estava fazendo entre os homens coisas tão maravilhosas. E este poder de milagres que Deus Pai havia dado a Jesus Cristo, Nosso Senhor o exerceu por três razões: primeiro, Ele fez milagres em benefício daqueles que eram objeto deles, pois neles operava a dupla cura do corpo e alma; segundo, para a conversão de outros, pois muitos se converteram à vista de seus milagres; terceiro, para glória e honra de Deus. Esta tríplice causa emerge da narrativa do Evangelho. O espanto que tomou conta da multidão parece provar que eles não tinham um conhecimento perfeito de Jesus Cristo, acreditava-se que Ele era um homem puro e poderia ter recebido esse poder de milagres de Deus. O que faz a Glosa dizer: ”Consideram incrédulo o paralítico que se levanta, imitam-no na sua partida e preferem temer os milagres do poder divino a acreditar neles. Se tivessem fé, não seriam tomados de medo, mas animados de amor, a caridade perfeita exclui o medo”.

O Senhor, para curar o paralítico, começa pela doença espiritual, causa e raiz daquela do corpo, pois Ele perdoa os pecados que foram a fonte da paralisia, como um bom médico que primeiro destrói a causa do mal para depois chegar à cura. Sua enfermidade havia sido infligida ao paralítico por causa de seus pecados, para que ele pudesse ser purificado deles, e o Senhor destrói a causa porque, quando cessa, seus efeitos desaparecem. Segundo a Glosa, as enfermidades nos chegam por cinco motivos: para aumentar os méritos dos justos pela paciência, como testemunha Jó; para que zelemos pelas nossas virtudes para não cairmos no orgulho, como testemunha São Paulo; para nos corrigir de nossos pecados, como testemunha Maria (irmã de Moisés, coberta de lepra) e este paralítico; para glória de Deus, como testemunha o cego de nascença e Lázaro; para principiar a pena infernal, como testemunha Herodes Agripa, e para que possamos ver aqui embaixo o que nos acontecerá no inferno. Então, de acordo com São Jerônimo:

“O Salvador aqui nos dá a entender que a maioria das doenças do corpo vem a nós por causa de nossos pecados, e Ele nos dá, no paralítico, um sinal visível disso para melhor trazer à tona a causa invisível”.

E São Beda:

“O Senhor desejando curar um paralítico, primeiro quebra as cadeias de seus pecados, para nos mostrar que a privação do movimento de seus membros veio do fato de sua alma ter sido presa pelo pecado“.

Mas infelizmente, nós outros nos preocupamos mais com a cura do corpo do que da alma; e é por isso que muitas vezes não temos nenhum. É o pensamento de São Crisóstomo:

“Nosso corpo está doente? Apressamo-nos a livrá-lo do seu mal. Mas se é a nossa alma que sofre, demoramos e nem mesmo assim obtemos a cura do corpo”.

O homem às vezes está doente por causa de seus pecados, o médico que o visita em sua doença deve primeiro exortá-lo à penitência e à confissão; pois se o pecado permanece na alma, como o ferro numa ferida, a aplicação de um remédio torna-se inútil. São, portanto, errados os médicos que tratam o corpo antes da alma; ignoram a causa da doença, ou seja, o corpo sofre por causa do pecado da alma.

Mas, como diz São Crisóstomo, esses atos do Senhor contêm em si a razão das coisas espirituais; então devemos ver de que tipo é o paralítico. Ele é antes de tudo a figura do povo dos gentios; os gentios, almas presas de pecados graves e acometidos de uma enfermidade incurável, jaziam como num leito sobre as quatro partes da terra. E este paralítico, a quem seus pecados são remidos, mostra-nos que os gentios, atingidos pela grave doença do pecado, depois de terem obtido a remissão por um remédio celestial, receberam a saúde da salvação eterna, em sua integridade e plenitude, quanto ao corpo e à alma. Após a remissão dos pecados e a obtenção da salvação, os gentios são corretamente informados a voltarem para sua casa, isto é, para a morada do Paraíso. Adão tinha sido expulso dela há muito tempo; Adão, o autor desta enfermidade que te consumia. Também podemos acrescentar com verdade: Neste espetáculo, as multidões foram tomadas de medo e glorificaram a Deus, que havia concedido aos homens tão grande poder. Deus é glorificado, de fato, ou porque deu a seus apóstolos o poder de perdoar pecados, ou porque concedeu aos homens a graça do poder, após a remissão de seus pecados, pelo mérito da fé e da justiça, para retornar ao paraíso de que foram privados. Santo Hilário diz:

“Com esta visão, as multidões foram tomadas de medo. Devemos temer muito, de fato, morrer sem ter obtido de Jesus Cristo o perdão de nossas faltas. Não há retorno possível à morte eterna sem essa condição. Mas, uma vez que o medo tenha desaparecido, a glória é dada a Deus: os homens, por sua palavra, podem obter a purificação de suas impurezas, ver seus corpos ressuscitarem e retornarem ao céu”.

No sentido moral, o paralítico, aleijado de todos os membros, representa o pecador privado das operações que podem dar-lhe mérito, definhando em vergonhosa inatividade. Ele não anda na afeição que merece; suas mãos não podem fazer boas obras; ele não pode saborear os doces celestiais, desfrutar a contemplação de Deus, ouvir a palavra divina e restaurar-se às consolações espirituais. Ele está deitado em um leito, quando se vê preso pelo mau hábito do pecado. O pecado, como a paralisia, produz no pecador uma espécie de tremor pelo amor que ele tem pelo mal; torna-o insensível, por obstinação; ele ata a língua em desespero.

De acordo com o relato do Evangelho, o Senhor ressuscitou três mortos; curou também três paralíticos: o que estava em sua casa, o que estava perto do tanque e, finalmente, o que estava em seu leito e de quem estamos falando. Agora, como o paralítico representa o pecador, devemos notar que existem três tipos de pecadores: o pecador oculto, o pecador público e o pecador habitual. O paralítico curado em sua casa é o pecador oculto; o curado na piscina é o pecador público; e o curado em seu leito é o pecador habitual; e este último pecado é mais difícil de abandonar e aqui diz que o pecador está deitado em seu leito, ou seja, continua a pecar.

Esses tipos de pecadores são levados para fora da morada de sua própria consciência, e mesmo fora da Igreja militante e triunfante ao mesmo tempo, por quatro portadores, por assim dizer, que são: primeiro, a tibieza no bem, pois se o homem começa, por preguiça, a afrouxar no bem em que estava andando, ele se afasta de Deus e, consequentemente, Deus o rejeita; segundo, o deleite no mal, quase sempre acompanha a tibieza, pois assim que sai de Deus, a alma imediatamente se deleita no mal; terceiro, a perpetração do mal, pois o prazer leva ao ato; quarto, o hábito de fazer o mal, que é contraído pela repetição de atos viciosos. Esses dois últimos portadores removem o paralítico espiritual para colocá-lo fora da influência dos sufrágios da Igreja.

Diante desses quatro portadores, há outros quatro que carregam o paralítico para reconciliá-lo com a Igreja, são eles: primeiro, a brevidade da vida, que faz o homem ver como a vida presente dura pouco e é incerta; segundo, o medo das dores do inferno, que nos faz ver sua intensidade, sua diversidade e sua eternidade; terceiro, a consideração do pecado que nos faz ver sua grandeza, sua baixeza e sua malícia; quarto, a esperança do perdão que nos diz: “cometeste muitas faltas, mas podes esperar misericórdia”.

Os quatro portadores do paralítico espiritual são os quatro meios que Deus estabeleceu para obter sua salvação; advertências privadas, pregação pública, oração e bom exemplo. Esses quatro carregadores apresentam o paralítico a Jesus Cristo, quando pedem a Deus por ele; e o paralítico se oferece, quando consente e não coloca nenhuma contrariedade.  Jesus Cristo olha para a fé desses portadores quando responde suas orações; o paralítico é curado quando seu pecado lhe é perdoado e ele recebe a graça que o restitui a atos meritórios. Ele carrega o leito de seu mau hábito quando rompe com ele pelo exercício do bem; assim caminhando de virtude em virtude, ele volta para sua casa, ele se apressa em direção à pátria celeste; e finalmente o povo glorifica a Deus por esta transformação, que é uma transformação pela mão direita de Deus. Quanto aos que murmuram diante do que chamam de blasfêmia, são a figura dos demônios atormentados pelo espetáculo da conversão do pecador.

Jesus Cristo, para efetuar sua cura, ordena quatro coisas ao penitente: acima de tudo, a confiança e a esperança de obter seu perdão, e então o chama de filho por adoção. Então, querendo curá-lo, ordena que ele se levante, pegue seu leito e volte para sua casa. Levanta-te, isto é, do pecado e prostração da alma; pois, pelo prazer do pecado, o pecador descansa como em um leito; o pecado deprime tanto a alma que a alegria nunca entra nela; a consciência perturbada a atormenta incessantemente; mas ela se levanta quando renuncia a todo mal. Pegar seu leito e carregá-lo, quer dizer, começar a considerar como um fardo e um sofrimento o pecado em que ela descansou e se deleitou. Voltar à casa, isto é, tender para o céu pela meditação, ou examinar a consciência que é a casa da alma, e se nela encontrar alguma impureza, purificá-la confessando.

Assim, o paralítico espiritual é o homem que se encontra habitualmente entorpecido nos prazeres da carne e nas delícias do mundo, e sobre cujos olhos os pensamentos e preocupações mundanas se espalham como um véu para impedi-lo de ver Deus. Uma vez estando sobre o telhado de sua carne, por assim dizer, que deve dominar pelo espírito, Deus se descobre ao seu olhar; então ele realmente retorna ao seu conhecimento; Deus o cura por sua graça de todos os seus pecados e o chama de filho por adoção; ordena-lhe que saia do torpor, saia das paixões carnais e dos prazeres do corpo pela penitência, onde estava como se estivesse deitado, que se eleve aos prazeres espirituais, reinando sobre sua carne pela continência; tender, por suas boas obras e uma conduta exemplar, para o paraíso, a primeira morada do homem, ou para sua casa interior,  tendo uma boa consciência, isolando-se do mundo, para protegê-lo de novos ataques e dificuldades. São Beda diz a mesma coisa:

“No sentido espiritual, levantar-se do leito é arrancar a alma das paixões da carne, onde estava deitada e doente. Tirar o leito é castigar nosso corpo com os rigores da continência e, em vista das recompensas celestes, privá-lo dos prazeres terrenos. Era esse leito de pecado que Davi regava todas as noites com suas lágrimas, punindo seu corpo por cada uma das faltas que o contaminaram. Pegar seu leito e ir para casa é voltar ao paraíso. Este é o nosso verdadeiro lar, que primeiro recebeu o homem; ela foi arrebatada de nós pela astúcia de Satanás; mas não havíamos abdicado de nossa propriedade, e ela finalmente nos foi restituída por aquele sobre quem nosso enganoso inimigo não tinha direito”.

Santo Anselmo, em suas Meditações, resume quase tudo o que acabamos de dizer do paralítico espiritual:

“Ah! não passe sem entrar nesta casa, onde o paralítico, desceu pelos telhados, foi colocado aos pés de Jesus, e onde a misericórdia e o poder se encontraram, quando o Salvador pronunciou estas palavras: ‘Meu filho, seus pecados estão perdoados’. Ó clemência digna de admiração! Ó misericórdia inefável! Ó paralítico três vezes feliz! Ele recebe a remissão de seus pecados que não pediu, que não teve confissão prévia, que não mereceu por satisfação e que não pôde reivindicar em nome de sua contrição. Ele pede a cura do corpo e não da alma, e recebe as duas ao mesmo tempo. Sim, Senhor, a vida, reside na vossa vontade; se Vós decretastes em nos salvar, quem o impedirá? E se seus decretos forem contrários, quem terá a audácia de dizer a vós: ‘Por que agis assim?’ Ó fariseu! por que murmuras? Seu olho está ruim porque Deus é bom? Certamente Ele se compadece de quem quer. Clamemos e oremos para que Deus nos dê sua misericórdia. Por nossas boas obras, tornemos nossa oração mais poderosa, aumentemos nossa devoção, acendamos o fogo do amor dentro de nós em nossa oração, levantemos para o céu mãos que o sangue impuro não manchou, que o contato ilícito não contaminou, que a avareza não endureceu; elevemos ao céu um coração vazio de raiva e ressentimento, onde reine a calma, a ordem, a paz e onde resplandeça a lucidez da consciência. Mas o paralítico não possuía nenhuma dessas condições, e mesmo assim obteve a remissão de seus pecados. Este é um efeito do poder e misericórdia inefáveis ​​de Jesus e se a usurpação desse poder é blasfêmia, a presunção dessa misericórdia para conosco é o cúmulo da loucura. Jesus Cristo pode dizer a quem quiser, e com a mesma eficácia, as palavras dirigidas ao paralítico: ‘Os teus pecados estão perdoados’. Mas tenhamos cuidado de pensar que tais palavras podem ser dirigidas a nós sem qualquer boa obra anterior, ou sem contrição, ou sem confissão, ou sem oração; nossos pecados nunca nos seriam perdoados”.