domingo, 2 de outubro de 2022

Vita Christi – XVII Domingo depois de Pentecostes – Ludolfo da Saxônia, O.Cart.


Evangelho

Naquele tempo, os fariseus, quando ouviram que Jesus tinha feito calar a boca aos saduceus, se ajuntaram em conselho e um deles, que era doutor da lei, tentando-o, lhe perguntou: “Mestre, qual é o grande mandamento da lei?”. Jesus lhe disse: “’Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento’. Este é o máximo e o primeiro mandamento. E o segundo semelhante a este é: ‘Amarás a teu próximo, como a ti mesmo’. Destes dois mandamentos. depende toda a lei e os profetas”. E estando juntos os fariseus, lhes fez Jesus esta pergunta, dizendo: “Que vos parece a vós do Cristo? De quem é ele filho?”. Responderam-lhe: “De Davi”. Jesus lhes replicou: “Pois como lhe chama Davi em espírito, Senhor, dizendo: ‘Disse o Senhor ao meu Senhor, senta-te à minha mão direita até que eu reduza os teus inimigos a servirem de escabelo a teus pés?’. Se, pois, Davi o chama o seu Senhor, como é ele seu filho?”. E não houve quem lhe pudesse responder uma só palavra. E daquele dia em diante ninguém mais ousou fazer-lhe perguntas.

 

Os fariseus, regozijando-se em seus corações pela derrota dos saduceus, reuniram-se entre si e se ajuntaram em grande número contra Jesus, a quem queriam derrotar. São Crisóstomo diz nesta ocasião:

“Eles se reuniram para conquistar ou assustar, pelo seu grande número, aqueles que eles não conseguiam vencer através do uso da razão. Armavam-se assim com sua multidão para que pudessem declarar seus oponentes como completamente destituído da verdade e como seus inimigos”.

Vimos no capítulo anterior, depois dos fariseus, os saduceus; agora, depois dos saduceus, vemos aqui os fariseus, pondo fim às suas divergências recíprocas, iraram-se contra Jesus e o perseguiam cada vez mais com suas perguntas insidiosas. São Jerônimo observa que o acordo tácito que notamos entre Pôncio Pilatos e Herodes, sobre o assunto da morte do Salvador, vemos também hoje entre os fariseus e os saduceus, que se encontram e silenciam suas rivalidades para montar uma armadilha comum contra Cristo. Um deles, que era escriba, disse-lhe: “Mestre, qual é o principal mandamento da Lei?”, sobre essa pergunta feita ao Salvador, São Crisóstomo diz:

“O escriba chama de mestre aquele cujo discípulo ele não é e não quer ser, ele pergunta sobre o maior mandamento de Deus, que todos pisoteiam e nunca se importaram minimamente com estes mandamentos. Para ser justo, o oposto teria sido mais apropriado e menos chocante”.

No entanto, Jesus responde a todos publicamente, como se estivessem buscando de boa-fé a verdade que nunca deve ser ocultada ou colocada sob um alqueire: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma e de toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento”. São Crisóstomo observa que este mandamento, na boca de Cristo, ordena que não façamos outra coisa senão estimar e amar a Deus com todas as principais faculdades de nossa alma e assim nos unirmos a Ele pela inteligência, vontade e memória ou sensibilidade do coração, pois o medo é característico dos escravos, e o amor ou a caridade marcam o coração dos filhos de Deus. Diz Santo Agostinho:

“Amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente, é, dentro de nós, não deixar nada fora desse amor. Pensamento, inteligência, toda a nossa vida, tudo está lá; o homem é perfeito quando toda a sua existência é dirigida a Deus”.

São Crisóstomo nos ensina novamente o que é amar a Deus com todo o coração, nos mesmos termos de Santo Agostinho. São Bernardo resume este amor de Deus, ordenado pelo maior dos seus mandamentos, nestas três palavras: Fugir do demônio, fugir do mundo, fugir dos prazeres carnais, preocupar-se apenas com os prazeres espirituais. Então o santo acrescenta:

“Este é realmente o maior e o primeiro mandamento. O maior em dignidade, pois seu objeto é o próprio Deus; o primeiro em ordem, pois do segundo ao último contém todos eles. Este mandamento é tão importante que a lei natural o gravou no coração do homem antes que Moisés e o Messias o inscrevessem na primeira linha da tábua de sua lei”.

O apóstolo São Paulo diz: “O fim de todo preceito e de todos os preceitos reunidos é a caridade”, e por fim não se deve entender o término ou a aniquilação, mas a finalidade ou a tendência. O mesmo Apóstolo diz novamente: “O amor é a plenitude da lei”. E o Salmista: “O teu mandamento é amplo, ó Senhor, diz ele, e nele estão encerrados todos os outros mandamentos”. Várias coisas são necessárias para bem amar a Deus: a memória dos benefícios divinos para conosco; uma ideia justa do objeto e da excelência desse amor que se funde com o pensamento presente de que Deus é infinitamente maior que nosso coração, e que, consequentemente, todos os nossos esforços e todas as nossas faculdades são débeis para oferecer um culto digno a Ele. Glorifique o Senhor o quanto puder, diz o Eclesiástico, sua glória é grandíssima, e sua magnificência está além de toda admiração e todo louvor; enfim, a renúncia ao mundo e a fuga absoluta de todo pecado, pelo menos o mortal, são necessárias, porque o amor a Deus não pode existir no mal, e ninguém pode servir a dois senhores. O que faz Santo Agostinho dizer:

“Senhor, este não te ama o suficiente, cujo amor se apega à criatura”.

E São Jerônimo diz:

“É preciso ser avarento em excesso para não se contentar com o grande bem do amor de Deus”.

O amor de Deus não pode andar com o pecado. O soberbo sobretudo, e aquele que coloca a vanglória no primeiro lugar em sua estima, não pode amar a Deus como Ele merece, pois muitas vezes prefere um grão de areia a Ele. O que dizer do voluptuoso, que deixa – por um amor fugaz e carnal da criatura – o amor permanente ao Criador? O que dizer, enfim, do avarento, que se faz deus do seu tesouro e, assim, negligencia o Autor de todo o verdadeiro bem?

         Jesus acrescenta, não que o segundo mandamento seja igual ao primeiro, mas apenas que é semelhante a ele, ou seja, não é a mesma coisa. Entre Deus, nós e o próximo, há uma progressão de amor ordenado, e se não igual, pelo menos semelhante. Assim, o segundo mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, não significa que devemos amar o nosso próximo como igual a nós mesmos, mas do mesmo modo. Devemos desejar e obter para o próximo, como para nós, se estiver em nosso poder, a justiça, a salvação, a graça de Deus neste mundo e sua glória no outro, enfim, a felicidade espiritual a que tendemos. Mas para evitar confusão, e como em todas as coisas semelhantes é necessária uma certa ordem, o homem deve preferir-se ao próximo e provar seu amor a ele, mostrando precisamente que o que ele quer para os outros, ele quer primeiro para si mesmo. É assim que o segundo mandamento é semelhante ao primeiro, que continua sendo o mais importante segundo a palavra do Salvador. O amor que temos ao próximo vem do nosso amor a Deus que o criou assim como a nós, com as mesmas faculdades e para os mesmos fins. É por isso que o apóstolo São Paulo diz: “Quem ama o próximo cumpre a Lei”, mas somente neste sentido que o efeito deve sempre remontar à causa que o produz. O amor de Deus é a fonte do amor ao próximo e o amor ao próximo é a prova a todos os olhos do amor que temos por Deus. Esta explicação justifica suficientemente o Salvador por ter unido os dois mandamentos sem confundi-los. São Gregório diz:

“Nosso amor a Deus gera nosso amor ao próximo, e nosso amor ao próximo alimenta o amor que temos a Deus”.

É assim que o amor que temos por nós mesmos deve preceder o amor que devemos ter ao nosso próximo e servir de fundamento sólido para ele. E Santo Agostinho acrescenta, no mesmo sentido:

“Somente depois de perceber que realmente amas a ti mesmo, que poderás confiar sem perigo ao teu próximo, que te é ordenado a amar como amas a ti”.

         Santo Agostinho também acrescenta dizendo:

“A palavra ‘próximo’ inclui todos os homens sem exceção, porque não temos permissão para fazer o mal a nenhum de nossos semelhantes. Aquele que ama seus semelhantes deve amá-los porque são justos ou visando à sua justificação. É assim que cada um deve se amar, seja porque é justo, seja na esperança e na intenção de sê-lo. É também assim que todos poderão amar o próximo como a si mesmos, sem medo do pecado”.

         O próximo deve ser amado por causa de Deus, de quem é imagem e criatura como nós. Devemos amá-lo e estar inclinados a fazer-lhe bem material, mas sobretudo devemos abster-nos de lhe causar qualquer mal. Devemos amá-lo acima de tudo em vista de sua alma e de sua salvação. Devemos amá-lo como homem, apenas por sua natureza semelhante à nossa, sem que ele esteja unido a nós por laços de parentesco ou de convívio. O homem, amando assim o próximo, deve naturalmente amar a si mesmo dessas quatro maneiras, segundo o princípio de uma caridade perfeitamente ordenada. A primeira, segundo a causa final, porque ama por amor a Deus. A segunda, segundo a causa material, porque devemos desejar todo o bem. A terceira, segundo a causa formal, amando menos que a Deus, porém mais que as coisas temporais. A quarta, segundo a causa eficiente, que é o que impele o amor. Deste modo devemos amar o próximo. Para marcar a progressão ou a ordem de que falamos, notemos aqui, com Santo Agostinho, que devemos primeiro amar a Deus, para então amar nossa própria alma e finalmente amar a alma de nossos companheiros. Notemos também que o amor ao próximo não existe, ou que falsamente usurpa este nome, onde há um obstáculo ao amor de Deus; onde esse chamado amor nos levaria a fazer algo contrário ao amor que devemos a Deus; onde houver respeito humano e preferência ou parcialidade de nossa parte como amizades.

Jesus acrescenta: “Estes dois mandamentos contêm toda a Lei e os Profetas”. De fato, o primeiro mandamento abrange todos os mandamentos da primeira Tábua da Lei, assim como o segundo mandamento contém em si todos os do segundo. De fato, aquele que verdadeiramente ama a Deus, nunca toma seu nome em vão e santifica o dia de sábado, isto é, o domingo da Nova Lei. E quem ama verdadeiramente o próximo honra seu pai e sua mãe; não é assassino, nem fornicador, nem ladrão, nem cobiça da esposa dos outros.

São Crisóstomo diz:

“Assim como o ódio é a fonte de todo mal, o amor é a fonte fecunda de todo bem. Se o amor que devemos a Deus se relaciona com as três faculdades principais de nossa alma, abrangendo assim todo o nosso ser, o amor que devemos ao próximo se resume em dois preceitos, um positivo, outro negativo, dirigido a todas as nossas faculdades, tanto interior como exterior, a todos os nossos movimentos de virtude que nos conduzem ativamente para o bem, ou nos fazem abster de qualquer ato prejudicial aos nossos semelhantes. Assim, o preceito de fazer o bem e, por conseguinte, a obrigação de abster-se do mal é o amor ao próximo e toda essa caridade remonta a Deus”.

         Óh caridade! regra suprema da ordem dos eleitos, lei universal cujo império é reconhecido em toda parte, lei principal e anterior a toda lei escrita, lei gravada no coração do homem pela mão de seu Criador, lei natural e divina de todos os tempos, virtude das virtudes, ordenança suprema do Criador para conservar a sua criatura, lei que Deus se dignou a promulgar, ensinar e observar pessoalmente na terra, vós sois esta lei do Senhor, de que fala o salmista, que converte as almas, esta lei mãe que, contendo em germe todas as outras leis, sobreviverá ao mundo para fazer a felicidade do céu, e todas as outras terão desaparecidas.

         Os judeus procuraram testar Jesus, porque o tomaram por um homem puro, diz São Crisóstomo:

“Eles teriam se abstido dessa maneira de agir em relação a Ele, se tivessem acreditado em sua divindade”.

Jesus, querendo provar-lhes que era Deus, questiona-os por sua vez, para levá-los a ter uma ideia justa do Cristo que esperavam. Às vésperas de sua paixão, era importante destruir o erro dos judeus que pensavam que Cristo seria apenas o filho de Davi. E, como diz São Jerônimo:

“Se eles levantam aqui uma questão que Ele resolve, é para tornar os judeus indesculpáveis ​​por tê-Lo entendido mal e para que sua cegueira não Lhe seja imputada”.

         Agora, reunidos os fariseus, Jesus os questiona nestes termos: “O que achais de Cristo? De quem é filho?” É como se Ele lhes dissesse: “Até agora satisfiz vossas perguntas; agora é minha vez de questiona-lhes”.

         Como eles não acreditavam que estavam na presença de Cristo, Jesus os questiona não tanto para aprender seus pensamentos sobre esse ponto importante, mas para observá-los e combatê-los. Porque o inspirado Davi fez dizer o Senhor: “Colocarei em seu trono um filho que nascerá de ti”, os fariseus responderam a Jesus: “O Cristo que há de vir será um filho de Davi”. Cristo, de fato, seria o filho de Davi, segundo a carne, e esta passagem prova isso. Mas Jesus lhes disse: “Como então Davi, em outra passagem cheia de inspiração não menos evidente, chama Cristo de seu Senhor, dizendo: ‘Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita até que reduzas os teus inimigos a usar para como escabelo a teus pés’”. Nenhum pai pode falar nestes termos a um descendente. Se Davi chama aquele que se sentará em seu trono de Senhor, como ele é seu filho? Note que, na mente dos judeus, esse filho não existia no momento em que Davi falou, e então as palavras que o colocam antecipadamente à direita de Deus, o dão a nós como o Filho do Eterno, existindo desde toda a eternidade, e significa a grande vitória de Cristo sobre a incredulidade de todas as nações da terra. Como o que Jesus acabara de dizer era irrefutável, ninguém O respondeu, e ninguém mais se atreveu a interrogá-lo com o objetivo de constrangê-lo aos olhos de toda a nação. Diz São Jerônimo:

“É por isso que passam das palavras aos atos, apoderam-se dele e o entregam, indefeso e sem causa, aos romanos, como inimigo em seus domínios”.

Este exemplo nos prova que podemos impor certo silêncio à inveja, mas que não se acalma seu veneno tão facilmente.