segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Vita Christi - XII Domingo depois de Pentecostes - Ludolfo da Saxônia, O.Cart.


O nosso divino Mestre tinha explicado as razões pelas quais Deus esconde os mistérios da fé e os segredos da sua sabedoria divina aos soberbos e os revela aos humildes; e, por conseguinte, abandonando os judeus à sua cegueira, tinha iluminado os discípulos, porque eram pequenos e humildes, e tinha-lhes revelado o mistério da sua vinda. Por isso, proclamou-os bem-aventurados, porque neles se cumpriram as promessas feitas aos antigos patriarcas. “Bem-aventurados os olhos que veem o que vós vedes”. De fato, são bem-aventurados, porque foram considerados dignos de ver Jesus Cristo não só com os olhos exteriores do corpo, mas também com os olhos interiores da inteligência. Aqueles que veem Cristo, o Filho de Deus, pela fé, nascida e formada pelo amor, são felizes neste mundo pela esperança e, se perseverarem, serão felizes no outro, de fato e na realidade. Depois acrescenta: “Em verdade vos digo que muitos profetas e reis desejaram ver o que vedes e não o viram, ouvir o que ouvis e não o ouviram”. Profetas, isto é, pessoas poderosas em conhecimento, e reis ou justos poderosos em santidade, pois São Lucas chama reis àqueles a quem São Mateus chama justos, e de fato são grandes reis, pois souberam triunfar sobre todas as tentações e governar como quiseram as paixões e inclinações da natureza. Esses profetas e justos desejavam ver e ouvir o que os discípulos tinham visto e ouvido, e da mesma maneira, mas foram privados dessa vantagem. Os discípulos, de fato, não só viram Jesus Cristo com os olhos do corpo na sua humanidade, mas descobriram interiormente a divindade escondida sob o exterior humano na sua pessoa; não só ouviram a sua voz e as suas instruções, mas abraçaram a sua doutrina com o ardor da sua fé. Os profetas, por outro lado, e os patriarcas viram o Salvador apenas à distância, como uma figura, através dos véus da fé e como num espelho, e não corporalmente como os apóstolos. Jesus Cristo não felicita os seus discípulos pelo fato de terem gozado da sua presença corporal, pois os judeus também gozaram dessa presença e, no entanto, persistiram na sua incredulidade; mas felicita-os pelo fato de, descobrindo a sua divindade oculta, terem acreditado nele e o terem adorado como Filho de Deus. Como eles, também nós podemos merecer ser proclamados bem-aventurados, pois, embora já não possamos ver o Salvador com os olhos do corpo na sua humanidade, podemos olhá-lo com os olhos do espírito e, tendo-o contemplado através das obscuridades da fé nesta vida, vê-lo-emos face a face na eternidade. Notemos aqui que Jesus Cristo se manifesta de quatro maneiras diferentes. Primeiro, aos olhos do corpo, através da sua humanidade, mas esta visão não é a verdadeira felicidade, pois judeus e gentios podem ter visto Jesus Cristo durante a sua vida mortal, mas nem por isso foram menos condenados. Em segundo lugar, pela fé; de fato, desta visão material nasce no nosso coração uma claridade, um sentimento interior que nos faz crer que Jesus Cristo é verdadeiramente o Filho de Deus. “Porque me viste” - disse o Salvador ao apóstolo São Tomé – “acreditaste”; como se dissesse: “Porque tocaste o meu corpo, porque sentiste as cicatrizes das minhas chagas, a fé iluminou o teu coração e creste em mim”. Esta fé não é ainda a verdadeira bem-aventurança, é apenas o caminho que nos conduz a ela. Em terceiro lugar, Jesus Cristo manifesta-se à alma pela contemplação ou pelo êxtase; este sentimento de devoção afetuosa faz-nos sentir, é verdade, a doçura do Senhor, mas não é ainda a bem-aventurança celeste, é apenas o seu antegozo. Em quarto lugar, Jesus Cristo manifesta-se na sua glória, mostrando-se aos eleitos tal como é, e esta visão trará a suprema felicidade ao entendimento, assim como a caridade perfeita trará a suprema felicidade à vontade.

Enquanto o Salvador falava assim com os seus discípulos, um doutor da lei, que interpretava melhor o sentido literal das Escrituras do que o seu sentido espiritual e oculto, levantou-se e dirigiu-se a Jesus, dizendo-lhe como que para o tentar: “Mestre, que devo fazer para obter a vida eterna?”. Este doutor levantou-se para se fazer entender, ou melhor, para chamar a atenção e glorificar-se aos olhos dos presentes. Interrogou Jesus, não para aprender, mas para o pôr à prova e com a intenção maliciosa de criticar a sua resposta. Chamou-lhe Mestre e não Senhor, porque, embora estivesse disposto a aprender por aprender, não queria dobrar a sua mente sob o jugo da obediência. Ao chamar Mestre àquele de quem não quer ser discípulo, representa-nos os cristãos que se comprazem em elogiar a conduta dos santos, mas que não têm a coragem de os imitar. Diz, e com razão, “que devo fazer”, pois não é aos que ouvem, mas aos que cumprem a lei que está reservado o céu, o reino de Deus não é prêmio de belas palavras, mas de boas obras. Então Jesus disse-lhe: “O que está escrito e o que lês na lei?”. Esta lei divina, que está acima de todas as outras no que diz respeito à vida eterna, esta lei sobre a qual seremos examinados, sobre a qual teremos de responder no grande dia do juízo, de acordo com as palavras do Apóstolo: “Aqueles que violam a lei serão punidos de acordo com a lei”. Apliquemo-nos, pois, a estudar esta lei, sobre a qual seremos julgados, seguindo o exemplo do homem justo de que fala o Salmista, que meditava noite e dia na lei do Senhor. Diz São Jerônimo:

“Mas, infelizmente nos nossos dias, as pessoas estudam os decretos e ordenações dos imperadores e negligenciam os preceitos de Jesus Cristo. Preferem as leis humanas ao Evangelho, que desprezam”.

Diz São Beda:

“Esse doutor pergunta a Jesus Cristo sobre a vida eterna, na esperança de que Ele responda contrariamente à lei mosaica, mas o Salvador o confunde usando, em sua resposta, as próprias palavras de Moisés, e assim nos mostra que os contemporâneos da fé católica serão confundidos por sua própria lei; os judeus, pelas Escrituras; os muçulmanos, pela própria lei de Maomé”.

O doutor respondeu-lhe então dizendo o que lia na lei, mas não o que punha em prática: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de todas as tuas forças”. “Amarás o Senhor”, porque Ele te criou pelo seu poder; “o teu Deus”, porque Ele te ensinou pela sua sabedoria; Ele é teu, porque, por efeito da sua bondade, te redimiu e te fez um dos seus filhos. “Amá-lo-ás com todo o teu coração”, isto é, com toda a força da tua vontade, porque – assim como do coração partem os movimentos de todas as outras partes do corpo – assim também a vontade é o princípio de todas as operações da alma. “Amá-lo-ás com toda a tua alma”, isto é, com todo o ardor sensível que se desperta na alma por efeito da vontade; “amá-lo-ás com toda a tua mente”, isto é, com toda a força da inteligência, que também é movida pela vontade a aderir a todos os artigos de fé, a refletir em Deus e a meditar nas obras divinas. Por fim, “amá-lo-eis com todas as vossas forças”, isto é, com todas as potências motrizes e executivas que, despertadas no homem pela vontade, o levam a realizar com amor e prontidão todas as obras agradáveis a Deus. Diz São Máximo:

“A lei divina prescreve três modos pelos quais devemos amar a Deus, que nos distanciam das três grandes tentações a que estamos expostos neste mundo, e que Jesus Cristo quis pôr à prova, a saber: O amor das riquezas, o amor da glória e o amor dos prazeres sensuais”.

Deves, pois, “amar o teu próximo”, isto é, todos os homens como a ti mesmo, com o mesmo afeto e ternura com que te amas a ti mesmo, procurando obter-lhes todas as graças neste mundo e a glória eterna no outro. Diz São Basílio:

“O primeiro e principal mandamento consiste no amor a Deus, e o segundo, que é apenas o complemento do primeiro, consiste no amor ao próximo”.

Diz São Crisóstomo:

“Reparai que o nosso Salvador coloca, por assim dizer, no mesmo plano e recomenda com o mesmo ardor a prática dos dois preceitos do amor de Deus e do amor do próximo. Falando do primeiro, Ele diz: ‘Amarás a Deus de todo o teu coração’, e do segundo ele diz: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Se observássemos atentamente este duplo preceito, já não haveria distinção entre o senhor e o escravo, entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, e o pecado permaneceria desconhecido cá em baixo, porque este duplo amor de Deus e do próximo, que vive no coração do homem, torna-o invulnerável a todos os ataques do demônio, e seria mais fácil uma palha resistir ao fogo do que o pecado apagar o ardor desta caridade”.

Diz São Gregório:

“Está escrito que deves amar o teu próximo como a ti mesmo, pois como poderia ser bom e compassivo para com os outros aquele que é bastante cruel para consigo mesmo para viver no pecado?”.

Jesus disse-lhe: “Respondeste perfeitamente, faze isto e viverás”, ou seja, ama a Deus e ama o teu próximo. Jesus disse: “faze isto”, porque não basta amar, é preciso demonstrar esse amor com atos. As obras são a prova mais evidente do amor: “Fazei isto e vivereis para sempre”. O amor a Deus e o amor ao próximo é o caminho que conduz infalivelmente à vida eterna, mas vós contentais-vos em dizer e não fazeis nada, e é por isso que não o conseguis. O doutor, querendo justificar-se, isto é, parecer justo aos olhos dos outros, e pensando, além disso, que estava a falar a um homem comum que só vê o exterior e não a Deus que penetra no fundo dos corações, disse a Jesus: “Mas quem é o meu próximo?” Ao fazê-lo, prova contra si próprio que o amor ao próximo não está nele, pois admite não o conhecer. Talvez tenha imaginado que Jesus lhe diria que os judeus eram o seu próximo e que ele poderia então responder que amava Deus e os judeus, e assim pareceria justo aos olhos dos homens. Então Jesus ergueu os olhos e contou-lhe a parábola de um homem que ia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos ladrões. Jesus levanta os olhos para o céu para nos mostrar que vai falar de coisas sérias e importantes, nomeadamente da queda do homem que, devido ao seu pecado, foi expulso do paraíso terrestre. Alguns autores afirmam que se trata apenas de uma parábola; outros, pelo contrário, pensam que o Salvador está a contar um acontecimento que teve lugar, com base no fato de que, entre Jerusalém e Jericó, havia um deserto onde os viajantes eram frequentemente atacados, roubados, maltratados e, por vezes, mortos por ladrões que aí se tinham escondido. No sentido alegórico, este homem que caiu nas mãos dos ladrões representa todo o gênero humano. De fato, o gênero humano, na pessoa dos nossos primeiros pais, desceu de Jerusalém, que significa visão de paz, ou seja, do paraíso terrestre onde gozava da paz e da felicidade divina, e veio para Jericó, que significa lua, ou seja, mutabilidade e inconstância. Por outras palavras, como castigo pelo seu pecado, o homem foi expulso do paraíso, onde devia estar a contemplar as obras de Deus num estado de paz e felicidade, e foi lançado nesta terra de exílio, cheia de inconstância, miséria e tribulação. Caiu nas mãos dos ladrões, isto é, no poder dos demônios, e foi submetido às tentações da carne, das quais teria sido isento, se não fosse o seu orgulho que o tornou culpado; pois, como diz a Escritura, o coração orgulhoso prepara a sua própria ruína e destruição eterna. Os ladrões, ou demônios, despojaram-no do seu manto de inocência e imortalidade. Ele sabia então que estava nu; mas Deus o vestiu com peles de animais, que constantemente o lembravam do estado de mortalidade a que estava agora reduzido. Tendo-o coberto de feridas e chagas por causa dos pecados que o fizeram cometer e tendo enfraquecido as suas boas qualidades naturais, os demônios retiraram-se; não deixaram de o perseguir por essa razão, mas atacaram-no de uma forma mais oculta. Primeiro, o demônio, disfarçado de serpente, apresentou-se visivelmente ao homem para o seduzir, mas depois só lhe preparou armadilhas secretas e ocultas. “Deixaram-no meio morto”; de fato, embora pelo pecado o homem tivesse perdido o privilégio da imortalidade, conservava, no entanto, luzes suficientes através das quais podia ainda conhecer Deus e voltar para Ele.

Diz São Beda:

“O demônio deixou o homem meio morto, roubando-lhe, pelo pecado, a imortalidade bem-aventurada a que estava destinado, mas não pôde privá-lo do uso da razão, com a qual pode ainda conhecer Deus e voltar a Ele”.

Diz São Teófilo:

“O homem é imortal na sua alma e mortal no seu corpo; mas quando, pelo pecado, perdeu a imortalidade da sua alma e conserva apenas a vida do seu corpo, está apenas meio vivo”.

Diz Santo Agostinho:

“Está meio morto aquele que conserva apenas a vida natural, mas cujo livre arbítrio está tão enfraquecido pelo pecado que já não pode recuperar a vida eterna que perdeu”.

Por isso se diz que ele estava deitado no chão, porque já não tinha forças para se levantar e recorrer ao verdadeiro médico, Deus, o único que o podia curar. Ou ainda: os demônios deixaram o homem meio morto, tendo-lhe tirado a vida da graça, deixando-o apenas com a vida natural, segundo a linguagem do apóstolo: “Já não vivo”, ou melhor, já não sou eu que vivo a vida do crime, “mas é Jesus Cristo que vive em mim”, vive em mim a vida da graça. Porque Deus criou o homem à sua imagem, dando-lhe a razão, e à sua semelhança, transmitindo-lhe o seu amor, para que pelo amor e pelo entendimento se unisse a Deus, e por esta união gozasse da mais alta felicidade. Mas o demônio, invejoso dos privilégios e da felicidade do homem, ataca-o tanto no seu amor como na sua inteligência: no seu amor, corrompendo o seu coração com a concupiscência do mal; na sua inteligência, esquecendo e ignorando o bem. No entanto, o homem ainda estava meio vivo, pois se o demônio podia corromper o seu coração a ponto de o tornar incapaz de amar o bem, não podia obscurecer a sua razão e a sua inteligência a ponto de o privar da capacidade de conhecer qualquer verdade.

Ora, um sacerdote e um levita iam pelo mesmo caminho, mas quando viram este infeliz despido e coberto de chagas, passaram sem se preocuparem em ajudá-lo. Isto mostra-nos que os sacerdotes e os ministros da antiga lei só podiam fazer conhecer os pecados, mas eram impotentes para os curar, porque o sangue dos bodes e dos touros, que ofereciam a Deus como sacrifícios, era insuficiente para lavar os crimes dos homens. Ou ainda, pelo sacerdote e pelo levita podemos entender a Lei e os profetas, que se contentavam em apontar e repreender os pecados, mas não os curavam. Passou então um samaritano, isto é, Jesus Cristo, o verdadeiro guardião das almas durante a peregrinação desta vida; aproximou-se do homem ferido, fazendo-se semelhante a ele pela sua Encarnação; ao ver a sua miséria, compadeceu-se e, na sua bondade, atou-lhe as feridas, envolvendo-o com as suas graças e repreendendo os seus pecados. Derrama sobre as suas feridas o óleo da doçura, fazendo-o esperar o perdão dos seus crimes, e o vinho da compunção, inspirando-lhe o temor dos castigos que lhes estão reservados. O Salvador ata as feridas dos pecadores quando lhes diz: “Fazei penitência”; deita-lhes óleo nas feridas quando diz: “O reino dos céus será a recompensa do vosso arrependimento”; e vinho quando diz: “Toda a árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo”. Jesus Cristo quis também ensinar-nos como devemos tratar os pecadores que se aproximam da resignação. Fazemos-lhes ataduras nas feridas quando lhes ordenamos que se abstenham de todo o mal; deitamos-lhes óleo quando os consolamos e lhes prometemos o perdão dos seus pecados; deitamos-lhes vinho quando lhes prescrevemos o jejum e a mortificação dos sentidos. Nunca devemos esquecer que o vinho deve ser combinado com o óleo e o óleo com o vinho, por isso São Gregório diz:

“Devemos combinar a doçura com a severidade e temperar uma com a outra, para que os pecadores não sejam desencorajados nem desanimados por demasiado rigor, nem abatidos por demasiada indulgência”.

Diz São Bernardo:

“Castigar sempre é crueldade; usar sempre de misericórdia é fraqueza, mas quem sabe temperar a severidade com a doçura é digno de louvor”.

O samaritano tomou então nos braços o homem ferido, colocou-o sobre o seu cavalo e conduziu-o à estalagem, onde cuidou dele. O cavalo do samaritano representa a humanidade de Jesus Cristo, sob a qual Ele se digna vir até nós e que, no seu corpo, carregou os nossos pecados no madeiro da cruz, ou que, segundo uma outra parábola, carrega aos ombros a ovelha perdida para a reconduzir ao redil. E leva-a para a estalagem. De fato, Jesus conduz o pecador para o seio da sua Igreja, onde, depois de ter sido aliviado do peso dos seus crimes, pode descansar da fatiga da viagem e reparar as suas forças com um alimento saudável. A Igreja não é referida aqui como morada ou casa, mas como estalagem, ou lugar de passagem, ensinando-nos, por um lado, que está destinada a receber-nos na nossa miséria e imperfeição espiritual, e, por outro, que é apenas um lugar de exilio ao qual o homem não se deve apegar e deve ansiar incessantemente pela sua verdadeira pátria. Mas, no dia seguinte, isto é, depois da sua ressurreição, quando tinha realizado a obra de redenção da humanidade, deu dois denários, isto é, os dois Testamentos, nos quais estavam inscritos o nome e a imagem do Rei eterno, e que deviam servir para pagar a nossa cura. Deu-os ao estalajadeiro, ou seja, aos seus apóstolos, a quem revelou o conhecimento das Sagradas Escrituras para que pudessem ensinar e instruir o povo, bem como aos prelados e àqueles que são chamados a governar a sua Igreja e a cuidar dos pecadores. Além disso, ordenou-lhes que acrescentassem dos seus próprios meios o que fosse necessário. Isto mostra-nos que os pregadores não devem contentar-se em anunciar as verdades contidas nos dois Testamentos, mas devem também servir-se da tradição, dos escritos dos santos mestres que os precederam, das suas próprias inspirações, numa palavra, fazer tudo o que for possível para a conversão dos pecadores. Aquele que, seguindo o exemplo dos apóstolos, prega livremente a santa doutrina aos homens, sem esperar ou receber deles qualquer recompensa temporal, também dá dos seus próprios recursos. Também dá dos seus, aquele que não só cumpre em tudo os mandamentos de Deus, mas também observa os conselhos evangélicos. Assim, no grande dia do juízo, quando o soberano Mestre vier retribuir a cada um segundo as suas obras, dirigir-se-á ao bom servo e dir-lhe-á: “Porque foste fiel nas pequenas coisas, far-te-ei senhor de coisas maiores, entra na alegria do teu Senhor e Mestre”. Todo o homem culpado de pecados mortais desce, por assim dizer, de Jerusalém para Jericó, isto é, deixa Deus, que é a nossa paz e o nosso soberano bem, para se agarrar a bens frágeis e perecíveis. Quando assim cai nas mãos dos seus inimigos, que são os demônios, quando está despojado, coberto de feridas, abandonado, que lhe resta senão a oração? Peçamos, pois, ao verdadeiro samaritano, ao guardião das nossas almas, Jesus, nosso divino Redentor, que venha ao caminho onde definhamos, que afaste de nós os demônios, que nos restitua a graça de que nos roubaram, que cure as nossas feridas, que reavive em nós a vida que está prestes a escapar, e que nos conduza com Ele à Jerusalém celeste.

Em sentido moral, este homem que desce de Jerusalém para Jericó é a figura do pecador que cai do estado de justiça no pecado; os ladrões são os demônios que lhe roubam a graça que é a verdadeira vida e o deixam apenas com a vida natural do corpo. O sacerdote e o levita que ignoram isto são os maus ministros da Igreja; o samaritano representa o bom confessor ou pregador, que, movido pela compaixão, se aproxima do pecador, ata as suas feridas dando-lhe conselhos bons e salutares, derrama sobre as suas feridas o óleo da misericórdia e o vinho da justiça, depois conduz o pecador à estalagem, isto é, à Igreja, onde recebe o pão da palavra divina e o da santa Eucaristia, que representam a graça nesta vida e a glória eterna na outra. Finalmente, o estalajadeiro é o pastor em cujas mãos o pecador é colocado e que, por sua vez, deve fazer progressos e suprir o que falta para a sua completa recuperação, tendo em vista as recompensas eternas que são prometidas ao seu zelo e devoção.

Depois desta parábola, Jesus perguntou ao doutor que o tinha interrogado primeiro qual dos três era o próximo do homem que tinha caído nas mãos dos ladrões. Diz São Cirilo:

“Nem o sacerdote, nem o levita eram os próximos desse infeliz, mas sim quem o ajudou. A dignidade do sacerdócio e o conhecimento das Sagradas Escrituras são inúteis se não forem confirmados pelas boas obras”.

Diz São Beda:

“Destas palavras do nosso divino Mestre resulta que só é verdadeiramente nosso próximo aquele que vem em nosso auxílio nas nossas dores e aflições, quer seja sacerdote, clérigo ou leigo, amigo ou inimigo, estrangeiro ou concidadão”.

O Salvador tirou então a conclusão natural da sua própria resposta: “Vai”, disse Ele, “e faze o mesmo”. Seguindo o exemplo do samaritano, mostra-te bondoso, generoso e compassivo para com todos os homens, mesmo para com os teus inimigos, e assim provarás que amas o teu próximo como a ti mesmo. Diz São Crisóstomo:

“Como se dissesse: se vires alguém em dificuldade, não digas: ‘É um malvado, um judeu ou um gentio’, porque, seja quem for, a partir do momento em que é um infeliz, tem direito à tua compaixão e à tua caridade”.

Jesus Cristo tirou ainda outra conclusão da resposta deste doutor: não são os laços de sangue ou de pátria, mas as obras de misericórdia que constituem o nosso próximo. Assim, se quereis cumprir este duplo preceito do amor a Deus e do amor ao próximo, amai-me, porque sou as duas coisas; esforçai-vos por socorrer os vossos irmãos nas suas necessidades, corporais ou espirituais, e provareis que sois o seu próximo. Diz São Bernardo:

“Tenho no meu coração o amor de Deus e do próximo, quando vos amo, ó doce Jesus, porque sois o meu próximo, uma vez que vos dignastes fazer-vos homem como eu e por mim; sois também o meu Deus, vós que me cumulastes de todos os vossos dons”.

De acordo com estas duas conclusões, o doutor está abertamente convencido de que não está a observar o duplo preceito do amor, pois não ama Jesus Cristo, que merece todo o nosso amor e afeto de duas maneiras. Se quisermos fomentar e manter o amor de Deus nos nossos corações, meditemos frequentemente nos benefícios com que Ele nos abençoou. A verdadeira misericórdia consiste em considerar todos os homens como nossos próximos, sejam eles quem forem, conhecidos ou estranhos, e só isso nos pode dar a vida e a felicidade eterna. É verdadeiramente vosso próximo aquele de quem vos compadeceis, mas aquele que endurece o seu coração às desgraças e aos sofrimentos dos outros não tem próximo. Este mandamento consiste no cumprimento da lei natural que nos diz para não fazermos aos outros o que não queremos que nos seja feito, e para fazermos aos outros o que queremos que nos seja feito. Diz Santo Ambrósio:

“Ninguém é mais verdadeiramente nosso próximo do que aquele que, pela sua bondade para conosco e pela sua graça, curou as nossas feridas e sarou as nossas chagas, amemos, pois, o nosso divino Salvador, amemo-lo como nosso próximo; amemo-lo como a cabeça de quem somos membros. Amemos também aqueles que seguem os seus passos, imitando as suas virtudes. Não é o parentesco mas a caridade que faz o próximo; a misericórdia está na própria natureza, e nada é mais conforme à natureza do que ir em auxílio do próximo”.

Diz Santo Agostinho:

“Enquanto estivermos nesta terra de exílio, ajudemo-nos mutuamente a suportar as nossas penas e fardos, para chegarmos à vida onde não haverá mais fadiga nem miséria. A verdadeira afeição consiste em partilhar as dores e as aflições da pessoa amada; é a marca evidente da amizade sincera e verdadeira. E se quisermos que este dever se torne doce e fácil para nós, consideremos tudo o que Deus esteve disposto a suportar por nós. Não nos diz o apóstolo S. Paulo: ‘Provai e fazei pelo vosso próximo o que Jesus Cristo quis fazer e sofrer por vós’? Lembremo-nos também de que somos homens, e que as enfermidades e doenças espirituais ou corporais que vemos nos outros podem também nos afetar e então estaremos prontos a compadecer-nos dos seus males e a ir em seu auxílio, tal como gostaríamos que os outros se comportassem para conosco se estivéssemos no seu lugar. Foi assim que agiu o grande apóstolo: ‘Fiz-me tudo para todos a fim de ganhar todos para Jesus Cristo’. Pensava que ele próprio poderia estar no estado deplorável do qual queria libertá-los. Acreditemos também que cada homem, seja ele quem for, pode ter alguma qualidade secreta, alguma virtude oculta que o torne melhor do que nós, e este pensamento bastará para abater, comprimir o nosso orgulho, excitar em nós a caridade e fazer-nos suportar não só com paciência e resignação, mas também com bom coração e alegria as imperfeições e faltas dos nossos irmãos”.

Diz São Gregório:

“Quem considera cuidadosamente tudo o que os outros têm de suportar das suas próprias faltas e imperfeições, estará mais disposto a suportar as imperfeições e faltas do seu próximo [...] A Jerusalém celeste, esta cidade dos eleitos, é formada e composta de anjos e santos. As pedras, ou melhor, as almas destinadas a entrar nesse edifício celeste, são lapidadas e polidas aqui na terra por dores, sofrimentos e tribulações de toda espécie. Num edifício material, as pedras sobrepostas apoiam-se umas às outras, e as que são apoiadas apoiam outras por sua vez. Na Igreja de Deus, portanto, os cristãos devem apoiar os seus irmãos e irmãs, se eles próprios quiserem ser apoiados pelos outros; deste modo, o edifício da verdadeira caridade é construído sobre um único fundamento, e este fundamento é o nosso divino Redentor, que, segundo o Apóstolo São Paulo, é o verdadeiro fundamento sem o qual nada pode ser construído. Este alicerce suporta tudo e não é suportado por nada; por outras palavras, só Jesus Cristo suporta todas as nossas imperfeições e faltas, e não nos deixa suportar nada d’Ele, porque Ele é a própria perfeição”.

Destas palavras de São Gregório devemos concluir que quanto mais tivermos de sofrer cá em baixo por amor de Deus em favor dos outros, mais próximos estaremos do fundamento do edifício, que é Jesus Cristo, e quanto menos tivermos de sofrer, mais longe estaremos dele. Meditemos atentamente estas palavras, e então estaremos prontos a suportar as faltas e imperfeições do nosso próximo, não só com paciência, mas também com alegria, em vista de Deus.

Diz Santo Anselmo:

“Aquele que alegra com os bens dos outros, consente com a vontade dos santos e aquele que os inveja é semelhante aos demônios. Verdadeiramente penso que é mais seguro se salvar por pouco que faça, que aquele que faça muito e tem inveja dos outros”.

Também diz Santo Anselmo:

“A caridade que recolhe e vivifica todos os membros da Igreja, quando percebe que um dos membros se alegram da queda do próximo, logo corta-o do corpo. Assim que quando não nos doemos da queda de nossos irmãos é porque estamos cortados do corpo, que se verdadeiramente estivéramos unidos na caridade, sem dúvida nos compadeceríamos, como se dói e sente o braço unido e se fora cortado nunca mais sentirá dor. E destas coisas pode o homem entender se é membro de Jesus Cristo, redentor nosso, ou se está cortado do corpo místico de sua Santa Igreja. E o que é dito da compaixão que devem uns haver de outros e da alegria que devem ter do bem, que os outros fazem, se há de entender dos bens do corpo e da alma, de modo que em tudo e por tudo amemos uns aos outros e nos procuremos ajudar em todas nossas necessidades. Isso mesmo se deve entender da concórdia e paz que há de haver entre os filhos da Igreja, porque como membros entre si mesmos, se ajudam com tanta concórdia de amor que por nenhuma razão, nem por alguma ocasião se possa entrar em desacordo. E isso mesmo se deve entender no sofrimento e paciência que devemos ter uns com os outros, para que assim como o braço sofre e padece dor para que a mão seja curada e a mão sofre para que não padeça a cabeça, assim o devemos nós fazer por caridade”.