Deus em
sua incompreensível bondade infinita, houve por bem honrar com a dignidade do
livre arbítrio as suas criaturas racionais. Destas, umas podem ser chamadas
amigos seus, outras fiéis e legítimos servos, outras de todo ponto inúteis,
outras bárbaros e apartados dele, outras seus inimigos e adversários. Amigos de
Deus são aquelas intelectuais e espirituais substâncias que com ele moram.
Servos fiéis são aqueles que, sem preguiça ou sem cansaço, obedecem a sua
santíssima vontade. Servos inúteis são aqueles que, depois de haver sido
lavados com a água do santo batismo, não guardam o que nele assentaram e
capitularam. Bárbaros são aqueles que estão arredados de sua santa fé.
Adversários e inimigos são aquelas que, não contentes de ter sacudido de si o
jugo da Lei de Deus, perseguem aos que procuram guardá-la. Cada uma destas
classes de pessoas requer especial tratado, mas o nosso propósito é tratar
somente daquelas que justamente merecem ser chamadas fidelíssimos servos de
Deus. Foram estes que, com a força potentíssima da caridade, nos impeliram a
tomar esta carga e, por obediência, sem tergiversar, estenderemos a nossa rude
mão, tomaremos a pena, molhá-la-emos na tinta da humildade, para escrever em
seus brandos e piedosos corações, como em tábuas espirituais, as palavras de
Deus. Todavia, e antes de tudo, consignemos que Deus se oferece e propõe, por
verdadeira vida e saúde, a todos os que têm vontade e livre arbítrio, sejam
fiéis ou infiéis, justos ou injustos, religiosos ou irreligiosos, seculares ou
monges, sábios ou ignorantes, sãos ou enfermos, moços ou velhos, como a
comunicação da luz, a vista do sol e o curso do tempo, que são feitos para
todos. E começaremos pelas definições de alguns vocábulos que mais aproveitam
ao nosso propósito.
Irreligioso
é a criatura racional e mortal, que por sua própria vontade foge à vida, tratando
de tal maneira com o seu Criador como se acreditara que ele não existe. Iníquo
é aquele que violentamente torce o entendimento da Lei de Deus, para
conformá-la com seu apetite e, sendo de contrário parecer, pensa que crê na
palavra de Deus. Cristão é aquele que trabalha, quanto ao homem é possível, por
imitar a Jesus Cristo, tanto em suas obras, como em suas palavras, crendo
firmemente na Santíssima Trindade. Amante de Deus é aquele que, ordenadamente e
como deve, usa de todas as coisas naturais e nunca deixa de fazer o bem que
pode. Continente é aquele que, no meio das tentações e laços, trabalha, com
todas as suas forças, para alcançar paz e tranquilidade de coração e bons costumes.
Monge é uma ordem e modo de viver de anjos, estando em corpo mortal; monge é
aquele que traz sempre os olhos da alma postos em Deus e faz oração em todo o
tempo, lugar e negócio; monge é uma perpétua contradição e violência da
natureza e uma vigilantíssima e infatigável guarda dos sentidos; monge é um
corpo casto, uma boca limpa e um ânimo esclarecido com os raios da divina luz;
monge é um ânimo aflito e triste, o qual, trazendo sempre diante dos olhos a
memória da morte, sempre se exercita na virtude.
Renúncia
e desamparo do mundo é um ódio voluntário e um abandono das coisas da natureza,
pelo desejo de gozar do sobrenatural. Todos os que abandonam voluntariamente as
comodidades, prazeres e mais bens da vida presente, devem fazê-lo, ou pela
esperança da glória futura, ou pela memória de seus pecados, ou pelo amor de
Deus. Se alguém tal fizesse por outras causas, sua renúncia seria indiscreta e
temerária, contudo, qual for o fim e termo de nossa vida, tal será o prêmio que
recebemos de Jesus Cristo, juiz e remunerador de nossos trabalhos. Aquele que
saiu do mundo para descarregar-se do peso de seus pecados, trabalhe por imitar
os que estão sobre as sepulturas chorando os mortos e não deixe de derramar
contínuas e fervorosas lágrimas e de gemer profundamente do íntimo do coração,
até que Jesus Cristo levante a pedra do sepulcro (que é a dureza do coração) e
ressuscite Lázaro (que é nosso cego espírito), livrando-o dos pecados, isto é,
ordenando aos ministros (que são os anjos) que o desatem das ataduras dos
vícios e deixem-no ir para a bem-aventurada liberdade da alma, isto é, para a
santa tranquilidade de consciência.
Todos
nós que desejamos sair do Egito e da sujeição de faraó, temos necessidade de
algum Moisés, que nos sirva de medianeiro para com Deus, o qual medianeiro,
guiando-nos por este caminho, com a ajuda, tanto de suas palavras, como de suas
obras e de sua oração, levante por nós outros as mãos para Deus, a fim de que,
guiados por tal capitão, passemos o mar dos pecados e façamos volver as espadas
a Amaleque, príncipe dos vícios. Alguns, fiados em si mesmos, acreditam não ter
necessidade de guia e ficaram enganados.
Os que saíram do Egito, tiveram
Moisés por capitão; os que saíram de Sodoma, tiveram um anjo guia. Os
primeiros, isto é, os que saíram do Egito, são figura daqueles que procuram
sanar as enfermidades de sua alma com a cura e diligência do médico espiritual,
mas os segundos, isto é, os que saíram de Sodoma, significam aqueles que,
estando cheios de imundícies e torpezas corporais, desejam grandemente ver-se
livres delas, os quais tem para isso necessidade de um homem que seja semelhante
aos anjos, porque, segundo a corrupção das chagas, assim temos necessidade de sapientíssimo
médico para a curas delas.
E,
verdadeiramente, aquele que, vestido desta carne mortal, deseja subir ao Céu,
tem necessidade de suma violência, contínuos e infatigáveis trabalhos, especialmente
nos princípios, para conseguir desabituar-se de deleites e para que o coração,
que antes era impassível ao sentimento de seus males, venha a afeiçoar-se a
Deus e a ser santificado com a castidade, mediante o atentíssimo estudo e
exercício das lágrimas e da penitência. Trabalho, grande trabalho e amargura de
penitência, eis o necessário especialmente para aqueles que estão mal
habituados, até que o nosso miserável ânimo, acostumado a carniçaria e a
guloseima dos vícios, torne-se amante da contemplação e da castidade,
ajudando-nos para isso das virtudes da simplicidade, da mortificação da ira e
de uma grande e discreta diligência. Porém, com tudo isso, nós, que somos
combatidos de vícios, conquanto não tenhamos alcançado bastantes forças contra
eles, confiemos em Jesus Cristo e, com fé firmíssima, lhe apresentemos
humildemente a fraqueza e a enfermidade de nossa alma, e, sem dúvida, alcançaremos
seu favor e graça, procurando sumir perpetuamente o nosso merecimento no abismo
da humildade. Saibam com certeza os que nesta formosa, dura e arriscada batalha
entram, que vão meter-se em um fogo, se desejam inflamar seu coração com o fogo
do divino amor. Portanto, prove cada um a si mesmo, e desta maneira chegue-se a
comer deste pão com amargura e a beber deste suavíssimo cálix com lágrimas, a
fim de que não entre nesta milícia para seu juízo e condenação. Se é verdade
que nem todos os batizados se salvam, vigiemos com temor e atenção, que não
corram também este mesmo perigo os que professam em Religião. Por isso, os que
desejam fazer firme fundamento de virtude, todas as coisas deste mundo negarão,
todas desprezarão, todas porão debaixo dos pés e todas examinarão; e, para que
este fundamento seja tal, há de ter três colunas com que se sustente, as quais
são: jejum, castidade e inocência. Todos os que são principiantes em Jesus Cristo,
começaram por estas três coisas, tomando para exemplo os que são crianças na
idade, pois, nas criancinhas, não há dobrez, nem dureza de coração, nem
fingimento, nem desmedida cobiça, nem ventre insaciável, nem movimento de
vícios desonestos, porque de um se segue o outro e, conforme a cheia dos
manjares, assim se acende o fogo da luxúria.
É coisa
aborrecida e mui perigosa que aquele que começa, comece com frouxidão e
brandura, porque sói ser isto indício manifesto de futura queda. Por isto, é
coisa mui proveitosa começar com grande ânimo e fervor, ainda que depois seja
necessário conter algum tanto rigor.
A alma
que começou a pelejar varonilmente e depois algum tanto se debilitou e
enfraqueceu, muitas vezes é ferida e provocada ao bem com a memória da antiga
virtude, e diligência, como com um aguilhão e açoite, e alguns, por estes
caminhos, voltaram ao passado vigor e renovaram as primeiras asas.
Tantas
quantas vezes a alma se achar fora de si, por haver perdido aquele benemérito e
amável calor da caridade, faça diligente inquirição, investigue por que causa o
perdeu e arme-se contra essa causa com todas as suas forças, porque não poderá
introduzi-lo por outra porta que não seja aquela por onde saiu.
Aqueles
que, somente por temor, começam o caminho da renúncia, por ventura parecerão
semelhantes ao incenso que se queima, o qual ao princípio cheira muito e depois
para em fumaça; aqueles que, somente tendo em vista o galardão, sem outro
móvel, se resolvem a isto, são como pedra de atafona, que sempre anda no mesmo
sítio, sem dar passo adiante, nem aproveitar mais. Mas, aqueles que deixaram o
mundo só por amor de Deus, estes, desde logo, mereceram o acrescentamento deste
fogo, que, como se estivesse no meio de um grande bosque, sempre vai alastrando
cada vez mais.
Há uns
que edificam com pedras sobre ladrilhos; há outros que sobre terra levantam
colunas; há outros que caminham a pé, esquentados os membros e nervos, mais
ligeiramente andam. Quem lê, entenda o que significa esta parábola. Os
primeiros, isto é, aqueles que sobre ladrilhos assentam pedras, são aqueles que
sobre excelentes obras de virtudes se elevam a contemplação das coisas divinas,
mas que, não estando bem fundados em humildade e paciência, caem, por alta de
segurança nos alicerces, quando se desencadeia uma grande tempestade. Os
segundos, que sobre terra edificam colunas, são aqueles que depois de haver
passado pelos exercícios e trabalhos da vida monástica, querem logo voar a vida
solitária, os quais, por falta de virtude e de experiência, são facilmente
enganados por inimigos invisíveis. Os terceiros são aqueles que pouco a pouco
caminham a pé com humildade, debaixo de obediência, nos quais o Senhor infunde
o espírito da caridade, com a qual, inflamados e esforçados, acabam
prosperamente o caminho.
E já
que somos chamados por Deus, que é nosso Rei e Senhor, corramos alegremente,
para que, se por ventura o prazo de nossa vida for curto, não nos achemos estéreis
e pobres a hora da morte e não venhamos a morrer de fome. Procuremos agradar
nosso Rei e Senhor, como os soldados ao seu; porque, depois de professados
nesta milícia, mais estreita conta se nos há de pedir. Temamos a Deus, ao menos
como os homens temem alguns animais ferozes, pois, vi alguns que, querendo
furtar, deixaram de fazê-lo, não por temor de Deus, mas de medo dos cães que ladravam,
de modo que aquilo que não foi evitado pelo temor de Deus, o foi pelo temor dos
cães. Amemos a Deus, ao menos como amamos aos amigos, pois, também vi muitas
vezes alguns que, havendo ofendido a Deus e provocado a sua ira, nenhum cuidado
tiveram de recuperar sua amizade com a mínima ofensa, trabalharam com toda a
diligência e indústria, e com toda a aflição e confissão de sua culpa, para
reconciliarem-se, metendo neste empenho terceiros, dentre outros amigos e
parentes, e oferecendo muitas dádivas e presentes.
No
princípio da renúncia não se praticam as virtudes sem trabalho, amargura e
violência, mas, depois que começamos a aproveitar, com muita pouca ou nenhuma
tristeza as praticamos, e depois que a natureza está já absorvida e vencida com
o favor e alegria do Espírito Santo, então obramos já com gozo, alegria,
diligência e fervor na caridade. Quanto mais dignos são de louvor os que, logo
ao princípio, abraçam as virtudes e cumprem os mandamentos de Deus com fervor e
alegria, tanto são mais de chorar os que, tendo vivido muito neste exercício,
as exercitam com trabalho e pesadume, se porventura as exercitam.
Não
devemos condenar aquelas maneiras de renúncia, que parecem ter sido feitas por acaso,
pois, tenho visto alguns delinquentes que, fugindo, encontraram por acaso o
Rei, foram recebidos em seu serviço, contados entre seus cavalheiros e
recebidos em seu palácio e a sua mesa. Vi também algumas vezes caírem,
descuidadamente, alguns grãos de trigo da mão do semeador, os quais se apoderaram
muito bem da terra e vieram depois dar grande fruto. Vi também alguns irem a
casa do médico para outro negócio, os quais acertaram em receber nela saúde que
não tinham e recuperam a vista quase perdida. E deste modo acontece, que,
algumas vezes, são mais firmes e estáveis as coisas que sucedem sem nossa
vontade do que as que de propósito tivessem sido feitas.
Ninguém,
considerando os seus muitos pecados, diga que é indigno da profissão e vida dos
monges, nem se engane com esta cor e aparência de humildade, para deixar de
seguir a senda estreita da virtude e dar-se a vícios: isto é embuste do demônio
e ocasião para perseverar nos pecados. Aliás, onde as chagas estão mais
fistulosas e purulentas, aí é assinaladamente necessária a diligência e
destreza de sábio médico.
Se um
rei mortal e terreno, nos chamando a seu serviço ou a sua milícia, não há coisa
que nos detenha, nem buscamos ocasião para escusar-nos e, ao contrário,
deixamos tudo, e vamos servi-lo e obedecer com suma alegria, não recusemos
obedecer ao Rei dos reis, ao Senhor dos senhores, a Deus, que nos chama a ordem
desta milícia celestial, porque será depois difícil a escusa diante daquele seu
terrível e espantoso tribunal.
Pode
ser que aquele que está preso e aferrolhado aos negócios do século, dê alguns
passos e ande, ainda que com impedimento e trabalho, pois também acontece que
aquele que tem grilhões ou cadeias nos pés, ande, ainda que mal e trabalhosamente.
Aquele que vive no mundo sem mulher, mas com cuidados e negócios, é semelhante
ao que tem algemas nas mãos, por isso, ainda pode, se quiser, correr livremente
a vida monástica, ou solitária, mas, aquele que tem mulher é semelhante ao que
está de pés e mãos atados.
Ouvi
uma vez a certos negligentes que, vivendo no mundo, me diziam: “Como poderemos nós, morando com nossas
mulheres e cercados de cuidados e negócios de república, viver vida monástica? ”,
aos quais respondi: “Fazei todo o bem que
puderes, não injurieis ninguém, não digais mentira, não tomeis o alheio, não
queirais mal a ninguém, não vos levanteis contra ninguém, frequentais as
igrejas e os sermões, usais da misericórdia com os necessitados, não
escandalizeis, nem deis mau exemplo a ninguém, nem sejais favorecedores de
bando de malfeitores, nem vos empregueis em meter discórdias, senão em
desfazê-las e contentai-vos com o uso legítimo de vossas mulheres, porque, se
isto fizerdes, não estareis longe do
reino de Deus”.
Preparemo-nos
com alegria e sem temor para esta gloriosa batalha, não acobardando-nos, nem
desanimando pelo temor de nosso adversários, pois, Deus está conosco. Os nossos
adversários, posto que de nós não sejam vistos, veem muito bem a figura de
nossas almas, e, se nos virem acobardados e medrosos, tomam armas mais fortes
contra nós, apesar de contarem com a nossa fraqueza e covardia. Portanto, com
grande ânimo devemos tomar contra eles as armas da alegria e coragem, porque ninguém
é poderoso para vencer a quem alegre e animosamente peleja.
Nosso
Senhor costuma a usar de uma maravilhosa concessão aos principiantes e novos
guerreiros, temperando e moderando-lhes as primeiras batalhas, a fim de que não
voltem ao mundo, espantados da grandeza do perigo. Portanto, gozai sempre no
Senhor e tomai isto por sinal de chamamento, e da piedade e providência
paternal que ele tem de vós outros. Outras vezes também acontece que este mesmo
Senhor, quando vê as almas fortes no princípio, lhes aparelha mais fortes
batalhas, desejando mais cedo coroá-las.
Sói o
Senhor esconde aos homens do século as dificuldades desta milícia (posto que,
sob outro respeito, melhor se poderiam chamar facilidades), porque, se isto
conhecessem, não haveria quem quisesse deixar o mundo.
Oferece
os trabalhos de tua juventude a Jesus Cristo e na velhice te alegrarás com as
riquezas de uma quietíssima paz e tranquilidade, pois, as coisas que recolhemos
e ganhamos na mocidade, depois nos sustentam e consolam, quando estamos fracos
e debilitados na velhice. Trabalhem os moços, ardentemente, e corram com toda a
sobriedade e vigilância, pois, a morte, tão incerta, nos está aguardando a cada
hora. Além disto, temos inimigos perversíssimos, fortíssimos, astutíssimos,
potentíssimos, invisíveis e despidos de todos os impedimentos corporais e que
nunca dormem, os quais, tendo fogo nas mãos, trabalham com todo o estudo por
abrasar e queimar o templo vivo de Deus. Ninguém, por ser moço, dê ouvidos aos
demônios, que costumam dizer: “Não
maltrates tua carne para que não venhas cair em enfermidades e doenças”,
pois, deste modo, sob a cor da discrição, muitas vezes fazem o homem mui brando
e piedoso para consigo. E nesta idade dificilmente se encontra quem de todo
mortifique sua carne, ainda que se abstenha de muitos e delicados manjares,
porque uma das principais astúcias de nosso adversário é tornar brando e fraco
o princípio da nossa profissão, para depois fazer o fim semelhante ao princípio.
Aqueles
que fielmente desejam servir a Jesus Cristo devem, antes de tudo, com grandíssima
diligência, buscar os lugares, os costumes e a quietude, assim como os
exercícios, que acharem mais acomodados a seu propósito e espírito, segundo o
conselho dos padres diretores espirituais, e segundo lhes der a entender a experiência
de si próprios, pois, nem a todos convém morar nos mosteiros, especialmente
aqueles que são tocados no vício da gula no comer e no beber, nem a todos convém
seguir a quietude da vida solitária, especialmente aqueles que são inclinados a
ira. Observe cada um diligentemente, como dito é, o estado que mais se lhe coaduna,
porque três maneiras de estados e profissões contém a vida monástica: o primeiro
é o da vida solitário, o estado dos monges anacoretas; o segundo é o da
companhia de dois ou três que vivem em soledade; o terceiro é o dos que servem
na obediência dos mosteiros. Ninguém, pois, se desvie, como diz o Sábio, destes
estados, nem para a direita, nem para a esquerda, siga pelo caminho real. Entre
estas três maneiras de estados, a do meio foi mui proveitosa para muitos,
porque ai daquele que está só, que se cair em tristeza espiritual, ou no sono,
ou na preguiçam ou na desconfiança, não terá entre os homens quem o levante, ao
passo que onde estão ajuntados dois ou três em meu nome, diz o Senhor, aí estou
no meio deles. Enfim, será fiel e prudente monge aquele que, guardando seu
fervor inteiro até o fim da vida, persevere sempre, acrescentando cada dia fogo
a fogo, fervor a fervor, desejo a desejo e diligência a diligência.
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Anotações
Para
inteligência deste capítulo, leitor cristão, hás de pressupor, que se colige da
doutrina dos Santos Padres, a renúncia tem três graus: o primeiro é deixar, por
amor de Deus, todas as coisas do mundo, como o Salvador o aconselhava àquele
mancebo do Evangelho; o segundo é deixar-te a si mesmo, que é deixar a própria
vontade, com todos os apetites e paixões de nossa alma, para fazer de nós
mesmos verdadeiro sacrifício, holocausto a Deus; o terceiro é que nosso
espírito puro e inteiramente se ofereça a Deus, se transporte para Deus, se
junte com Deus, que é o fim dos graus passados, porque tanto mais se ajuntará
nosso espírito com Deus, quanto mais apartado estiver das coisas do mundo e de
si mesmo. Do primeiro destes três graus se trata neste primeiro capítulo, do
segundo, que é o da mortificação das paixões, se trata no seguinte e do
terceiro se trata consequentemente no capítulo terceiro, conquanto em cada um
se toque algo do que pertence ao outro. Porque familiar coisa é a este santo (como
o é a todos os que, escrevendo, seguem o instinto e o magistério do Espírito
Santo), não ter tanto em conta o fio e consequência das matérias e a ligação
das cláusulas e sentenças, quanto seguir o ditame e movimento deste espírito
divino que os ensina, como se mostra no autor daquele tão espiritual livro – Contemptus mundi, e em outro muitos.
O que
muito há de notar neste capítulo e em quase todo este livro, é o rigor,
trabalho e diligência, que este insigne mestre pede a todos os que verdadeiramente
se determinam a buscar Deus, especialmente nos princípios de sua conversão, até
desfazerem-se os maus hábitos da vida passada, para que se veja claro por
autoridade de tão grande varão, que esta empresa não é de frouxos e folgazões,
mas de valentes e esforçados cavaleiros, conforme aquele sentença do Salvador,
que diz: “O reino dos Céus padece força e
os esforçados são os que o arrebatam”.