Aquele que ama verdadeiramente a
Deus e que verdadeiramente deseja gozar do reino dos Céus; aquele que
verdadeiramente se arrepende de seus pecados e que deveras está impressionado
com a memória das penas do inferno e do juízo final, e com o temor da morte, – este,
coisa alguma amará desordenadamente. Não lhe fatigarão os cuidados do dinheiro,
nem da fazenda, nem dos pais, nem dos irmãos, nem de qualquer outra coisa
mortal e terrena, mas antes, abominando e sacudindo de si todos os cuidados e
aborrecendo com um santo ódio sua mesma carne, despido de tudo, seguro e
ligeiro seguirá a Jesus Cristo, com os olhos sempre no céu, donde, com toda a
confiança, esperará o socorro, segundo as palavras do Profeta, que diz: “Eu não turbei, seguindo-te, Pastor meu, e
nunca desejei o dia homem”, isto é, o descanso e a felicidade que soem[1]
desejar os homens. Grandíssima confusão é, por certo, a daqueles que, depois de
sua vocação, isto é, depois de terem disso chamados, não por homens, mas por
Deus, olvidados disso, se aplicam a outros cuidados que, na hora da última
necessidade, não os possam valer: isto, como disse o Senhor, “seria voltar a cabeça para trás depois de
ter posto a mão à charrua ”, e, portanto, não ter aptidão para o reino dos
céus, e ele o disse como quem sabe quanto são escorregadios os primeiros
princípios da nossa profissão, e quão facilmente voltaremos ao século, se
tivermos conversação familiar com pessoas do século. A um mancebo que lhe
disse: “Dai-me, Senhor, licença para ir
enterrar meu pai”, Ele respondeu: “Deixa
aos mortos enterrar seus mortos”.
Soem os
demônios, depois de havermos deixado o mundo, pôr-nos diante dos olhos alguns
homens misericordiosos e esmoleres, que vivem no mundo, fazendo-nos notar as
virtudes que eles são bem-aventurados e nós outros uns miseráveis pecadores,
isto fazem os demônios, muitas vezes, para que, sob a capa desta adúltera e
falsa humildade, nos devolvam ao mundo, ou para que, permanecendo em Religião,
vivamos desconfiados e desconsolados nela. Há alguns religiosos que, com
soberba e presunção, desprezam, como aquele fariseu do Evangelho, os homens que
vivem no mundo, não se recordando de que está escrito: “Aquele que está em pé, trate de não cair”. Outros há que, não por
soberba, mas para este despenhadeiro da desconfiança e conceber maior esforço e
alegria por se verem livres do mundo, desprezam ou, ao menos, dão pouca
estimação aos costumes dos que nele vivem. Mas, todos nós que temos em pouco
nossa profissão, lembremo-nos de que o Senhor disse àquele mancebo que havia
guardado quase todos os mandamentos: “uma
coisa te falta, vai e vende teus bens e dê aos pobres e faz-te, por amor a
Deus, pobre e necessitado de alheia misericórdia”. Por aí se vê que,
sobrepujando em virtudes aos que vivem no mundo, nada mais fazemos do que
aquilo que é próprio da nossa profissão. Se desejamos correr ligeira e alegremente
por este caminho, estimando-o no que ele merece, consideremos atentamente que o
Senhor chamou mortos aos homens que no mundo vivem, dizendo a um deles: “deixa aos mortos enterrar seus mortos”.
Não foram causa as riquezas para que aquele mancebo rico deixasse de receber o
batismo (e claramente se enganam os que pensam que por esta causa lhe mandava o
Senhor vender sua fazenda), não era essa a causa, mas sim querer levantá-lo à
altura do estado de nossa profissão. E para ser reconhecida a glória dela,
deveria bastar este argumento: aqueles que, vivendo no mundo, se exercitam em
jejuns, vigílias, trabalhos e outras semelhantes aflições, quando entram na
vida monástica, como em uma oficina e escola da virtude, não fazem caso
daqueles primeiros exercícios, e, pressupondo-os muitas vezes adúlteros e
fingidos, começam outros novos fundamentos. Vi muitas e diversas plantas de
virtudes de homens que viviam no mundo, as quais se regavam com a água lodosa
da vanglória, se mondavam com ostentação e aparência de mundo, e se estercavam
com o estrume dos louvores humanos, vi que estas plantas, transplantadas para
terra deserta, apartadas da vista e companhia dos homens e privadas do
sobredito lavor, logo secaram, porque as árvores criadas com este trato, não
soem dar fruto em terra seca.
Quem
tiver perfeito ódio ao mundo, estará livre de tristeza do mundo, mas quem está
tocado da afeição das coisas do mundo, não estará de todo livre desta paixão,
porém dificilmente deixará de entristecer-se quando se achar privado do que
ama. Em todas as coisas temos necessidade de grande temperança e vigilância,
mas, sobretudo, nós havemos de extremar em procura desta liberdade e pureza de
coração.
Conheci
no mundo alguns homens, que, vivendo com muitos cuidados, ocupações, aflições e
vigílias do mundo, ainda assim escaparam dos movimentos e ardores da própria
carne, entretanto, estes mesmos, entrando nos mosteiros, aí vivendo livres de
cuidados, caíram torpe e miseravelmente nestes vícios. Observemo-nos muito,
olhemo-nos muito para nós mesmos, a fim de que não nos aconteça que, pensando
caminhar por caminho estreito e dificultoso, caminhemos por caminho largo e
espaçoso, e assim vivamos enganados. Estreito caminho é a aflição do ventre, a
perseverança nas vigílias, a água por medida, o pão por taxa, o beber a purga[2]
saudável da ignomínias e vitupérios, a mortificação de nossas próprias
vontades, o sofrimento das ofensas, o menosprezo de nós mesmos, a paciência sem
murmuração, o tolerar fortemente injúrias e não indignar-se contra os que nos
infamam, o não queixar-se dos que nos desconsideram e o abaixar-se humildemente
aos que nos consideram. Bem-aventurados os que por esta via caminham, porque
deles é o reino dos céus. Ninguém entra no tálamo celestial para receber a
coroa dos grandes santos, se não tiver cumprido a primeira, a segunda e a
terceira maneira de renúncia, convém saber: primeiramente, há de renunciar o
que estiver fora de si, como os pais, parentes, amigos e tudo mais; em segundo
lugar, há de renunciar sua própria vontade; em terceiro lugar, há de acautelar-se
contra a vanglória, que muitas vezes soe acompanhar a obediência, sendo que a
este vício mais sujeitos estão os que vivem em companhia do que os que moram em
soledade. Saí, diz o Senhor, do meio deles, apartai-vos e não toqueis em
coisa suja ou profana. Pois, quem dos homens do mundo fez milagres? Quem
renunciou os mortos? Quem expeliu os demônios? São estas as insígnias dos
verdadeiros monges, as quais o mundo não merece receber, porque, se as
merecesse, supérfluos seriam os nossos trabalhos e a solidão de nossas celas.
Quando,
depois da nossa renúncia, os demônios incendiam importunamente o nosso coração
com a memória de nossos pais e irmão, então principalmente temos de tomar
contra eles as armas da oração e de inflamar nosso coração com a memória do
fogo eterno, para com ela apagarmos a chama danosa daquele outro fogo.
Os
mancebos que, depois de se haverem dado a deleites e vícios da carne, querem
entrar em Religião, procurem excitar-se com toda a atenção e vigilância em
honestos trabalhos e determinem abster-se de todo o gênero de vício e deleites,
a fim de que não venham ter piores os fins do que tiveram os princípios. Muitas
vezes o porto que costuma ser de salvação, também o é de perigos, como bem o
sabem aqueles que navegam por este mar espiritual. E coisa miserável é
perderem-se no porto os navios que estiveram salvos em alto mar.
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Anotações
Neste
capítulo se trata do segundo grau de renúncia, que consiste na mortificação dos
apetites e afetos, como os tem mortificados somente aquele que deveras e de
todo o coração está afeiçoado às coisas divinas. E repete-se muitas vezes esta
palavra – deveras – para dar a entender que não é qualquer grau de devoção que
causa este afeto, mas a verdadeira, grande e profunda afeição do amor de Deus,
porque, assim como uma luz grande escurece e ofusca outro menos, como o sol faz
às estrelas, assim o amor de Deus, quando é muito grande, como soe ser o dos
santos, anuvia e escurece todos os outros peregrinos amores, Daí decorre que
assim como, na balança, quanto mais sobe um lado, tanto mais baixa o outro e
vice-versa, assim quanto mais cresce o amor de Deus, tanto mais decresce o amor
do mundo e vice-versa. Bem-aventurado seria aquele que, despedido o amor do
mundo, só se sustentasse com o amor de Deus, porque seria como outro espiritual
Jacó, a quem foi dado, por benção, que coxeasse de um pé e do outro ficasse
são. Aliás, ninguém pense que por isto é excluído aqui o amor e afeição dos
parentes, amigos e bem feitores, porque isto é natural e devido, quando é bem
ordenado, amando-os e querendo-os por Deus, compadecendo-os de seus trabalhos.
Tudo isto, porém, se há de fazer, de maneira que não seja enredado nosso
coração nesse laço, por demasiada afeição, como muitas vezes acontece.
[1] Do verbo soer: ter por hábito; ocorrer frequentemente; acontecer por costume.
[2] Nascente d'água.