No início, Lúcifer se rebelou contra Deus, seu Criador, e imediatamente foi lançado do céu para o abismo do inferno. É por isso que Deus resolveu criar o gênero humano, a fim de preencher os lugares que Lúcifer e os anjos maus deixaram vagos no céu. É pela mesma razão que o demônio, que tem inveja do homem, armou-lhe emboscadas e procurou fazê-lo violar o preceito que o Senhor lhe dera. Para chegar ao seu objetivo, ele fez uso de uma serpente, que não rastejava, que pertencia a uma espécie mais inteligente que as demais. Então o demônio entrou no corpo deste animal, ele enganou a mulher e fez a dura lei da morte pesar sobre toda a humanidade. E todos nós fomos condenados a sofrer os tormentos do inferno, uma condenação da qual nenhum homem, por mais santo que fosse, poderia nos libertar. Mas finalmente o Pai das misericórdias e o Deus de toda consolação lançou um olhar de clemência sobre nosso estado miserável e resolveu nos libertar por si mesmo. A pomba que trouxe um ramo de oliveira para Noé na arca representava a misericórdia do Senhor para as almas mantidas no limbo. Muitas outras figuras anunciaram a mesma graça. Desde a criação de nosso primeiro pai e a formação de Eva de uma de suas costelas no Paraíso terrestre, desde a desobediência fatal que cometeram comendo do fruto proibido, e desde sua expulsão deste lugar de delícias, a Divina Misericórdia nunca deixou de conduzir os homens ao bem por mil meios ocultos, inculcar neles o arrependimento e dar-lhes a esperança do perdão pelos méritos do Salvador prometido. E para que nossa ignorância e nossa ingratidão não tornem esta condescendência inefável do Senhor ineficaz para nós, ele não cessou desde as eras mais remotas, desde o justo Abel até João Batista, de nos anunciar a libertação, de nos prometer, retratá-la para nós pelos patriarcas, pelos juízes, pelos sacerdotes, pelos reis e pelos profetas, para iluminar nossa fé, inflamar nosso coração e provocar a vivacidade de nossos desejos à vista daqueles milhares de milhares deoráculos de figura tão evidente. É por isso que o Papa São Leão diz em seu terceiro sermão sobre a Natividade de Nosso Senhor:
“Que cessem as queixas daqueles que afirmam que o nascimento de Cristo foi muito atrasado, como se este grande milagre, que vem para ser realizado, nem sempre fora anunciado em tempos passados. A Encarnação do Verbo fez o que tinha que ser feito; mas o mistério da redenção sempre foi conhecido. O que os Apóstolos pregaram, os Profetas anunciaram e o que sempre se acreditou nunca fora realizado tarde demais. A sabedoria, a bondade do Senhor, por esta salutar demora, puseram os homens em melhor posição para apreciar as obras da Verdade, para a realização de um evento, anunciado por tantos sinais, predito por tantos oráculos, traçado por tantas figuras, não pode haver sombra de dúvida, sob o reinado feliz do Evangelho. Agora, a Natividade do Salvador deve excitar em nós uma fé tanto mais viva e tão mais constante, como foi anunciado anteriormente e com mais frequência. O Senhor não pensou na felicidade do gênero humano em comiseração tardia; mas, desde o início do mundo, ele fixou para todos os homens uma única causa de salvação. De fato, a graça de Deus, pela eficácia da qual todos os santos sempre foram justificados, só aumentou com Cristo; mas não começou com seu nascimento temporal. E tal é a eficácia deste grande Mistério de misericórdia, tal tem sido o seu poder mesmo nas figuras que o anunciaram, que beneficiou tanto aqueles que acreditaram no cumprimento da sua promessa, como também aqueles que gozaram após o seu cumprimento”.
Santo Agostinho faz outra observação igualmente judiciosa sobre este assunto:
“Cristo”, diz ele, “não veio até que o homem estivesse convencido da insuficiência da lei natural e da lei escrita. Se Cristo tivesse nascido antes, o homem poderia ter dito que se salvaria cumprindo a lei natural e a lei escrita, e que consequentemente a vinda do Senhor era supérflua, inútil. Mas, depois de ter sido claramente provado que o homem não poderia salvar-se assim, já que todos desciam às profundezas do inferno, o próprio Cristo veio, porque o tempo da misericórdia havia chegado; ele não veio antes, porque não era necessário, e o remédio espiritual só beneficia quem o recebe com desejo e afeto. Cristo não veio depois, para que a fé e a esperança na encarnação prometida não falhessem nas almas. Se Cristo tivesse atrasado sua vinda, teríamos visto essa esperança e essa fé diminuir e esfriar a cada dia”. Segundo o mesmo doutor, “os antigos tinham um grande desejo de ver Cristo. Não apenas os Patriarcas e os Profetas, mas também todos aqueles que levaram uma vida piedosa em santa expectativa, sabiam que ele havia de vir, e suspiraram assim após este feliz evento: ‘Oh! Se este presépio chegasse no meu tempo! Se eu pudesse ver com meus próprios olhos isso que acredito!’. Se a fé desses primeiros crentes era tão viva, seus desejos tão ardentes, seu amor tão grande por Cristo que ainda não tinha vindo, quais seriam seus sentimentos, se, como nós, eles tivessem sido testemunhas destes fatos? Mas, ai de nós, pobres corações frios destes tempos modernos, que não são tão sensíveis à graça que recebemos, como os antigos foram à sua promessa”. [↓1]
São Bernardo diz:
“Quando penso no desejo daqueles que ansiavam a vinda do Messias, encho-me de vergonha, fico desconsertado e não consigo conter as lágrimas, me dói tanto o torpor desses tempos atuais miseráveis. Pois esta imensa graça que recebemos nos dá menos alegria do que o desejo e a promessa desta mesma graça causaram aos antigos”. [↓2]
O gênero humano esteve imerso por longos séculos (cerca de cinco mil e duzentos anos) nas trevas do erro e da corrupção, e ninguém, por causa do pecado do primeiro homem, foi capaz de ascender à bem-aventurança eterna. Os espíritos bem-aventurados, lançando um olhar de compaixão sobre essas ruínas deploráveis, suplicou ao Senhor com mais fervor (pois eles sabiam que a plenitude dos tempos se aproximava) para preencher os lugares que a deserção e o orgulho dos anjos maus haviam deixado vagos. A Misericórdia, juntamente com a Paz, portanto, bateu no coração do Pai e o incitou a vir em nosso auxílio; mas a Verdade, juntamente com a Justiça, se opôs; e entre a Misericórdia e a Verdade, surgiu uma grande controvérsia, que São Bernardo nos relata em seu primeiro sermão sobre a Anunciação do Senhor.
“A Misericórdia disse a Deus:
— O homem precisa que Vós tenhais piedade, pois sua miséria está no ápice. Chegou a hora da vossa misericórdia.
A Verdade retoma:
— Senhor, cumpre a vossa palavra. Deixe Adão morrer com todos os seus descendentes (que nele estavam), quando, apesar de Vosso aviso, provou o fruto da árvore fatal.
E Misericórdia:
— Senhor, por que me fizestes? A Verdade sabe bem que se Vós nunca for movido pela compaixão, eu sou apenas um nome vazio.
E a Verdade:
— Se o malfeitor pode escapar da sentença que Vós pronunciastes contra ele, Vossa Verdade não existe mais, não permanece por toda a eternidade.
Este debate é enviado pelo Pai ao Filho, e Verdade e Misericórdia mantêm a mesma linguagem na presença deste último. Não vemos realmente como, em relação ao homem, podemos preservar as leis da Verdade e as entranhas da Misericórdia. Mas o Rei eterno, em sua suprema sabedoria, encontrou esta solução.
A Verdade diz:
— Nada mais sou, se Adão não morrer.
A Misericórdia diz:
— Já não existo, se não tiver piedade do homem. Portanto, que Adão morra, mas que sua morte seja boa;
[E diz o Eterno Rei, colocando fim na disputa:]
— Ele morrerá e obterá misericórdia, e os dois contendores prevalecerão.
Esta frase do Verbo, da Sabedoria Eterna, suscitou admiração universal; mas alguém se perguntava:
— Como a morte pode se tornar boa, quando seu próprio nome enche de terror?
O Rei respondeu:
— A morte dos pecadores é detestável [↓3], mas a morte dos santos é preciosa e é a porta da vida. Ache, pois, alguém que não esteja sujeito à sua lei e que morra por caridade, para que a morte não possa prender o inocente que fará em seu próprio seio uma abertura por onde passarão os libertos.
[E respondeu-lhe:]
— Mas onde encontrar essa vítima inocente e voluntária?
A Verdade percorre todo o universo: ninguém, nem mesmo a criança de um dia, está livre de todas as manchas. A misericórdia percorre o céu, mas não encontra ninguém que tenha uma caridade ardente o suficiente para consumar esse sacrifício [↓4]. A vitória sobre a morte viria para aquele que tivesse caridade suficiente para sacrificar sua vida por servos inúteis. A Misericórdia e a Verdade, portanto, voltam no dia marcado, mais preocupados do que nunca, não tendo encontrado o que procuravam. Finalmente, a Paz diz-lhes, para os consolar:
— Não sabeis que não há quem faça o bem? [↓5] Portanto, quem encontrar o remédio, aplique-o ele mesmo.
Foi então que o Rei Eterno pronunciou esta palavra: Poenitel me fecisse hominem [↓6], ou seja, cabe a mim sofrer o castigo merecido pelo homem, minha criatura.
Tendo, pois, chamado o anjo Gabriel, disse-lhe:
— Vai, dize à Filha de Sião: “aqui está o teu Rei que vem”. [↓7]
O mensageiro divino apressa-se a cumprir a ordem recebida e diz à filha de Sião:
— Decore o seu quarto e receba o Rei.
“Veja”, diz São Bernardo, “quão grande é o perigo, quão grande é o pecado, e quão difícil é encontrar o remédio para curar uma ferida tão profunda. A Verdade e a Misericórdia deram seu consentimento, e então se cumpriu esta palavra do profeta: “A Misericórdia e a Verdade foram mostradas; Justiça e Paz se beijaram”. [↓8]
São Leão, tratando desta grande questão, diz que:
“O diabo não se apoderou do homem a ponto de privá-lo de seu livre arbítrio, portanto, havia uma falta voluntária a ser apagada (que proveio do conselho pérfido) e a lei da justiça não deveria ser um obstáculo ao dom da graça. Assim, para esse contágio geral que infestava o gênero humano, havia apenas um remédio a ser trazido e, esse remédio, nos desígnios secretos da Razão divina, só poderia levantar aqueles que haviam caído. Era necessário que um filho de Adão, livre da mancha original, nascesse inocente e redimisse seus irmãos por seus méritos e os santificasse por seus exemplos. Mas, como este filho de Adão não podia nascer sem a mancha do pecado, o Deus de Davi se fez filho de Davi, e Ele nasceu imaculado pela família que deveria dar o Messias”. [↓9]
Santo Anselmo diz:
“No princípio, fomos criados à imagem de Deus, para um dia desfrutar sem cessar do próprio Deus e entrar na posse de sua glória, sem passar pelas vicissitudes e corrupção da sepultura. Mas nossos primeiros pais perderam este grande bem, e o homem foi inundado com todas as misérias deste mundo, que eram apenas os precursores do infortúnio eterno que o aguardava após a morte. Muitos séculos se passaram, e a terrível condenação que havia atingido todos os filhos dos homens só pesava mais sobre suas cabeças. A própria Sabedoria do Eterno não poderia encontrar em toda a humanidade uma única criatura digna de contribuir para a redenção dos homens; mas a Virgem nasceu. Ela nasceu do homem, e brilhou com tal beleza de alma, com tão eminente virtude, que a própria Sabedoria de Deus, querendo tornar-se homem, julgou-a digna de ser sua mãe; e a Sabedoria de Deus se encarnou, não só para apagar a culpa de nossos primeiros pais, mas todos os pecados dos homens, para quebrar o império do diabo, inimigo de sua obra, e para nos restituir o direito de cidadãos do pátria celestial que havíamos perdido. De que louvor é digna aquela que foi medianeira de tão grande graça! A Santíssima Virgem foi predestinada desde toda a eternidade para cumprir esta sublime missão”. [↓10]
É por isso que São João Damasceno diz:
”A Mãe de Deus, presente desde toda a eternidade em Seus desígnios eternos, foi figurada e anunciada em muitas passagens dos antigos Profetas, inspiradas pelo Espírito Santo”. [↓11]
E diz Santo Anselmo:
“Subamos, portanto, aos céus nossas ações de graças, e rendamos a Deus os louvores devidos a Ele por sua inefável misericórdia”. [↓12]
Nós vos adoramos, ó Cristo, Rei de Israel, Luz das nações, Príncipe dos reis da terra, Senhor Sabaoth, Virtude onipotente de Deus. Nós vos adoramos, precioso penhor de nossa redenção, hóstia pacífica, que somente, pela doçura indescritível de vosso odor, inclinastes os olhos do Pai, que habita no mais alto céu, para nossas infelicidades e o tornastes misericordioso para os filhos da ira. Senhor Jesus, pregamos as vossas misericórdias, publicamos as vossas bondades com todo o poder da nossa voz, imolamos a Vós o sacrifício do nosso louvor, porque, para nós, raça culpada e condenada, não medistes a vossa generosidade. Senhor, quando ainda éramos vossos inimigos, e quando a antiga morte ainda exercia seu império sobre todas as criaturas, porque Adão, por sua desobediência, sujeitou todos os seus descendentes à sua lei, vós lembrastes de vossa fecunda misericórdia e, do alto de vosso trono, Vós baixastes o olhar para este vale de lágrimas e miséria. Senhor, vistes a aflição de vosso povo, e vosso coração, tocado de compaixão, inspirou-vos com pensamentos de paz e amor por nós.
Deixemos um pouco em silêncio todas as profecias que foram feitas antes do nascimento de seu divino Filho, a respeito da Santíssima Virgem. Falaremos um pouco sobre a Natividade de Maria, que sabemos que foi anunciada por grandes maravilhas. A gloriosa Virgem, em cujo ventre se encarnou o Filho de Deus, era da tribo de Judá e da estirpe de Davi. Pois, segundo o ensinamento de Santo Agostinho:
“Foi segundo os desígnios da Divina Providência, que aquela que merecia ser a Mãe de Deus segundo a carne descendesse de uma família real e sacerdotal, pois o Filho de Deus, que se encarnou, é o Rei e o Eterno Sacerdote”. [↓13]
No vigésimo sexto ano do imperador Augusto nasceu a gloriosa Virgem Maria, que teve Joaquim de Nazaré por pai e Ana de Séfora por mãe (cidade cerca de duas léguas de Nazaré). Esses dois cônjuges eram justos diante do Senhor. Eles viveram juntos por vinte anos, sem ter filhos; mas eles oraram com tanto fervor para obter a graça da fertilidade, que finalmente foram atendidos; eles prometeram ao Senhor consagrar-lhe o filho que deles nasceria. O sacerdote Isacar, vendo Joaquim que vinha com os outros fiéis trazer sua oferta, censurou-o por sua esterilidade. Por isso Joaquim se retirou com seus pastores para os montes, e foi lá que o anjo do Senhor lhe apareceu, o consolou, lhe disse que suas orações haviam sido ouvidas e que sua esmola havia subido ao trono do Senhor. Joaquim deu um terço de sua propriedade aos pobres, outro terço para o ornamento do Templo e para os ministros que serviam no Templo. Ele reservou o último terço para a manutenção de sua casa. Disse-lhe então o anjo: “A tua mulher dará à luz uma filha a quem porás o nome de Maria. Ela será consagrada ao Senhor, como lhe prometeste; ela será cheia do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe e habitará no templo do Senhor”. O anjo fez a mesma previsão para Ana. Avisados pelo anjo, os dois santos esposos foram a Jerusalém para agradecer ao Senhor em seu templo, depois voltaram para sua casa. Ana concebeu e deu à luz uma filha a quem deu o nome de Maria. Por um privilégio único, esta criança ficou livre da mancha original. São Bernardo diz sobre este assunto:
“A Bem-Aventurada Virgem Maria, cheia de todos os tipos de graças, era santa antes de nascer. Ela recebeu tal abundância de bênçãos, uma abundância muito maior do que outras crianças que foram santificadas no ventre de sua mãe, que em virtude desta bênção ela não só foi preservada da mancha original, mas não cometeu nenhuma falta, mesmo a menor, durante todo o curso de sua vida. Convinha que a mãe d’Aquele que havia de dar à luz – o destruidor da morte e do pecado – fosse, por uma graça peculiar, preservada de todo pecado, e subisse a um grau mais alto de perfeição do que os outros santos”. [↓14][↓15]
A gloriosa Virgem Maria, aos três anos de idade, foi apresentada ao Templo por seus pais e colocada entre as outras jovens no retiro do Templo para aprender as letras sagradas, para servir ao Senhor e ali permaneceu até aos quatorze anos. Assim que a Santíssima Virgem chegou a esta santa morada, uma graça divina e precoce iluminou sua alma, e quando seus pais a confiaram aos ministros do Templo para ser instruída profundamente em sua Lei, a Santíssima Virgem resolveu em seu coração ter Deus por pai e estava constantemente pensando no que poderia fazer para agradá-Lo e merecer seus favores. Ela pedia continuamente a Deus a graça de observar seus mandamentos e os preceitos da lei, fazer e amar tudo o que Ele ama e odiar tudo o que Ele odeia. Ela também pediu todas as virtudes que pudessem torná-la agradável aos seus olhos, e progrediu rapidamente todos os dias no caminho da perfeição. Sempre na contemplação, ou na oração, ou na leitura, ou no trabalho, ela nunca deixou de rezar pela salvação do gênero humano; relia frequentemente as páginas da Escritura onde se trata do Advento de Cristo, e todas as passagens que se referem à Encarnação do Filho de Deus, cobria-as com as suas carícias e os seus beijos. Ela sempre foi considerada a primeira no trabalho, a mais versada na sabedoria do Senhor, a mais humilde, a mais inspirada nos cantos sagrados, a mais caridosa, a mais pura, a mais perfeita em todos os tipos de virtudes; pois ela era constante no caminho que leva ao céu. Todas as suas falas eram tão cheias de graça que se podia reconhecer facilmente Deus em sua língua. Sempre temia que suas companhias pronunciasse uma palavra imprópria, caísse em gargalhadas indecentes, insultasse ou desdenhasse o próximo ou em uma palavra cometesse algum pecado. Ela continuamente bendizeu ao Senhor. E por medo de ficar privada de Deus, por faltar aos louvores que Lhe são devidos, a toda saudação às criaturas, ela respondia: Deo gratias. É, portanto, de Maria que vem este costume que os religiosos praticam fielmente. A primeira, desde que o mundo existe, a fazer um voto de manter sua virgindade por toda a vida, se tal fosse a vontade de seu Criador. Finalmente, ela foi tão prudente, tão humilde, tão piedosa, que sua vida poderia servir de modelo para todos.
Santo Ambrósio representa assim esta divina Virgem:
“A sua conduta era um espelho no qual se podia contemplar a caridade e todas as outras virtudes. Era Virgem de corpo e espírito, humilde de coração, séria no falar, prudente, reservada, aplicada ao estudo das letras sagradas. Ela colocou sua esperança, não nas riquezas sempre incertas, mas na oração dos pobres. Ela era trabalhadora, edificante em suas palavras. Ela tomou Deus e não o homem como árbitro de seus pensamentos. Ela nunca machucou alguém, nunca deixou seus companheiros com inveja; ela era cheia de respeito por seus superiores. Ela evitou se exaltar, seguiu a boa razão, valorizou a virtude. Quando ela causou o menor pesar a seus pais, rejeitou os humildes, ridicularizou os fracos? Quando ela não sentiu pena do destino dos pobres? Não tinha olhares disperos, nem superabundância em suas palavras, nenhuma ação sua era indevida. Seus movimentos e andar exalavam modéstia; sua voz era suave e baixa, e todo o seu exterior era a imagem da beleza, da santidade de sua alma. Maria foi tão perfeita que sua vida pode servir de exemplo para todos os homens. Se, então, tal modelo só pode encantar, sigamo-lo para obter a recompensa devida à prática de tantas virtudes”. [↓16]
E Santo Anselmo diz:
“Que vida casta! Que vida santa e digna de Deus, que Maria deve ter levado desde os seus mais tenros anos. Sim, os anjos vigiavam seu corpo santíssimo, sua alma santíssima para preservá-los da menor contaminação. Maria, de fato, não era ela a corte em que o Senhor deveria habitar corporalmente, depois do mistério inefável de sua Encarnação? O que poderia ser mais natural do que essas precauções divinas? Quando um rico ou um nobre tem que parar em algum lugar, seus súditos não usam todos os seus cuidados para fornecer-lhe uma morada digna, o protege de qualquer surpresa e também embelezam e adornam tal morada? Agora, se tais preparativos são feitos para receber um rei desta terra que tem apenas poder efêmero, o que não deve ter sido feito no coração, no seio da Santíssima Virgem, para a chegada do Rei Eterno, do Rei do Céu, que não deveria apenas residir ali temporariamente, mas levar para lá um corpo formado da própria substância de Maria”. [↓17]
Meditai, pois, com atenção nas virtudes e nos hábitos da Virgem Maria, e esforçai-vos por imitá-los. A propósito da concepção e santificação de Maria, deve-se notar que, quando o Senhor resolveu revestir-se da natureza humana, devia à sua dignidade anunciar antecipadamente a mãe que o daria à luz. Foi ela quem foi representada pela filha do rei Astíages que teve essa visão. Ele contemplou uma bela videira que brotava do seio de sua filha, e que estendia seus ramos e suas flores para longe [↓18]; seus frutos eram deliciosos, e com sua sombra cobria todo o seu reino. Foi-lhe dito que de sua filha nasceria um grande rei; de fato, ela deu à luz Ciro, que libertou os filhos de Israel do cativeiro da Babilônia. O nome do pai da Santíssima Virgem, Joaquim, significa preparação do Senhor, porque gerou uma filha que deu à luz em seu seio casto Cristo Rei, que nos libertou do cativeiro do demônio e que é a verdadeira videira que cobre todo o universo com sua sombra. Maria foi novamente representada por esta fonte selada, colocada em um jardim fechado, porque o Espírito Santo a santificou em sua Imaculada Conceição, e a distinguiu e marcou com o selo da Santíssima Trindade, para que nenhuma sujeira pudesse entrar nela. Maria foi anunciada por Balaão, que prometeu que de Jacó viria uma estrela [↓19]. Agora, esta estrela representava Maria, a ajuda e a caridosa guia daqueles que navegam no mar, que é o mundo. Sem ela, aliás, nunca poderemos atravessar este oceano sempre repleto de tempestades e chegar ao porto da pátria celeste. A Natividade da Santíssima Virgem foi representada pelo rebento da raiz e o tronco de Jessé, que teve Davi como filho. Neste rebento desabrochou uma flor cheia de encantos, isto é, Cristo; e nesta flor o Espírito Santo repousou com seus sete dons. O Senhor nos mostra como Maria produziu esta flor, na porta fechada que ele apontou para Ezequiel, uma porta que nunca deveria ser aberta, exceto para deixar o Senhor passar. Maria também é representada pelo templo que o rei Salomão construiu para Deus. Este templo foi construído com o mais branco mármore e adornado por dentro com o mais puro ouro. Assim Maria era mais branca, mais pura que os anjos, e sua alma estava adornada com o ouro da caridade perfeita. O sacrifício de Maria no Templo (a Apresentação) foi representado pela mesa do sol, cuja história nos conta o seguinte: dois pescadores lançavam as redes ao mar, quando, por um acaso inaudito, arrancaram uma mesa dourada [↓20]; imediatamente foram oferecê-la ao sol, no templo que havia sido construído para ele na praia de Sabulo, pois pertenciam a uma nação que adorava essa estrela. Esta mesa, oferecida no templo do sol material, representa admiravelmente Maria, que foi oferecida ao verdadeiro Sol, isto é, ao soberano Senhor de todas as coisas, no Templo do Sol eterno. Maria é uma mesa sobre a qual nos é servido o alimento celestial, porque deu à luz o Filho de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos nutre com seu Corpo e seu Sangue. Maria também é a predita pela filha de Jefté, que foi repentina e indiscretamente imolada ao Senhor e que, consequentemente, não pôde mais tarde atender ao seu serviço; mas Maria serviu constantemente ao Senhor, depois de ter-se consagrado a Ele, porque o seu sacrifício foi feito segundo todas as leis da prudência. A filha de Jefté foi oferecida em ação de graças, depois de uma vitória conquistada sobre os inimigos da terra; Maria imolou-se no Templo para obter a vitória sobre os eternos inimigos do homem. Este magnífico jardim que o rei dos persas suspendeu para agradar a sua esposa representa para nós a vida e a caridade de Maria; pois a rainha adorava contemplar deste jardim todo o seu reino; assim Maria, do Templo do Senhor, manteve o olhar perpetuamente fixo na Pátria Celeste.
Notas
[↑1] Santo Agostinho, Questões sobre o Antigo e o Novo Testamento, Livro II, Questão 83.
[↑2] São Bernardo, Sermão 2 sobre os Cânticos dos Cânticos.
[↑3] Sl XXXIII.
[↑4] Jó XIII.
[↑5] Sl LII.
[↑6] Gn VI.
[↑7] Zc IX.
[↑8] Sl LXXXIV.
[↑9] São Leão Magno, Sermão 8 sobre a Natividade de Nosso Senhor.
[↑10] Santo Anselmo, Da Excelência da Bem-Aventurada Virgem, cap. VI.
[↑11] São João Damasceno, Da Fé, Livro IV, cap. CV.
[↑12] Santo Anselmo, In Speculo Sermonis Evangelici, cap. II.
[↑13] Santo Agostinho, Da concórdia dos Evangelhos, livro II.
[↑14] São Bernardo, carta 174.
[↑15] N.T.: Devido à proclamação do dogma da Imaculada Conceição por Sua Santidade o Papa Pio IX em 8 de dezembro de 1854, foi retirado do corpo do texto o seguinte parágrafo: “Santo Agostinho ensina que a Santíssima Virgem foi santificada antes da concepção de seu Filho, e que antes desta concepção ela poderia ter pecado venialmente, mas que depois de ter concebido o Filho de Deus em seu ventre ela não poderia mais pecar nem mortalmente, nem venialmente”. Pelo dogma depreende-se que, como a Santíssima Virgem foi preservada do pecado original, ela não poderia de modo algum pecar em sua vida terrena, nem estaria sujeita à tríplice concupiscência (concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida) e, por sua perfeição, também não estaria sujeita às vicissitudes do temperamento humano.
[↑16] Santo Ambrósio, Das Virgens, Livro II.
[↑17] Santo Anselmo, Da Excelência da Bem-Aventurada Virgem, cap. III.
[↑18] Dn XVI.
[↑19] Nm XXV.
[↑20] N.T.: Tal história chegou à Idade Média por meio da obra de Valério Máximo (séc. I a.C. – séc. II d.C.), Factorum ac dictorum memorabilium libri IX, e que foi primeiramente registrada por Plutarco (46 – 119) em sua obra Vidas Paralelas. “A menção que fiz a este homem traz à nossa consideração a ponderação dos sete sábios. Uma certa pessoa havia comprado a pesca de alguns pescadores no território de Mileto; mas quando eles trouxeram uma trípode de ouro de Delfos extremamente pesada, que havia sido pescada, surgiu uma disputa; estes afirmavam que a venda era apenas de peixes, enquanto o comprador afirmava que comprara tudo o que fora pescado. Em razão da inusitada ocorrência, e do valor do tesouro, a disputa foi remetida ao julgamento de toda a cidade. A cidade achou apropriado consultar Apolo em Delfos: o deus respondeu que deveria ser dado a quem se destacasse em sabedoria, com estas palavras: "Aquele primeiro em sabedoria em que tudo se destaca, a ele o tripé será dado". Então, os milésios por consenso geral deram o tripé a Tales, este o cedeu a Bias, Bias a Pítaco, e assim de um para outro, até que finalmente chegou a Sólon, que deu o título de maior sabedoria, como também a recompensa, ao próprio Apolo” (Valério Máximo, Factorum ac dictorum memorabilium libri, Livro IV).