domingo, 11 de setembro de 2022

Vita Christi – XIV Domingo depois de Pentecostes – Ludolfo da Saxônia, O.Cart.


Jesus Cristo, querendo ensinar-nos a desprezar absolutamente os bens terrenos por amor de Deus, proíbe-nos primeiro de colocar o nosso tesouro num lugar onde não seja seguro. Não acumule riqueza, Ele nos diz, na terra onde a ferrugem a consome, onde os vermes a roem, onde os ladrões podem encontrá-la e roubá-la. Pela alteração que causa a ferrugem, mostra-nos a vaidade das riquezas artificiais como o ouro, a prata e outros metais; pelos vermes que roem, nos indica a corrupção das riquezas naturais, como trigo, vinho, roupas e outras coisas semelhantes; e por ladrões depreende-se as pedras preciosas, que, embora não possam ser alteradas por ferrugem ou roídas por vermes, podem, no entanto, ser tiradas de nós por ladrões. Ai de nós, então, que fazemos exatamente o contrário. Diz São Crisóstomo:

“Que direi deste preceito, que nos proíbe de acumular na terra? Quão poucos, infelizmente, se preocupam em cumprir! Faça os homens abandonarem o céu, como eles fazem, apegar-se apenas à terra e a acumular dinheiro, não se acreditaria que eles receberam um mandamento totalmente oposto, ordenando que fiquem ricos aqui embaixo?”.

Após esta primeira recomendação, Jesus Cristo nos exorta a colocar nosso tesouro em um lugar seguro, isto é, no céu, onde a ferrugem não pode corrompê-lo, pois lá nada envelhece; onde os vermes não podem roê-lo, porque lá nada se corrompe; onde os ladrões não podem roubá-lo, pois lá não há fraude, nem violência. O melhor meio de ajuntar tesouros consiste, portanto, em empregar os bens terrenos e perecíveis às boas obras, transformando-os, assim, em bens espirituais, eternos e incorruptíveis. Não procuremos acumular riquezas frágeis e perecíveis nesta terra, que um dia devemos deixar; antes, acumulemos méritos no céu, onde estes serão preservados para nós e abundarão para nosso benefício, enquanto esperamos que nos juntemos a eles para desfrutá-los eternamente. Diz São Jerônimo:

“Que loucura levar nosso tesouro para o lugar de onde devemos sair, em vez de mandá-lo adiante de nós para onde devemos viver sempre! Deposite tua riqueza onde está tua verdadeira morada”.

Diz São Gregório:

“Os justos se esforçam pouco para construir e acumular riquezas neste mundo, porque se consideram  como peregrinos e estrangeiros; e como eles não têm outro desejo senão o de serem felizes em sua verdadeira pátria, recusam uma aparente felicidade na pátria estrangeira”.

Diz São Crisóstomo:

“Quem põe o seu tesouro neste mundo, nada tem a esperar no céu; por que então deveria levantar os olhos para esta pátria celestial, se não tem nada para encontrar lá? Como todo mundo deseja chegar ao lugar onde sabe que suas riquezas estão guardadas, é bem-aventurado quem as colocou no céu, assim seu espírito está constantemente ligado ao céu; tende tu para esse objetivo único com todas as tuas forças e com todo o ardor de teus desejos, porque, acrescenta Jesus Cristo, onde está o teu tesouro, isto é, o que amas e o que desejas, também está o teu coração e o teu afeto”.

Diz Santo Agostinho:

“O amor é o guia da alma; ele a leva aonde ele próprio vai; e pode-se dizer que a alma está verdadeiramente no que ama do que no corpo que ela anima”.

Diz São Fulgêncio:

“Amemos as coisas celestiais e coloquemos nossas riquezas no céu. Quer saber onde está o teu tesouro? Examine o que mais frequentemente ocupa tua mente; o objeto de teus pensamentos frequentes é naturalmente o que mais amas, e esse objeto de teu amor é o teu tesouro”.

Diz São Gregório:

“O coração do homem se divide em diversas partes conforme o número de afetos destinados a objetos diferentes”.

Diz São Crisóstomo:

“Tenha cuidado ao acumular riqueza neste mundo, pois nele trabalham a ferrugem, vermes e ladrões. Mesmo que as riquezas evitem os graves inconvenientes, não deixa de ser verdade que teu coração, apegado às coisas perecíveis, será reduzido à servidão; de homem livre converterás em um escravo; tua inteligência, absorvida pelos pensamentos terrenos, não estará mais em condições de se elevar às coisas eternas que ela abandonou. Além disso, quando falamos da vida futura e do paraíso aos pagãos, eles não podem acreditar em nós, porque consideram, não nossos discursos, mas nossas obras. E quando vêem os cristãos construindo magníficas habitações, adquirindo terras, formando banhos e jardins de delícias, não podem imaginar que esperam outra vida melhor; ‘pois’, dizem eles, ‘se houvesse outro reino, eles seriam vistos vendendo o que possuem aqui embaixo e enviando suas riquezas a este outro reino’. Façamos bom uso dessas considerações; vamos sair de nosso erro desastroso; aquele que se torna escravo do dinheiro, está em grilhões e se dirige aos males vindouros. Aquele, ao contrário, que souber evitar esses desejos vãos, desfrutará de uma dupla liberdade. Para nós cristãos, quebremos esse jugo opressivo da ganância e elevemos nossos corações e pensamentos para o bem eterno”.

Diz Santo Anselmo:

“Despreze as coisas criadas e perecíveis e tome cuidado para não dar o teu amor a elas. Deixe o mundo ser completamente estranho a ti; eleve teus olhares e teus pensamentos ao céu, esta pátria dos eleitos que contemplam incessantemente a majestade divina; pois onde está o teu tesouro, também deve estar o seu coração. Não encarcere tua alma à carteira; não prenda teu coração ao dinheiro; o grande peso de tais coisas o impedirias de subir aos céus”.

Diz São Jerônimo:

“Estas palavras de nosso divino Mestre, não deve ser entendida apenas de ouro e prata, mas também de todos os bens e todos os prazeres. O glutão não faz do seu ventre o seu tesouro e o seu deus? O voluptuoso de seus prazeres, o avarento de seu dinheiro, e assim de todas as outras paixões? De fato, aquele que se abandona a um vício está, por assim dizer, acorrentado a ele; a ele se apega seu coração, faz dele seu tesouro e então, para seguir sua paixão, não tem medo de se distanciar de Deus. Se, portanto, o teu tesouro está no céu, teu coração será puro, pois nada há de impuro nas coisas celestiais; se, ao contrário, se apegas à terra correndo atrás de teus gozos e de seus bens frívolos, como poderá manter puro o teu coração?”.

            Diz Santo Agostinho:

“A matéria mais preciosa, quando misturada com uma matéria inferior, deteriora-se e degrada-se, sem, contudo, alterar a sua natureza; assim o ouro misturado com a prata, mesmo o mais puro, é contaminado por essa união. Logo, de mesmo modo nossa alma é contaminada pelos desejos das coisas terrenas, mesmo quando estes são puros em sua natureza”.

            Diz Ricardo de São Vítor:

“Portanto, tudo o que podemos desejar, tudo o que podemos temer neste mundo, devemos sacrificá-los voluntariamente para adquirir a liberdade do coração”

Pois, acrescenta Santo Agostinho:

“Quem quiser acumular no céu deve desprezar todos os bens da terra!”.

            Para evitar qualquer tipo de medo ou desconfiança em relação às necessidades da vida, que poderia ter surgido no coração daqueles a quem Ele se dirigia, por causa de sua situação precária, Nosso Divino Salvador acrescenta:

“Não temais, pequeno rebanho, que sois humildes e pobres; pois, agradastes ao vosso Pai celestial, Ele vos dará Seu reino, não por causa dos vossos méritos, mas por puro efeito da sua liberalidade e da sua divina bondade para convosco”.

Como se Ele tivesse dito:

“O reino dos céus está preparado a vós; portanto, não deveis vos preocupar com as coisas terrenas. Aquele que, de fato, tem a esperança do céu, onde todos os bens lhe serão abundantes, não pode se preocupar com os bens terrenos e perecíveis”.

Jesus os chama de rebanho, por causa de sua docilidade na fé; e pequeno, por causa de sua humildade e pobreza voluntária, duas virtudes que conduzem infalivelmente à felicidade eterna. Ou, novamente, Ele quer dizer um pequeno rebanho de eleitos, em relação ao grande número de réprobos; pois quão poucos são seus fiéis e seus eleitos comparados com os infiéis e os réprobos! Peço a Deus que um dia eu esteja neste pequeno número – mesmo que seja eu o último entre eles – e que possa compartilhar alegrias eternas com todos eles!

Como a prática dos conselhos evangélicos também nos leva à perfeição e, consequentemente, ao reino dos céus, Jesus Cristo acrescenta: “Vende o que tens e distribui aos pobres, assim se chega ao céu”. Preparem vossos cofres celestes e tenhais um lugar para colocar em segurança o preço de vossas esmolas, este é um tesouro que nunca envelhece e nunca se deteriora; isto é, confias sem medo o teu tesouro nas mãos dos pobres, eles bem saberão transportá-lo, mesmo entre os inimigos e ladrões, para um local seguro, ou seja, no céu, onde será mantido intacto a ti pela eternidade.

Se pelas esmolas tivermos a diligência de acumular para nós um tesouro no céu, nosso coração suspirará incessantemente por essa finalidade, até que sejamos colocados em posse dele. Jesus Cristo fala então aos seus apóstolos da necessidade de ter um olho simples, isto é, uma intenção pura em todas as nossas obras. Seu olho, Ele diz, é a luz do seu corpo. A palavra corpo é tomada aqui em sentido figurado e moral para o conjunto de todas as nossas ações, assim como nosso corpo material é a reunião de todos os nossos vários membros. Ora, assim como o olho governa todo o corpo material e dirige as operações de cada membro, também o olho moral, isto é, a intenção, deve governar todo o corpo moral de nossas ações e dirigir cada uma de nossas ações para o objetivo que lhe é próprio. Se, portanto, teu olho for simples, isto é, se tua intenção for pura, sem dissimulação e sem erro, todo o teu corpo será iluminado, ou seja, todas as tuas ações serão boas e meritórias, mesmo que os homens não as julgassem assim, contanto, porém, que essas ações sejam boas em si mesmas, ou pelo menos indiferentes e lícitas, caso contrário, a boa e correta intenção não pode legitimá-los. Não importa, diz o Sábio em Provérbios, com que intenção fazes uma má ação em si mesma. Os homens só vêem o mal e não penetram no espírito que o dirige. Se, ao contrário, teu olho for mau, isto é, se tua intenção for perversa, todo o teu corpo ficará em trevas, ou seja, todas as tuas ações serão obscurecidas e maculadas pelos pecados e se tornarão maus, mesmo que sejam bons por natureza, e assim pareçam aos olhos dos homens; pois um ato que é bom em si mesmo torna-se mau pela perversidade da intenção que o produz. Portanto, vigiai para que tua intenção não seja má, pois corromperá todo o bem que poderias fazer. Se tua luz dentro de ti é assim transformada em escuridão, isto é, se tua ação, embora boa em sua natureza – e designada aqui pela luz – se torna má por falta de intenção reta, então o que será a própria escuridão? Isto é, quão pior será a má ação em si mesma, aqui significada pelas trevas, se for o resultado de uma má intenção? De fato, quando um ato ruim em si mesmo é produzido com uma má intenção, então a escuridão, ou melhor, a malícia é em dobro, pois à má ação está unida a má intenção. Que cada um considere, portanto, não o que faz, mas com que espírito age, e seu exame incida especialmente sobre a pureza de tua intenção, sem a qual nossas obras não têm valor. Se, portanto, fizeres uma boa ação com uma intenção reta e pura, sem qualquer outro motivo que possa perturbar tua consciência, receberás neste mundo a luz da graça e no próximo os esplendores da glória. Se, pelo contrário, fizeres o bem com intenção perversa, serás julgado, não pelo bem que a tua ação possa ter produzido, mas pela má intenção que fora dirigida. Cuide, pois, dos sentimentos do teu coração, que são a luz da tua alma, para que não sejam obscurecidos pelas trevas do vício, para que tudo o que fizeres, faça-o para Deus, e que as tuas ações subindo ao céu atraiam para ti novas graças e que Ele seja propício a ti.

Como se aqueles que desejam ao mesmo tempo as riquezas da terra e os tesouros do céu pudessem imaginar, que com uma intenção reta e pura, poder-se-ia agradar a Deus e ao mundo, e assim adquirir bens terrenos e os bens celestes. Nosso Senhor Jesus Cristo demonstra que isso não é possível ao propor o exemplo de dois mestres contrários. Ninguém, diz Ele, pode servir ao mesmo tempo dois senhores iguais em poder, mas opostos em seus pensamentos e desejos. Pois, como diz o venerável Beda em seu quarto livro sobre São Mateus:

“Não se pode amar coisas temporárias e coisas eternas ao mesmo tempo.”

E Santo Agostinho acrescenta:

“O mesmo olho não pode fixar-se ao mesmo tempo no céu e na terra. O amor do mundo e o amor de Deus não podem habitar juntos no mesmo coração, assim como os mesmos olhos não podem contemplar o céu e a terra ao mesmo tempo”.

Um antigo filósofo, Aristóteles, observou em seu tratado sobre os animais que os pássaros fecham os olhos usando a pálpebra inferior, enquanto os grandes animais os fecham usando a pálpebra superior. Pelos pássaros devemos entender os homens espirituais que fecham os olhos aos bens terrenos e perecíveis; e pelos outros animais, homens mundanos que, fechando os olhos para as coisas celestiais, só têm olhos para as coisas terrenas.

Diz São Crisóstomo:

Jesus Cristo fala de dois mestres que ordenam coisas opostas, pois se desejassem e ordenassem a mesma coisa, não seriam diversos, mas um, pois a diversidade de seres em que há o amor e a concórdia entre eles formam somente um. Ora, esses dois senhores, que não podem ser servidos ao mesmo tempo, são o vício e a virtude, o céu e a terra, Deus e o diabo, a carne e o espírito, pois exigem de nós coisas absolutamente opostas e, portanto, é preciso abandonar um para obedecer ao outro. Além disso, é isso que Jesus Cristo nos declara positivamente quando acrescenta: não podeis servir a Deus e ao dinheiro (Mamon).  A expressão mamon na língua siríaca significa riqueza, e os sírios deram o nome de Mamon ao demônio que preside as riquezas e que tenta os homens com a atração do dinheiro. Não, porém, que as riquezas estejam à sua disposição e que ele possa dá-las ou levá-las a quem quiser, sem a permissão de Deus, mas porque as usa para tentar os homens e retê-las em suas malhas. Embora o homem não possa servir a Deus e às riquezas, ele ainda pode servir a Deus com as riquezas. Servir as riquezas é ser escravo do diabo que por elas nos tenta e seduz. Serve às riquezas quem as ama por si mesmas, que nelas coloca seu fim e sua felicidade, que as busca com paixão, as retém com avareza e as mantém como se fossem suas escravas. Por outro lado, serve a Deus com riqueza, quem a usa em boas obras, que a distribui como quer, porque é o dono dela, mas que a usa como instrumento para fazer o bem”.

Diz Santo Ambrósio:

“As riquezas são para os ímpios um obstáculo à salvação e um instrumento de condenação, enquanto que para os bons são um meio de praticar a virtude e chegar à glória eterna”.

Diz São Crisóstomo:

“Dois senhores para servir nos são propostos, Deus e as riquezas, ou seja, o demônio que é o deus das riquezas. Um nos aconselha a compaixão e a misericórdia, o outro a avareza; um quer nos levar à vida, o outro quer nos levar à morte; um quer nos salvar, o outro quer nos destruir; qual dos dois devemos obedecer de preferência? Não é antes àquele que nos convida a uma vida gloriosa do que àquele que quer nos conduzir à morte eterna? O que poderia ser mais terrível do que abandonar a servidão a Jesus Cristo para correr atrás das riquezas? O que, pelo contrário, é mais desejável e mais consolador do que desprezar as riquezas para unir-se a Deus com afeto e com amor?

É óbvio, por tudo o que acabamos de dizer, que ninguém pode servir a dois senhores e, no entanto, apesar dessa evidência, ainda há pessoas bastante tolas para querer realizar essa impossibilidade, semelhante àquelas de quem se fala no quarto livro dos Reis, que, embora temendo a Deus, adoravam ídolos. Aprendamos de uma vez por todas que amar a riqueza por si mesma e amar a Deus por si mesmo, e ambos como um fim último, para que sejamos ao mesmo tempo servos devotados de um e de outro, é algo completamente impossível e impraticável. No entanto, subordinando um ao outro, podemos desejar riqueza para Deus e por causa d’Ele. Sem dúvida, um ato corporal pode ter um fim temporal, desde que esse fim seja então referido a Deus; se, ao contrário, Deus é o fim secundário de nossas ações, e seu fim último é um objeto temporal, então essas ações se tornam más. De fato, um objeto buscado a fim de atingir um outro é necessariamente inferior (subordinado) àquele último. Sem dúvida, em suas ações pode-se propor dois fins, um temporal e outro eterno, contanto que um esteja subordinado ao outro, e que o fim eterno que se propõe a si mesmo seja o fim último (ou seja, o temporal subordinado ao eterno), pois de uma mesma intenção pode-se partir várias ações, mas não se pode ter vários fins, a menos que um esteja subordinado ao outro.

Jesus, dirigindo-se então aos seus apóstolos, nos quais quis sobretudo inspirar o desapego e o desprezo do mundo, exorta-os a não se preocuparem com as coisas necessárias à vida, como o alimento e o vestuário, e por isso dirigiu-se não só aos seus apóstolos, mas também a todos os seus sucessores e, em geral, a todos aqueles que desejam chegar à perfeição, ensinando-lhes que não devem se preocupar com os bens temporais, mas que, tendo alimento e roupa, devem ser felizes. Ele também queria mostrar a todos os pregadores do Evangelho que eles não deveriam se preocupar com as necessidades da vida presente, mas prevendo que lhe diriam: “Se renunciamos a tudo, como podemos viver?” Ele acrescenta, resumindo tudo o que havia dito: “É por isso que vos digo: Não solicite demais as coisas necessárias para sua alimentação e vestes”. Como se dissesse: “Se queres servir a Deus adequadamente, deve renunciar às riquezas e às benesses que elas trazem consigo”. Ele não diz: “Não trabalharás, não procurarás o teu alimento e a tua roupa”, mas disse: “Não vos preocupeis com isso, não vos deixeis ceder a uma solicitude pecaminosa que perturbaria a vossa alma, que vos afastaria do serviço de Deus e vos faria esquecer os bens eternos”.

Diz o venerável Beda:

“Jesus Cristo ordena que não nos preocupemos com o que teremos para comer, mas porque estamos condenados a ganhar nosso pão com o suor do nosso rosto, devemos trabalhar, evitando ceder à solicitude pecaminosa sobre isso”.

            São Crisóstomo diz:

“Devemos adquirir nosso pão de cada dia não por nossos deveres espirituais, mas por nosso trabalho corporal, e Deus o dá abundantemente ao que trabalha, como recompensa por sua atividade, enquanto o recusa ao preguiçoso como punição por sua negligência. [...] Jesus Cristo, não nos proíbe de nos ocuparmos de comer, beber, vestir; mas nos preocuparmos com o que teremos para comer, beber e nos vestir. De fato, comer, beber e vestir são coisas essenciais para a vida presente, mas preocupar-se com a suntuosidade das roupas ou com a delicadeza dos alimentos é ser culpado de gula, ou avareza, ou vanglória”.

            O Venerável Beda diz:

“Com essas palavras, Nosso Senhor parece culpar aqueles que, desprezando a comida ou a roupa comum, buscam comida mais delicada ou pior, roupas mais elegantes ou mais grosseiras do que aquelas com as quais convivem em comunidade”.

Podemos aqui, em um sentido espiritual, entender por gula de comida, por vanglória de roupas e por avareza. Isto é, aliás, o que o Evangelho quer que entendamos em outro lugar onde lemos: Havia um homem rico, que é a ganância ou avareza; que se vestia de púrpura e linho, isso é vaidade; e que todos os dias se sentava à mesa esplendidamente servida, isso é gula. Ó todos vós, então, quem quer que sejais, que renunciastes à glória do mundo para abraçar o serviço de Deus, não vos preocupeis com as necessidades da vida, como comida e vestuário; pois preocupar-se com tais coisas é ocupar-se com coisas vãs. O próprio Salvador nos confirma isso, Ele nos mostra que não precisamos nos preocupar com tais coisas. De fato, se Deus, por pura bondade e seu amor, nos concedeu os maiores dons, ele poderia nos recusar o mínimo? Deus nos deu o corpo e a vida, portanto também nos dará a roupa e o alimento; pois, finalmente, o corpo não foi criado para o vestuário, nem a vida para o alimento, mas, ao contrário, o vestuário foi criado para o corpo e o alimento para a vida; e, portanto, o homem não precisa se preocupar, nem temer que as coisas criadas para ele lhe sejam negadas.

Diz São Crisóstomo:

“Se Deus não quisesse preservar-te, Ele não o teria criado; mas como Ele mesmo estabeleceu que a vida do homem seria sustentada e preservada por meio da alimentação, e que seu corpo seria coberto com roupas, certo é que infalivelmente lhe fornecerá essas duas coisas. Aquele que nos deu a vida sem nossa ajuda e nossa participação, saberá fornecer-nos também, sem nós, os meios para conservá-la; é, portanto, muito tolo quem, para obter o mínimo, isto é, comida e roupa, sacrifica a mais, isto é, o corpo e o vida”.

Jesus Cristo, querendo então provar o que acabara de dizer, e fortalecer nossa fé e nossa confiança neste assunto, traz vários exemplos, concluindo do mais para o menos, para nos persuadir de maneira mais óbvia. E antes de tudo, no que diz respeito à alimentação, Ele toma por exemplo criaturas sem razão, os pássaros que voam no ar. Eis que Ele nos diz, eles não semeiam nem colhem para obter seu alimento; eles não se amontoam em celeiros por antecipação do futuro, mas vosso Pai celestial, sem a participação deles, os alimenta; portanto, e com mais razão, ele alimentará os homens que lhe são muito mais queridos, sem que eles tenham que se preocupar. A criatura racional, que é o homem, não é mais preciosa aos olhos de Deus do que as criaturas sem razão, como os pássaros? Os animais são feitos para o homem; o fim para o qual uma coisa é criada é necessariamente mais nobre do que essa própria criatura. Se, portanto, Deus alimenta os pássaros exigindo deles apenas que ajam em conformidade com sua natureza, do mesmo modo alimentará os homens, com a única condição de que se  adequem à sua natureza racional para fazer o que a razão exige de fato. Ora, assim como a natureza dos pássaros é viver, como dissemos, assim também a natureza do homem é viver de acordo com o ditame da reta razão, que consiste em não buscar com uma solicitude imoderada as necessidades que a natureza negou-lhe, isto é, comida e roupa. Também, falando dos pássaros, Jesus Cristo não diz que eles não voam para os grãos que devem alimentá-los, porque Ele não proíbe o trabalho e a prudência; mas o que ele proíbe é inquietação e avareza. Diz São Crisóstomo:

“Todas as aves foram criadas para o homem, e o homem foi criado para Deus. Se, então, Deus provê alimento para os pássaros criados para o homem, como poderia negar ao homem que foi criado para si mesmo?”

Nosso Senhor então fala de roupas e, para isso, dá dois exemplos diferentes. A primeira é extraída do próprio homem, ou seja, do tamanho de seu corpo. Deus deu ao corpo do homem, e sem sua participação, o tamanho que Ele julgou adequado e, por mais força que tenha o homem ou por mais que padeça de algo, não pode adicionar a si a altura de um côvado.  Ora, como a vestimenta deve ser proporcional ao tamanho do corpo do homem, e este tamanho lhe foi dado sem qualquer participação de sua parte, segue-se naturalmente que a vestimenta lhe será dada da mesma maneira. O segundo exemplo é tirado de objetos estranhos ao homem, dos produtos da terra, do lírio e das ervas dos campos. Essas plantas crescem naturalmente, e a Providência Divina as adorna de acordo com seu gênero e espécie. Também, Jesus Cristo nos diz: Eles não trabalham para se adornar com cores diversas; eles não fiam para tecer roupas magníficas; é Deus quem os veste com suas cores esplêndidas (pois a cor é a vestimenta das flores), e sua beleza supera até as vestes reais, de modo que o próprio Salomão, o maior rei do mundo, nunca se vestiu tão magnificamente como as flores. A arte, é verdade, pode imitar a natureza, mas as obras de arte nunca alcançarão a perfeição das obras da natureza. E, de fato, diz São Jerônimo:

“Que seda, que púrpura, que tinta poderia ser comparada com a flor do campo? Quem poderia imitar o vermelho puro da rosa ou a brancura do lírio? Que cor de púrpura poderia superar a de uma simples violeta? Que os olhos julguem aqui o que minhas palavras não podem expressar”.

            Diz São Crisóstomo:

“Deus revestiu as ervas dos campos com tanta magnificência para nos mostrar seu poder e sua sabedoria, para que em toda parte admiremos sua grandeza, pois não apenas os céus, mas a terra também proclama a glória do Altíssimo”.

De tudo o que Ele acabou de dizer, o Salvador conclui que Deus cuidará de fornecer aos homens as coisas necessárias às vestimentas sem que eles tenham que se preocupar com isso de maneira imoderada. “Pois”, Ele acrescenta, “se Deus se agrada de adornar com tantas cores, adornar com tanta magnificência e beleza a grama dos campos que é hoje e que amanhã será lançada no forno” o Evangelho emprega esta última expressão, porque então, em certas localidades, se usava, por meio de lenha, para aquecer os fornos, de ervas e outras coisas semelhantes) – “quanto mais Ele se apressará em fornecer as roupas necessárias, homens de pouca fé, sem que tenhais de se preocupar!”. Como se dissesse: “Se Deus cuida tanto das flores que, brotando hoje para serem vistas por um momento, perecem e desaparecem no dia seguinte, o que ele não fará em favor dos homens criados à sua imagem e destinados a viver para sempre?”. Jesus Cristo aqui chama homens de pouca fé aqueles que, por falta de fé, estão indevidamente preocupados com as necessidades da vida presente. Os santos são comparados aos pássaros e com razão, porque como os pássaros nada possuem neste mundo, não trabalham para adquirir os bens terrenos que desprezam, e só pela contemplação ascendem aos bens celestes aos quais aspiram e assim tornar-se como anjos. Assim, a santidade consiste especialmente em três coisas: a pobreza voluntária, o santo descanso da contemplação e a elevação da alma aos bens eternos. Podemos, portanto, entender pelos pássaros do céu os homens verdadeiramente contemplativos; não semeiam, não colhem, não se amontoam em celeiros, ou seja, não interferem nas coisas e nas incertezas do século, mas Deus toma para eles todos esses cuidados e lhes dá a necessidades da vida atual. Por lírios do campo também podemos significar homens verdadeiramente castos; a brancura e brilho de sua pureza; o bom odor das virtudes que praticam, tanto por seus esforços como pela graça de Deus, deve atrair nossos olhares sobre eles e nos obrigar a louvá-los e principalmente a imitá-los; vamos então imitá-los pela regularidade de nossa conduta, pela santidade de nossos pensamentos e pela decência e pureza de nossas conversas.

Ensinados na escola do Salvador, não nos preocupemos com as necessidades da vida; Deus saberá bem, no devido tempo, provê-lo em nosso favor, se, no entanto, não O removermos de nós por nossa desobediência. Mas se não tivermos certeza das coisas temporais, como podemos esperar pelas eternas? O homem de fé não teme a fome, mas o homem de pouca fé, que está sempre incerto até mesmo nas menores coisas, não tem grande esperança de bênçãos eternas. Aquele que compreende o que o homem é de fato, não se desespera de Deus; mas se desespera de Deus, aquele que não O compreende; pois Deus está com o homem e o homem deve estar com Deus. Confiar na criatura é desconfiar do Criador.

Diz Santo Anselmo:

“Que nunca a apreensão de uma futura esterilidade [da terra] ou de uma escassez vindoura te perturbe ou te assuste; mas se abandone com plena e inteira confiança na Providência Divina, que adorna as flores do campo e alimenta os passarinhos. Que ela (a Providência) seja seu único recurso, seu celeiro de abundância, suas riquezas, suas delícias, seu tesouro, em uma palavra, que ela ocupe o lugar de tudo”.

O Salvador menciona aqui os três principais bens que Deus deu ao homem: alma, corpo e bens terrenos. A alma deve se submeter ao seu Criador, como seu mestre, cumprindo sua lei; o corpo deve submeter-se à alma executando toda a sua vontade, e os bens devem submeter-se ao mesmo tempo a Deus, à alma e ao corpo. A Deus, na medida em que devem ser comunicados aos pobres; à alma, porque não devem ser amados sem medida, e ao corpo, porque devem fornecer-lhe as coisas necessárias à sua existência. Mas infelizmente quantos ricos não vemos em nossos dias invertendo essa ordem tão natural! A maioria, de fato, não quer entregar suas riquezas a Deus, compartilhando-as com os pobres, nem à alma, porque a amam mais do que a tudo, nem ao corpo, porque lhe fornecem, com seus meios, em abundância até ao supérfluo.

Diz São João Crisóstomo:

“Para inculcar em nós ainda mais fortemente o que Ele havia dito anteriormente, Jesus Cristo repete: “Não andeis ansiosos, dizendo: ‘Que comeremos, que beberemos, que vestiremos?’”. Ao dizer “Não se preocupe”, o Salvador não quer dizer: “Não trabalhe”, mas apenas: “Não apegue seu coração às coisas da terra, pois pode-se trabalhar sem ser escravo das obras de suas mãos”[...] Se não devemos preocupar-nos até mesmo com as coisas indispensáveis ​​à vida, que castigo não sofrerá quem, para adquirir o supérfluo, sacrifica o sono e não tem medo de roubar os bens alheios? Portanto, não nos deixemos seduzir por todas essas vaidades perecíveis”.

As nações, isto é, os gentios ou os pagãos, procuram com avidez, com uma solicitude exagerada ou culposa tudo o que tem a ver com alimentos e roupas, pois, negando a ação da Providência Divina nas coisas deste mundo , eles não têm fé nem esperança em bens futuros e, portanto, buscam com ardor os prazeres da vida presente. Ou ainda, as nações, isto é, os mundanos, buscam todas essas coisas com paixão, porque preferem os bens presentes aos bens futuros, e sua solicitude a esse respeito os torna semelhantes aos infiéis. Com efeito, que diferença pode haver entre um infiel e um cristão cujo coração está constantemente agitado, atormentado pelo amor aos bens perecíveis e pelos esmero que tem para adquiri-los? Infelizmente quantos não vemos entre nós que correm atrás de todos esses prazeres com mais ardor do que os próprios pagãos! “Quanto a vós”, disse Jesus Cristo aos seus apóstolos, “não se preocupem com todas essas coisas”; vosso Pai Celestial, que tem misericórdia para todos os seus filhos, sabe do que precisais, que são necessários para viverdes e servi-Lo nessa terra; Ele os dará infalivelmente a vós, a menos que por suas infidelidades tragas algum obstáculo a isso. O que é o Pai, merecedor desse nome, que recusa aos filhos o que é necessário, quando os vê necessitados? Deus quer, porque Ele é teu Pai; Ele pode, porque Ele é teu Pai Celestial; visto que, portanto, Ele tem poder e vontade, não há dúvida de que Ele lhe dá o que é útil para tua Salvação.

Diz Rábano Mauro:

“Que rei se recusa a pagar suas tropas fiéis e dedicadas? Que senhor não dá comida aos seus servos? Que pai poderia privar seus filhos das necessidades da vida?”

Diz São Crisóstomo:

“Jesus Cristo para inspirar mais confiança aos seus apóstolos e fortalecer a sua esperança, não lhes diz: ‘Deus sabe’, mas ‘o vosso Pai conhece as vossas necessidades’. Agora, se Ele é teu Pai, Ele poderá abandoná-lo em suas necessidades mais urgentes, o que seu Pai, segundo a carne, não faria? Deus conhece melhor do que vós, que os suportam todas as misérias a que está exposta nossa natureza fraca, pois foi Ele mesmo quem criou, e saberá ajudá-los nos sofrimentos e nas privações que terão de perseverar aqui embaixo em virtude de Sua santa vontade”.

Diz Santo Agostinho:

“Deus sabe perfeitamente o que nos deve conceder para nossa consolação e o que deve nos privar para exercitar nossa paciência, pois o próprio homem não recusa comida ao gado que o carrega sem causa e sem razão; se, portanto, a esse conhecimento Ele une a vontade, porque é nosso Pai, e o poder, porque tudo pode, não há dúvida de que Ele suprirá todas as nossas necessidades no devido tempo”.

Notemos aqui que, às vezes, Deus nos deixa expostos a penosas privações relativas às coisas necessárias à vida, e isso por várias razões, mas sempre úteis à nossa salvação: primeiro, em punição pelas faltas que tenhamos cometido; segundo, para exercitar em nós a virtude da paciência; terceiro, para reprimir a nossa avareza, porque a nossa grande ânsia de buscar os bens terrenos muitas vezes faz com que nos sejam tirados; quarto, para castigar nosso amor ao supérfluo (não é justo, de fato, que aquele que corre atrás do supérfluo às vezes seja privado até do necessário?); quinto, para punir em nós o abuso dos bens temporais, porque aquele que abusa das criaturas de Deus merece ser privado delas mesmo quando delas necessita; sexto, para corrigir nossa ingratidão, porque aquele que não tem gratidão para com Deus pelos benefícios que d’Ele recebeu, é indigno de receber novos; sétimo, para nos fazer entender que esses bens temporais vêm de Deus e não de nós, e que não nos são devidos, e Deus, ao tirá-los de nós, nos mostra que Ele é teu mestre soberano.

Deus, portanto, nos proíbe todo medo, toda ansiedade exagerada, sem, no entanto, nos proibir o trabalho e a solicitude submetidos à Providência. Ele nos proíbe essa solicitude desordenada que nos afasta dos bens espirituais e nos faz preferir os perecíveis a eles, mas nos permite essa diligência moderado, conforme a justa razão, e que se enquadra na virtude da prudência, pois de outra forma seria tentar a Deus (esperar d’Ele as coisas necessárias para a vida, sem se dar ao trabalho de obtê-las pelos meios humanos deixados à nossa disposição).

Os bens temporais podem ser amados e procurados sob duas relações diferentes; Deus se levanta contra o primeiro, proibindo-nos de acumular, e contra o segundo, proibindo qualquer preocupação exagerada com relação a eles.

Observemos aqui que existem três tipos de cuidados: O primeiro vem da natureza, que é o trabalho e prudência, é permitido ao homem (que nunca deve tentar a Deus), desde que Deus tenha a primazia sobre tudo. É em virtude desta solicitude natural que se disse a Adão: “Trabalharás e comerás o teu pão com o suor do teu rosto”; Jesus Cristo também tinha algum dinheiro em reserva, cuja custódia foi confiada a Judas. A segunda vem do demônio; faz negligenciar os bens espirituais para correr atrás dos bens terrenos, seja em relação à quantidade e além do necessário (isto é, a avareza), seja em relação à qualidade (que é o luxo e fineza); esta solicitude é criminosa e é expressamente proibida. O terceiro vem da graça, consiste nas obras de justiça e na compaixão para com o próximo, é em virtude desta solicitude que o grande apóstolo disse: “Todas as minhas atenções, todos os meus cuidados diários são para as Igrejas que estabeleci”. É nos ordenado, porque faz parte da caridade fraterna. Assim, o primeiro é permitido, o segundo é condenável, o terceiro, ao contrário, é recomendado e meritório.

De tudo o que havia dito anteriormente, Jesus Cristo concluiu que o homem deve buscar apenas, não bens terrenos, mas bens eternos. Designa os bens sob uma tríplice denominação: bens celestes, bens espirituais e bens temporais. Os primeiros são os bens da glória, os segundos os da graça, os terceiros os da fortuna. Os primeiros são os maiores, os segundos são inferiores, os terceiros são os menores de todos. O primeiro deve ser o objeto único e contínuo de todos os nossos desejos; a segunda deve dirigir todas as nossas obras para que possamos merecê-las; o terceiro é apenas um acréscimo ao sustento de nossa natureza humana. Assim o Salvador nos diz: “Não se preocupe em adquirir bens terrenos”; mas, acima de tudo, como único objeto de todas as suas afeições, o objeto principal de todos os seus atos, seu fim último e o único desejável em si mesmo, busque o reino de Deus, isto é, a vida eterna e os bens celestiais. No medo de se desviar, de enganá-lo na busca desse bem soberano, busque em segundo lugar o caminho certo que deve levá-lo até lá e faça com que todas as tuas ações sejam meritórias, ou seja, a justiça de Deus, cumprindo com fidelidade à sua lei e aos seus mandamentos. Então, todas as coisas necessárias à vida, a saber, os bens temporais, que faz consistir apenas em alimentos e roupas, serão dados a ti como um acréscimo. Eles serão dados a ti, se, no entanto, cooperarares com teu trabalho; pois se às vezes Deus diminui os frutos da terra para punir os pecados dos povos, também os torna mais abundantes para recompensá-los por suas boas obras. Deus também nos tira os bens desta vida para testar nossa virtude, exercitar nossa paciência e até mesmo para nos ganhar a coroa do martírio; e quando Ele nos dá, é para nos consolar e nos excitar à gratidão; pois para aqueles que amam o Senhor, tudo acaba em bem. Este médico celeste sabe melhor do que nós o que nos é vantajoso; também, sem nos proibir absolutamente todos os cuidados relativos às necessidades da vida presente, ele nos mostra que devemos buscar antes de tudo os bens espirituais, depois, em segundo lugar, os bens temporais, que nos serão dados, além disso, se não colocarmos nenhum obstáculo para isso. E isso, com receio de que, ao buscar os bens temporais, sejamos desviados dos bens espirituais ou que tenhamos dois fins diferentes (e contraditórios) em vista.

Diz Santo Agostinho:

“Quando Jesus Cristo nos manda buscar primeiro o reino de Deus e depois os bens temporais, Ele nos marca não a ordem do tempo, mas a ordem da dignidade e da importância; o primeiro é o verdadeiro e único bem, o segundo é o meio necessário para alcançá-lo; de modo que devemos buscar os bens terrenos apenas para chegar ao reino de Deus, e não na direção oposta, invertendo a proposição, buscar o reino de Deus para chegar aos bens temporais. Com isso, Jesus nos mostra claramente que não devemos desejar as coisas terrenas, nem fazer o bem que fazemos para obtê-las, embora sejam necessárias para nós; mas que todo bem que fazemos, devemos fazê-lo especialmente para adquirir, com a ajuda e a graça de Deus, o reino eterno. Os santos, nossos predecessores, buscavam acima de tudo o reino celestial, e Deus, em sua bondade, deu-lhes como bônus as riquezas e o poder deste mundo, como vemos pelo exemplo do grande Constantino. Mas infelizmente em nossos dias, a maioria dos cristãos busca o reino deste mundo de preferência ao reino de Deus, e cuida mais dos bens e riquezas da terra do que da salvação das almas e da glória da Igreja, por isso, deve-se temer por eles que perderão ambos ao mesmo tempo”.

Jesus Cristo então nos proíbe de nos preocuparmos com o futuro; não se preocupe com o amanhã, Ele nos diz, ou seja, não se preocupe com o futuro; seria torná-lo culpado se se preocupasses hoje, por antecipação, com o que só acontecerá amanhã. Portanto, diz São Jerônimo:

“O Salvador, ao proibir-nos de pensar no futuro, autoriza-nos a dar atenção às coisas presentes. Basta pensar no presente e deixar as coisas futuras para Deus, pois são incertas.”

Diz Pedro Cantor:

“Jesus Cristo, a princípio nos proibiu toda preocupação culposa relativa às coisas presentes, isto é, coisas que acontecem no decorrer de um ano, porque em um ano semeamos, colhemos, colhemos o que Deus quer nos conceder, e por isso são chamados de presentes. Aqui agora, ele nos proíbe qualquer preocupação com coisas futuras, isto é, que se estendam além de um ano. De fato, não é apropriado que o homem se preocupe com o que a Providência Divina deseja obter para ele. Se, portanto, nossa prudência ultrapassa um ano, torna-se culpável, como a do abade que reservou alimentos por três anos. E, por isso, honramos com o nome de homens prudentes e sábios aqueles que assim procedem, embora ajam contra a vontade de Deus, que só nos permite cuidar das coisas presentes. Acumular bens para o futuro é não confiar na Providência divina e ser culpado aos seus olhos”.

São Crisóstomo acrescenta:

“Quanto a esta palavra do nosso divino Mestre: “Não te preocupes com o amanhã”, posso dizer que nunca vi ninguém o observar em toda a sua extensão. Deus não nos manda orar pelos bens temporais, e ainda assim dedicamos todos os nossos pensamentos, colocamos todo o nosso cuidado, fazemos todos os nossos esforços para possuí-los. Mas saibamos que quanto mais nos esforçamos para adquirir os bens do corpo, tanto mais nos mostramos negligentes quanto aos bens espirituais que, no entanto, são os únicos necessários. Deus não quer que nos preocupemos com o amanhã, e com razão, porque como podemos contar com o futuro, quando nem temos certeza do presente”.

Diz Santo Anselmo:

“Lembre-se que cada dia pode ser seu último dia, e você não se preocupará com o dia seguinte”.

Diz Sêneca, em seu Tratado sobre a brevidade da vida:

“O homem deve regular cada dia de sua vida como se este fosse o último”.

Basta, portanto, pensar no presente e deixar o futuro, que nos é incerto, à disposição da Providência.

O dia de amanhã chegará com suas preocupações, ou seja, trará consigo suas dificuldades, pois o tempo, em sua marcha sucessiva, traz consigo novas necessidades, novas ansiedades adequadas a cada um de seus momentos, e que terás que lidar quando chegar a hora. Como se nos dissesse: “Quando o futuro chegar, cuidarás dele então, mas não antes, porque, como não o proíbo de se preocupar com as necessidades do dia presente, também permito que forneças para as necessidades do amanhã, mas apenas quando esse amanhã chegar”. De tudo o que acabamos de dizer, podemos concluir que a previsão, que nos leva a acumular bens para suprir as necessidades futuras quando elas surgem, é avareza que devemos evitar; mas, pelo contrário, essa solicitude pelas necessidades presentes é uma prudência louvável. Assim, confinemo-nos ao presente sem nos preocuparmos com o futuro. Diz-se na Escritura: Sufficit diei malitia sua, cada dia basta a sua malícia, isto é, a cada dia seus trabalhos, suas fadigas, suas dores, suas tristezas, suas angústias. Por esta expressão, malitia, não deve ser entendido o mal ou pecado que cometemos, mas o mal, isto é, as dores, os sofrimentos que suportamos em punição por nossos pecados; no estado de inocência, o homem estaria isento dessas dores. Por que antecipar pelo pensamento os momentos em que precisaremos das necessidades da vida? Não é suficiente preocuparmo-nos com ela no próprio dia em que a temos de usar, sem nos atormentarmos por antecipação, acumulando assim voluntariamente dor sobre dor, trabalho sobre trabalho, preocupações sobre preocupações? A expressão malícia, que a Escritura usa aqui, não é tomada no sentido de maldade, malignidade, mas no sentido de trabalho, dor, sofrimento. Assim, em linguagem comum, não costumamos dizer: “Sofri muitos males hoje”, quando trabalhamos muito e suportamos muito cansaço?

São Crisóstomo diz:

“A Escritura não usa a palavra malícia aqui para expressar malignidade, mas dores, trabalhos e sofrimentos. Da mesma forma, em outro lugar, quando lemos: Si est malitia in civitate, quam Dominas non fecit, há algum mal na cidade que Deus não tenha feito? A Escritura certamente não quer dizer, com esta expressão malícia, o mal, seja avareza, ou pilhagem, ou qualquer outro pecado, mas sim as pragas, as dores, os castigos que a justiça de Deus derramou sobre seus habitantes para punir seus crimes. Da mesma forma, quando Deus diz através de seu profeta: Qui facio pacem, et creo malum, sou Eu que faço a paz e que crio o mal, ele certamente não quer dizer com esta expressão, malum, por malignidade ou mal, mas sim a peste, a fome e outras punições que a maioria considera como males. Assim, nestas palavras: Sufficit diei malitia sua, cada dia basta seu mal, esta expressõe malitia deve ser tomado por aflições e castigos; de fato, nada atormenta mais a alma do que a solicitude e a diligência com as coisas mundanas e perecíveis. Deus, portanto, não nos proíbe o trabalho e a prudência em relação aos bens temporais, mas apenas a ansiedade que agita a alma e a torna culpada aos seus olhos”.

            Diz Santo Agostinho:

“Por isso, tenhamos cuidado para não criticar e culpar a conduta de alguns servos de Deus, que parecem, contrariamente às ordens de Deus, preocupar-se com o amanhã fazendo algumas provisões, temendo que as coisas necessárias da vida faltam a si mesmos ou aos que lhes são confiados. O próprio Jesus Cristo, que tinha os anjos por ministros, quis dar o exemplo à sua Igreja e evitar qualquer escândalo a este respeito, pondo de lado algum dinheiro cuja custódia foi confiada ao seu apóstolo infiel. [...] É evidente que Deus não desaprova aqueles que, na visão humana, fazem provisão para as coisas necessárias, mas o que ele desaprova são aqueles que servem a Deus em vista desses bens, cujas ações inteiras têm por objeto, não o reino celestial, mas os bens terrenos. Assim, todo este preceito pode ser reduzido a esta única regra geral, a saber, que na aquisição dos bens temporais devemos ter em vista o reino celestial; que no serviço de Deus não devemos pensar nas coisas da terra, e que o objetivo de todas as nossas boas obras deve ser recompensas eternas e não recompensas temporais. E, se às vezes os bens da terra nos faltam (o que acontece quando Deus quer provar nossa virtude), não devemos, por isso, relaxar em nossas boas obras, mas, ao contrário, nos apegarmos cada vez mais a elas, pois quanto mais bem fizermos na terra, mais também seremos recompensados no céu”.