quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Das Bem-Aventuranças – Ludolfo da Saxônia, O. Cart.


Depois de tudo o que acabamos de relatar, Jesus deu aquele admirável sermão que é comumente chamado o Sermão da Montanha. Diz Santo Agostinho:

“Quem meditar com atenção e piedade, encontrará nele tudo o que diz respeito à formação da moral e tudo o que pode contribuir para a perfeição da vida cristã”.

São Mateus e São Lucas relacionam este discurso de uma forma diferente; por isso, alguns afirmam que Jesus dirigiu este sermão primeiro, sob a forma de conversa, aos seus discípulos a sós, reunidos no cimo da montanha, sentados no meio deles, e este é o sermão que São Mateus relata; depois, tendo descido para o lado da mesma montanha e estando no meio dos seus discípulos e do povo, dirigiu-se a todos juntos noutro discurso mais ou menos semelhante a este, sob a forma de instrução, e este é o sermão que São Lucas relata. Outros, pelo contrário, afirmam que Jesus, depois de ter descansado um pouco com os seus discípulos no cimo da montanha, e de ter escolhido entre eles os seus doze apóstolos, desceu a uma planície que estava ao lado da montanha, e que Ele dirigiu ao povo e aos seus discípulos este discurso que os dois evangelistas relatam em termos diferentes, embora em substância seja absolutamente o mesmo. No entanto, a primeira opinião parece-nos mais apropriada e também mais consentânea com a verdade. Disto também surgiu o costume na Igreja de que quando um pregador instrui os fiéis, ele se levanta, como se os convidasse à ação e ao combate, enquanto o abade, dirigindo-se aos seus clérigos ou religiosos, permanece sentado, convidando-os ao descanso e à contemplação. Desde o início do seu discurso, Jesus propõe oito bem-aventuranças ou virtudes, ordenando em cada uma delas a recompensa que lhe é própria. Beati, etc. (Bem-aventurado etc.) – esta é a bem-aventurança do mérito –; quoniam, etc. ([...] porque etc.) – esta é a bem-aventurança da recompensa, mostrando-nos que aquele que deseja obter a recompensa deve esforçar-se por merecê-la. Diz Santo Agostinho:

“Quem é aquele que não quer ser feliz? Mas se desejamos a recompensa, por que devemos evitar o trabalho que nos deve tornar dignos dela? Se alguém dissesse a alguém: ‘Faça isto e terá felicidade’, não se poria a trabalhar de imediato? Se quisermos desfrutar do triunfo, não devemos recuar na luta, que só a nós nos pode dar”.

Há dois tipos de bem-aventuranças: uma na esperança, que podemos desfrutar nesta terra temporária; a outra na realidade, que só podemos desfrutar na verdadeira pátria. O homem virtuoso é feliz aqui embaixo na bem-aventurança da graça, enquanto espera para ser colocado na posse da bem-aventurança da glória no céu; pois, como diz Santo Agostinho no seu sermão para a Festa de Todos os Santos, o homem não é feliz porque é pobre de espírito, mas porque o reino dos céus lhe pertence. E o mesmo deve ser dito das outras bem-aventuranças.

Então Jesus instruiu os seus discípulos, dizendo: Bem-aventurados os pobres de espírito, ou seja, aqueles que abraçam a pobreza voluntariamente e por opção, e não forçosamente e hipocritamente, porque deles é o reino dos Céus, uma recompensa proporcional aos seus méritos. Por esta pobreza de espírito, da qual o Salvador fala, devemos compreender que a privação do amor do mundo, ou melhor, das coisas terrenas, que o mundano tão ardentemente procura, e toda aquela renúncia que nos faz desprezar os prazeres e satisfações que surgem das riquezas e honras. Existem também dois tipos de bem-aventuranças: a primeira consiste no desprezo da riqueza e dos prazeres carnais; a segunda consiste no desprezo de si próprio e de seus próprios méritos, e que impede o homem virtuoso de se considerar a si próprio como inútil e inferior a todos os outros. Agora, o desprezo pela riqueza nasce do desprezo por si mesmo, pois aquele que se despreza verdadeiramente por Deus e visando a Deus, despreza facilmente as coisas temporais que só existem por causa d’Ele; e aquele que se ocupa de adornar o seu interior, cuida pouco das coisas exteriores. Assim, a pobreza de espírito inclui tanto a renúncia voluntária aos bens terrenos em vista de Deus, como a verdadeira humildade. E nesta dupla relação, esta beatitude deve ocupar o primeiro lugar. De fato, no primeiro sentido, a pobreza voluntária é a principal perfeição daqueles que desejam seguir Jesus e o fundamento de todo o edifício espiritual. Como poderia, além disso, aquele que se envergonha dos bens deste mundo seguir facilmente Jesus Cristo, este modelo de pobreza? Aquele que tem afeição pelas coisas passageiras não é livre, torna-se escravo dos objetos de seu afeto. Devemos, portanto, amar apenas a Deus, ou se amamos alguma coisa, que seja com Deus em mente. Santo Ambrósio diz que os dois Evangelistas colocam corretamente esta bem-aventurança em primeiro lugar, pois é o princípio e a origem das outras virtudes. Pois só aquele que despreza os bens terrenos se tornará digno dos bens celestiais e ninguém poderá alcançar o reino dos céus se estiver acorrentado à terra por afeição às coisas perecíveis. O mesmo é válido para o segundo significado; pois a humildade opõe-se a todos os vícios, e especialmente ao orgulho, que é o primeiro de todos. Diz Santo Agostinho:

“É, pois, correto que por pobres de espírito entendemos aqui os humildes e os que temem a Deus, que não estão cheios de orgulho, e que esta bem-aventurança é chamada a primeira de todas, pois é por ela que chegamos à elevada sabedoria. Como o temor do Senhor é o princípio da sabedoria, assim, mas na direção oposta, o orgulho é o princípio de todo o pecado”.

E diz São Crisóstomo:

“Como os vícios e especialmente o orgulho nos lançam no inferno, assim as virtudes e especialmente a humildade nos elevam ao céu”.

Que os gananciosos e os orgulhosos amem as coisas deste mundo e se apeguem a elas com todo o coração, mas nós sempre proclamaremos os pobres em espírito, isto é, os humildes e os voluntariamente pobres, para serem felizes, pois é a eles que pertence o reino de Deus, na esperança enquanto estiverem nesta terra de exílio, e na realidade quando a pátria celestial chegar para eles. Então a recompensa será proporcional aos méritos; as dificuldades serão seguidas pela abundância; as humilhações pelo triunfo e a glória. É isto que significa a palavra reino, que traz consigo a ideia de um influxo de todo o tipo de alegria, felicidade e satisfação plena.

Depois vem a segunda bem-aventurança, com estas palavras: Bem-aventurados os mansos: porque eles possuirão a terra. Depois da pobreza vem a mansidão, para os pobres, estando muitas vezes expostos a escárnio e insultos, devem necessariamente ser suaves e mansos, duas palavras que, embora diferentes uma da outra, expressam mais ou menos a mesma ideia. O homem manso, mitis, é aquele que não ofende ninguém; o homem manso, mansuetus, é aquele que suporta as ofensas que lhe são infligidas por outros. Mansuetus, como se diria manu assuetus, moldado, acostumado, habituado a suportar insultos, nunca devolvendo o mal pelo mal; mitis, que preserva sempre a constância da alma e persevera no bem, ou seja, que a doçura consiste antes no afeto interior, e a mansidão nos atos exteriores. O homem verdadeiramente manso, então, é o homem que é modesto, humilde e simples na fé; o homem que é paciente face aos insultos, que nunca sente amargura na sua alma, que, quando provocado, nem sequer pensa no mal e nunca o faz; que cede aos maus, sem procurar resistir-lhes, mas que triunfa sobre o mal fazendo o bem. Bem-aventurados os mansos: porque eles possuirão a terra, e isso de duas maneiras: isto é, o seu próprio corpo com o qual estão vestidos, e o paraíso após o qual anseiam. Eles possuirão o seu corpo exercendo sobre ele um império absoluto, ao contrário dos homens irados que não sabem submeter os seus sentidos à razão; e ao paraíso, pois Deus, depois de ter possuído os seus corações aqui embaixo em tranquilidade e paz, irá por sua vez colocá-los na posse de Si próprio na terra dos vivos; ou como a Glosa explica:

“Aqueles que se possuem a si próprios neste mundo possuirão no outro a herança do Pai Eterno”.

Ou como diz Santo Agostinho no seu sermão para a Festa de Todos os Santos:

“Ides possuir a terra, quando por amor estiverdes unidos com o Deus que criou o céu e a terra. A mansidão consiste em não resistir a Deus; portanto, quando fizeres o bem, louve a Deus e não procures louvar a ti mesmo; e quando tiveres alguma dor ou algum sofrimento para suportar, não deixe de agradar a Deus, mas desagrade a ti próprio, pois agrada-te tanto mais a Deus quanto te desagradares a ti próprio; e desagrada-Lhe tanto mais a Ele quanto mais te agradar a ti próprio”.

Deixem que os homens duros e de temperamento volátil lutem o quanto quiserem por bens terrenos e perecíveis; deixem o guerreiro, impelido pelo seu ardor feroz, lutar para garantir o gozo de um pedaço de terra do qual terá expulsado os seus inimigos vencidos; o homem manso, por outro lado, agarra-se à herança sólida da felicidade eterna, à posse calma e pacífica desta terra dos vivos que lhe foi prometida, e que não pode ser tirada pelos seus inimigos. Segundo Santo Agostinho, esta expressão “terra dos vivos” não designa outra coisa senão a solidez e estabilidade desta vida futura, onde a alma, no auge dos seus desejos, descansará e se alimentará em paz, tal como o corpo repousa sobre esta terra e se alimenta de sua produção. Este é o repouso, a verdadeira felicidade dos santos. Como diz São Beda no seu comentário ao sexto capítulo de São Lucas:

“Se o reino dos céus é prometido à pobreza voluntária e a terra dos vivos à mansidão, o que resta para o orgulho e a ganância senão os abismos do inferno?”

A terceira bem-aventurança é concebida nestes termos: Bem-aventurados os que choram: Porque eles serão consolados. Esta bem-aventurança é colocada imediatamente após as duas anteriores. Pois quando um homem que veio desprezar o mundo através da pobreza voluntária e conquistou a paz e a tranquilidade da alma através da mansidão, desce a si mesmo e considera o seu estado, não encontra mais do que tristeza e lágrimas dentro e fora de si; então começa a gemer e a chorar. São as perdas, os danos espirituais e não os danos temporais, que nos devem entristecer. Felizes são aqueles que choram, pois Deus os consolará e enxugará as suas lágrimas. Exclama São Bernardo:

“Ó lágrimas felizes, que merecem ser enxugadas pela mão do Senhor!”.

E diz São Máximo:

“As lágrimas não imploram perdão, mas obtêm-no por nós; não invocam a nossa causa, mas, no entanto, atraem sobre nós a misericórdia de Deus; as nossas palavras nem sempre expressam todos os nossos sentimentos, mas as lágrimas são a manifestação de todos os afetos do nosso coração”.

Aqueles que choram serão confortados tanto nesta vida como na próxima. Os pecadores penitentes recebem aqui abaixo as consolações espirituais do Espírito Santo, que é chamado o Paráclito ou o Consolador, e ficarão muito melhor consolados quando o Senhor os introduzir na glória da vida futura, ou, segundo São Crisóstomo, quando Ele os compensar pela sua tristeza com o gozo das alegrias eternas. Diz São Crisóstomo:

“Devemos chorar e chorar amargamente por esta vida atual, tão cheia de miséria e tão cheia de crimes que se os considerássemos cuidadosamente e em pormenor, não poderíamos deixar de derramar lágrimas contínuas. Pois se um estranho de um país distante ouvisse as nossas conversas irreligiosas e testemunhasse as nossas dissensões, os nossos erros; não nos tomaria antes pelos inimigos de Deus do que pelos seus servos, vendo em nós homens que agem em tudo de modo contrário à lei do Senhor?”

Há cinco objetos principais que devem ser objeto da nossa tristeza e lágrimas aqui embaixo. Os dois primeiros dizem respeito aos pecados, tanto os nossos como os dos outros; os outros dois relacionam-se com os castigos que merecem, tanto nesta vida como na seguinte; o quinto, finalmente, tem a ver com a glória celestial. Assim, em primeiro lugar, devemos chorar sobre os nossos próprios pecados e fraquezas; em segundo lugar, sobre os pecados e fraquezas dos outros; em terceiro lugar, sobre o prolongamento das nossas misérias nesta vida de exílio; em quarto lugar, sobre os perigos e incerteza do castigo eterno; finalmente, sobre o adiamento da glória. Bem-aventurados aqueles que choram e gemem nesta vida, pois serão plenamente consolados na próxima. Pois eles estarão em paz e seguros em tudo o que foi objeto da sua ansiedade e lágrimas aqui embaixo: o perdão dos seus pecados; a salvação dos bons e a condenação dos ímpios; o prolongamento do seu exílio; a isenção dos tormentos que virão e a posse da glória eterna. Poderão então dizer com o rei profeta: “Segundo as muitas dores que provou o meu coração, as tuas consolações, ó Deus, alegraram a minha alma”. São Gregório expressa o mesmo sentimento quando diz:

“A alma do homem justo tem quatro motivos principais de gemido e tristeza: quando, entrando em si mesma, considera as suas falhas do passado e o estado em que um dia esteve; quando pensa no terrível julgamento de Deus que um dia terá de experimentar; quando reflete sobre as dores e misérias desta vida em que ainda é obrigada a permanecer; quando, finalmente, contempla a alegria e felicidade dos eleitos, dos quais não pode estar na posse enquanto estiver nesta terra de exílio. Que os homens frívolos se entreguem o quanto quiserem às alegrias e vaidades deste mundo; para nós, proclamamos felizes aqueles que choram, porque serão consolados no céu; privaram-se voluntariamente dos prazeres desta vida para se entregarem às lágrimas e tristezas, não será apenas estes que devem ser recompensados com o gozo dos bens eternos?”

Quarta bem-aventurança: Bem-aventurados os que tem fome, e sede de justiça: porque eles serão fartos. Esta quarta bem-aventurança vem no momento certo depois das três anteriores: pois o cristão que despreza as coisas deste mundo, que pratica a mansidão e a doçura, e que chora pelos seus pecados, pode ter fome e sede de justiça, o que não podia fazer antes, pois, segundo Santo Ambrósio, aquele que está aflito com uma doença grave não pode passar fome. As três primeiras bem-aventuranças afastam-nos deste mundo perverso: pobreza, inspirando-nos a desprezar a riqueza; mansidão, fazendo-nos suportar insultos; lágrimas, purificando-nos dos nossos defeitos. Aqueles que nos seguem levam-nos mais especialmente para as coisas celestiais; e aquele que ocupa a primeira posição é, se não a própria justiça, pelo menos o desejo de justiça, pois se nesta terra não podemos alcançar a perfeição a este respeito, podemos pelo menos ter muita sede; assim Jesus Cristo diz: Bem-aventurados os que tem fome, e sede de justiça, ou seja, que, tal como os famintos e sedentos, estão inflamados com o desejo de realizar tudo o que a justiça lhes exige. Diz São Beda:

“Aprendamos com isto, que nunca nos devemos considerar suficientemente justos, mas devemos desejar progredir dia após dia nesta virtude”

E diz São Jerónimo:

“Não basta querermos ser justos, mas diante da injustiça, devemos desejar incessantemente realizar os atos justos”.

A justiça é aqui tomada no sentido dessa virtude geral que é adequada para todos os homens, e que consiste em evitar o mal e fazer o bem. São Crisóstomo diz:

“Ele tem fome de justiça quem deseja conformar a sua vida e conduta à justiça de Deus, e quem a deseja não só para si próprio, mas também para os outros”.

Agora esta justiça consiste especialmente em render o que é devido a cada um; a Deus, ao nosso próximo e a nós próprios: a Deus, a quem devemos três coisas: honra como ao nosso Criador, amor como ao nosso Redentor, temor como ao nosso Juiz; ao nosso próximo, a quem temos três obrigações a cumprir: obedecer aos nossos superiores, manter a união e concórdia com os nossos iguais, fazer o bem aos nossos inferiores; a nós próprios, pela pureza do coração, guardando a nossa língua, e mortificação dos nossos sentidos. Felizes e verdadeiramente felizes são aqueles que têm fome e sede de justiça, porque ficarão satisfeitos, ou seja, os esforços que fizeram aqui embaixo para praticar a justiça serão amplamente recompensados na outra vida, naquela vida abençoada da qual o salmista fala quando diz: “Saciar-me-ei quando aparecer a Tua glória”. O homem justo recebe mesmo nesta vida a recompensa da sua virtude, pois como o avarento é atormentado pelo desejo dos bens dos outros, ele, contente com o que possui sem suspirar pelo que não lhe pertence, vive em calma e paz. Por justos não nos referimos apenas àqueles que praticam a justiça ou que realizam os atos de justiça, mas também aqueles que desejam praticá-la e ainda assim não cumprem os deveres da justiça, porque lhes falta a oportunidade ou o poder de agir; pois então o ardor do seu desejo suplanta a própria ação, e eles serão recompensados não menos. É por isso que Santo Agostinho diz:

“Quem conhece e ama perfeitamente a justiça já é justo, mesmo que não tenha poder ou oportunidade de a praticar externamente”.

Que os mundanos suspirem depois das vaidades do mundo, o que nunca os satisfará; para nós, diremos felizes e mil vezes felizes aqueles que têm fome e sede de justiça, porque serão satisfeitos, mesmo neste mundo com medida, mas plenamente no céu.

Quinta bem-aventurança: “Bem-aventurados os misericordiosos: porque eles alcançarão misericórdia”. A misericórdia vem muito naturalmente depois da justiça, pois um não pode passar sem o outro; eles prestam-se apoio mútuo. De facto, a misericórdia sem justiça em breve degeneraria em fraqueza, e a justiça sem misericórdia tornar-se-ia crueldade; mas juntos caminham no rumo certo. A misericórdia nada mais é do que a compaixão do coração pelos aflitos; são por isso chamados misericordiosos cujos corações compassivos são tocados pelas misérias e aflições dos outros, como pelas suas próprias aflições e misérias. A verdadeira misericórdia consiste em perdoar os insultos recebidos, em não guardar ódio ou rancor no coração, e em aliviar o próximo, tanto quanto possível, das suas necessidades espirituais e corporais. Contudo, há uma ordem a ser mantida na prática desta virtude; devemos primeiro pensar em nós próprios, de acordo com as palavras do Eclesiástico: tenha piedade da sua alma e agrade a Deus; e depois do nosso próximo, suportando pacientemente as suas faltas e aliviando as suas misérias, até ao ponto de dar a sua vida por ele, seguindo o exemplo do nosso Salvador divino, que, na sua imensa misericórdia, não teve medo de se expor à morte pelos nossos pecados. A primeira misericórdia é aquela que se relaciona conosco e que consiste na penitência que nos livra dos nossos pecados; a segunda é aquela que se relaciona com o nosso próximo, que consiste na caridade e pela qual merecemos a redução das penas devidas aos nossos pecados e multiplicamos o número dos nossos intercessores, pois é justo que aquele que alivia os sofrimentos dos outros veja diminuído o seu próprio sofrimento; o terceiro relaciona-se com Deus e consiste na compaixão pelos sofrimentos do Deus-Homem, e conduz-nos à glória eterna, pois, segundo o Apóstolo: se tivermos compaixão de Jesus Cristo, seremos glorificados. Acrescenta Santo Ambrósio:

“Mas aquele que simpatiza com o Salvador não deve agir com frouxidão, mas deve realmente compensar no seu corpo o que falta aos sofrimentos de Jesus Cristo, como fez São Paulo”.

Devemos, portanto, praticar a misericórdia com ardor para com os outros, pois nós próprios em todas as coisas precisamos da misericórdia de Deus. Esta virtude é tão grande que é especialmente atribuída a Deus antes de todas as outras, a Deus cuja própria natureza, segundo as Escrituras, é perdoar e ter misericórdia. É sobretudo a ausência desta virtude que Deus censurará a reprovação, e a prática da mesma, que Ele louvará os eleitos. No dia do juízo, as obras de misericórdia serão vantajosas para aqueles que as tiverem feito; pois, segundo o apóstolo São Tiago: “Porque se fará juízo sem misericórdia, àquele que não usou de misericórdia. Mas a misericórdia triunfa sobre o juízo”. Diz Santo Agostinho:

“Jesus Cristo chama felizes aqueles que demonstraram misericórdia, porque com isto obterão a libertação da sua própria miséria: portanto, mostra misericórdia para com os outros se quiseres obtê-la tu mesmo, o comportamento que mostraste ao teu devedor, Deus mostrar-te-á”.

E segundo São Hilário:

“O nosso afeto, a nossa benevolência para com o nosso próximo é tão agradável ao coração de Deus, que ele próprio mostra misericórdia apenas para com aqueles que demonstraram misericórdia para com os outros”.

São Crisóstomo acrescenta:

“O Deus das misericórdias chama bem-aventurados aqueles que são misericordiosos, querendo mostrar-nos com isto que cada um de nós só obterá misericórdia na medida em que se tiver mostrado misericordioso. [...] Parece que há paridade quando Deus mostra misericórdia por misericórdia, mas a diferença é imensa; pois a misericórdia de Deus ultrapassa imensamente a dos homens. Que os homens duros e cruéis se regozijem, se quiserem, na sua barbárie e crueldade; perecerão sem piedade. Mas pelo contrário, bem-aventurados são os misericordiosos, pois obterão misericórdia na vida vindoura, onde serão libertados de toda a tristeza, de todo o medo, de toda a ansiedade acerca dos seus pecados. Desta mesma vida obterão o perdão das suas faltas e uma abundância das graças de Deus; além disso, receberão vantagens temporais de acordo com a sua posição e tanto quanto for útil para o seu avanço no caminho da salvação”.

Sexta bem-aventurança: “Bem-aventurados os limpos de coração: porque eles verão a Deus”. Esta bem-aventurança ocupa o sexto lugar e com boas razões. De fato, o homem, criado à imagem de Deus, capaz de o conhecer e amar, tinha perdido estes belos privilégios no sexto dia após a criação. Mas esta perda foi compensada com a vinda de Jesus Cristo, que teve lugar na sexta idade do mundo. É também com razão que a pureza de coração vem depois da misericórdia, pois, segundo Santo Ambrósio:

“Aquele que faz misericórdia sem pureza de coração perde toda a recompensa; a ostentação e a vanglória roubam-lhe o mérito e os frutos das suas ações”.

Quando Jesus Cristo diz: Bem-aventurados são os puros de coração, ele não se refere à pureza superficial dos hipócritas que limpam cuidadosamente o exterior sem olhar para o interior, nem à pureza do corpo que é partilhada pelos mundanos, mas fala da verdadeira pureza do coração a que a consciência não censura qualquer pecado, daqueles que evitam o mal e fazem o bem com uma intenção reta e um fim legítimo. Só estes verão a Deus, pois pertence apenas à pureza unir-se à beatitude eterna, e aquele que é puro na sua essência só pode ser provado por um coração puro. O coração puro, que é o verdadeiro santuário da Divindade, é aquele de onde nenhum pensamento maligno sai, e então todo o homem é imaculado; pois é no coração que nasce o pecado e estabelece as suas raízes, mas se estas raízes são cortadas, o pecado não pode mais crescer. Deus é espírito, por isso não pode ser visto pelos olhos do corpo, mas apenas pelos olhos do coração e da mente. Tal como precisamos de olhos claros e puros para ver o sol deste mundo, também é necessário que os olhos do nosso coração e da nossa mente sejam inteiramente purificados para contemplar o Deus que habita na luz inacessível; é nesta visão da Divindade que encontraremos o cumprimento de todos os nossos direitos. Diz Santo Agostinho:

“Isto é o objetivo, o fim de todos os nossos afetos, de todo o nosso amor, e quando estivermos na posse desta visão beatífica, não teremos mais nada a desejar ou a esperar. Se desejar ver Deus, lembre-se que Ele disse: Bem-aventurados os limpos de coração: porque eles verão a Deus’; esteja preparado para alcançar esta recompensa, pois só os puros de coração o poderão fazer”.

Santo Ambrósio também nos diz:

“Purificai o vosso coração; afastai dele todo o pensamento maligno; nada deixai contaminar os vossos afetos; tende simplicidade e pureza de espírito, pois é só para eles que Deus se manifesta após a sua morte”.

Deixemos as pessoas impuras mergulharem cada vez mais na lama do vício e das paixões; proclamaremos felizes aqueles que são puros de coração, porque verão Deus tanto nesta vida através da fé como na próxima, na realidade e na glória; esta visão beatífica será proporcional ao grau de pureza que atingiram e aos esforços que fizeram para evitar o mal e para fazer o bem.

Sétima bem-aventurança: “Bem-aventurados os pacíficos: porque eles serão chamados filhos de Deus”. Esta beatitude ocupa o sétimo lugar, e com razão, porque a paz será dada em toda a sua plenitude no último dia ou dia de descanso da sétima idade do mundo. A paz segue imediatamente a pureza, porque aquele que tem um coração puro caminha diretamente nos caminhos da paz, dessa paz que é mantida pela boa vontade. É isto que faz Santo Ambrósio dizer no seu Comentário sobre o sexto capítulo de São Lucas:

“Quando tiveres purificado o teu interior de todas as manchas e impurezas, sentirás paz de coração e serás capaz de a comunicar a outros”.

O Salvador diz: Bem-aventurados são os pacificadores, não aqueles que são calmos e tranquilos; estes últimos entram na segunda bem-aventurança, que consiste na mansidão. Agora são chamados pacíficos que guardam de si cada pensamento, cada palavra, cada ação perversa; que não deixam entrar problemas nos seus corações; que no meio das adversidades preservam a paz e julgam todas as coisas com calma e tranquilidade de alma; que, não contentes em possuir esta paz interior, fazem todos os esforços para a obter para os outros, acalmando discussões e distúrbios, e procurando a concórdia e união fraterna entre todos os homens. Cinco coisas são especialmente opostas a esta paz: guerras, disputas judiciais, sedições, preocupações e tristezas; mas o homem verdadeiramente pacífico faz todo o possível para parar as guerras, para conciliar as disputas, para acalmar as sedições, para acalmar as preocupações e para aliviar as tristezas. Este é o papel, o trabalho do Filho de Deus, que tem paz em si mesmo, e nada tem tanto no coração que a faça reinar entre todos os homens; é por isso que se diz dos pacificadores: que eles serão chamados filhos de Deus. São também chamados pacíficos que, através do afeto dos seus corações, se unem inteira e intimamente com Deus, como com a bondade soberana, e descansam n'Ele, sem se preocuparem com coisas externas. Merecem, e com razão, ser chamados filhos de Deus, pois esta qualidade consiste na semelhança de Deus, cuja própria natureza é gozar de si próprio e descansar n'Ele. Devemos, portanto, ser pacíficos, se quisermos possuir em nós mesmos o Deus de quem se diz nas Escrituras que a sua morada está na vossa paz. Diz Santo Agostinho:

“Os pacíficos são aqueles que sabem subjugar os movimentos da natureza e as concupiscências carnais à razão, estabelecendo assim em si o reino de Deus, aquele reino em que tudo é coordenado de tal forma que a parte superior do homem comanda todos os movimentos, todas as paixões da parte inferior, que nos são comuns com os brutos, e que a inteligência e a razão estão por sua vez sujeitas ao soberano Mestre, que é a própria Verdade, ou seja, o único Filho de Deus. Pois aquele que não sabe obedecer ao seu superior é incapaz de comandar aqueles que a ele estão sujeitos. Esta é a paz que é dada na terra aos homens de boa vontade; é a perfeição e a consumação da verdadeira sabedoria. Que os mundanos se deixem levar pelas disputas e discórdia, imitando o diabo que é o seu líder; mas nós cristãos proclamaremos com Jesus Cristo, bem-aventurados sejam os pacificadores, que mantêm a paz perfeita consigo mesmos e com os seus irmãos, pois serão chamados filhos de Deus. A função própria de uma criança é imitar o seu pai; mas os pacificadores são imitadores de Deus, que é a própria paz e o repouso supremo, e que dispõe de todas as coisas com calma e tranquilidade”.

Oitava beatitude: “Bem-aventurados os que padecem perseguição por amor da justiça: porque deles é o reino dos Céus”. Diz São Crisóstomo:

“Depois de ter proclamado a bem-aventurança dos pacíficos, Jesus Cristo – para que a posse desta paz não se torne o único objeto dos esforços do cristão aqui embaixo – acrescenta: ‘Bem-aventurados os que padecem perseguição por amor da justiça’.”

Esta bem-aventurança leva o homem a sofrer bem como as anteriores o levam a fazer bem; pois se a virtude consiste em boas obras, ela consiste não menos em paciência no meio da dor. Tal como na pátria celeste há dois graus de recompensa, a coroa e a auréola, assim nesta vida, que é a sua imagem e semelhança, as primeiras sete bem-aventuranças correspondem à coroa, que é o primeiro grau, e a oitava corresponde à auréola, que é a segunda, que é o que esta expressão implica: reino, regnum, que – segundo São Jerónimo – termina com o martírio. Jesus Cristo diz, portanto, que não só os que fazem o bem são bem-aventurados, mas também os que sofrem perseguição, desde que sofram pacientemente, não pelos seus pecados e erros, mas em nome da justiça, aquela justiça que contém todas as outras virtudes, tais como, segundo São Crisóstomo, verdade, piedade, defesa do próximo, e assim por diante; pois pela palavra geral justiça entendemos todas as virtudes da alma. São verdadeiramente felizes na esperança, enquanto esperam ser beatificados na realidade, pois o reino dos céus, ou seja, a coroa da glória, é deles. “Mas o quê!?” – alguém pode dizer – “tenho de me expor à morte para defender os direitos e a liberdade da Igreja?”. Sim, quando se trata de coisas espirituais, mas não para defender os seus bens e receitas temporais, embora muitas vezes defendamos ao máximo estes últimos, impulsionados então mais por um sentimento de avareza do que de justiça. Santo Ambrósio, tratando desta questão, diz:

“Se o imperador querer o que me pertence, ou seja, as minhas terras, o meu dinheiro, ou qualquer outra coisa semelhante, não resistirei, ainda que os meus bens sejam domínio dos pobres; mas se é uma questão das coisas de Deus, resistirei com coragem, porque elas não estão sujeitas à autoridade temporal. Quereis os meus bens, tomai-os; quereis o meu corpo, eu entrego-vos; quereis acorrentar-me e arrastar-me até à morte, não me defenderei, não me rodearei de pessoas armadas, não irei beijar o pé dos altares pedindo misericórdia; mas se se trata das coisas santas e dos interesses espirituais da Igreja, resistirei à morte e sacrificarei a minha vida pela sua defesa”.

Esta oitava bem-aventurança é o complemento das outras, e como o resumo de todas as coroas, pois quando o homem se aperfeiçoou pela prática das virtudes precedentes, é então julgado digno de sofrer por Deus as dores e adversidades que podem ocorrer neste mundo. São Crisóstomo, sobre este assunto, exprime-se assim:

“O nosso divino Salvador, ao expor as oito bem-aventuranças, fá-las depender umas das outras, a segunda da primeira, a terceira da segunda, e assim por diante, oferecendo assim uma admirável cadeia de virtudes para a nossa meditação. Pois aquele que é humilde de coração é naturalmente manso, e esta mansidão leva-o a gemer e a chorar pelos seus pecados; aquele que chora pelos seus pecados logo sente a fome e a sede de justiça; o homem justo está inclinado à misericórdia, e nele a justiça e a misericórdia logo produzem compunção e pureza de coração. Tendo chegado a este ponto, possuirá paz, e, tendo atravessado estes vários graus, tendo aperfeiçoado em si todas estas virtudes, estará sem dúvida preparado para os perigos corajosos, para suportar maldições e suportar todos os males pelo amor e glória de Deus. Aquele que possui todas estas virtudes é feliz, e muito mais feliz ainda é aquele que não tem medo de as praticar no meio das maiores adversidades. As primeiras sete bem-aventuranças tornam o homem perfeito, e a oitava faz esta perfeição irromper e glorificá-la. De fato, a paciência nas aflições, qualquer que seja a sua natureza, é o grau supremo que, quando unidas a cada uma das outras bem-aventuranças, prova e purifica todo este metal, para que possamos dizer: bem-aventurados os pobres de espírito, bem-aventurados os mansos, se sofrem por causa da justiça; e assim é com cada uma das outras bem-aventuranças, das quais a paciência é a perfeição. A serpente, se não a atacar, permanece em paz; mas se a pisar, ela ergue-se imediatamente contra si e pica-o. Da mesma forma, um homem sem virtude, quando é ferido por alguma palavra insultuosa, como a serpente, incha de raiva e cólera, e levanta-se contra aquele que o atacou, provando assim que era um recipiente vazio de toda a virtude. Os santos, por outro lado, quando atingidos numa face, viram a outra, amam os seus inimigos e rezam por aqueles que os perseguem”.

Diz São Bernardo:

“As estrelas brilham no meio da escuridão, mas durante o dia permanecem despercebidas; assim a virtude permanece velada em prosperidade, mas brilha fulgurante na adversidade”.

De acordo com o que acabamos de dizer, esta oitava bem-aventurança não seria uma bem-aventurança propriamente dita e particular, mas sim o sancionamento e a perfeição das outras. É colocada na oitava posição, porque representa a ressurreição geral que deve ter lugar na oitava idade do mundo, e que é também representada pelas oitavas dos santos. É comparado com a circuncisão e a ressurreição, pois por ela somos circuncidados ou purificados de todo o fermento de corrupção, e confirmados na perfeição de todas as virtudes; e como pela ressurreição geral seremos transformados e aperfeiçoados na glória, por isso estamos aqui abaixo, pela paciência, confirmados e aperfeiçoados no mérito e na graça. A mesma recompensa, ou seja, o Reino dos Céus, é prometida à primeira e à oitava bem-aventuranças, porque aqueles que sofrem perseguição neste mundo estão expostos ao seu desprezo e escárnio; e os pobres de espírito não estão constantemente sujeitos aos escárnios de muitos? Estas duas bem-aventuranças ou virtudes são também iguais em mérito, pois a pobreza voluntária é um verdadeiro martírio, uma vez que se deve constantemente superar a si mesmo e renunciar às alegrias e prazeres do mundo. Nesta palavra reino, duas coisas estão incluídas: riqueza e domínio; a riqueza é prometida aos pobres voluntários; de facto, aqueles que terão renunciado por Jesus Cristo aos bens deste mundo, gozarão nos outros bens eternos; o domínio é prometido aos que sofrem, porque aqueles que terão sido, aqui embaixo, oprimidos por Jesus Cristo, reinarão com ele no céu e dominarão os seus opressores.

Pode-se dizer que a recompensa não é a mesma para todas as bem-aventuranças, uma vez que por vezes é proposta de uma forma e por vezes de outra. Embora seja chamado por nomes diferentes, é sempre e para todos a mesma recompensa, o reino dos céus. Isto faz São Crisóstomo dizer:

“Embora o reino dos céus não seja proposto como recompensa por cada uma das bem-aventuranças, não se assuste; o nosso Salvador, embora usando nomes diferentes, remete-os todos para o mesmo objetivo, que é o reino eterno. Que cada um, portanto, ao ler estas palavras, examine seriamente se pode ser incluído numa destas bem-aventuranças, e se reconhece que pode fazer parte dela, que esteja à vontade, que seja feliz; é o oráculo que saiu da boca da própria Verdade, e esta Verdade não pode enganar nem a si mesma nem a nós”.

Jesus Cristo, depois de ter falado a todos de uma forma geral, dirige-se então mais especificamente aos seus apóstolos, e prevê-lhes a tripla perseguição que teriam de sofrer por causa dele: perseguição do coração, perseguição das palavras, perseguição das obras. Ele disse-lhes: “Ficareis felizes quando os homens vos odiarem e odiarem por mim (perseguição do coração); quando vos perseguirem e vos expulsarem das suas sinagogas, como imundos e indignos de participar nas suas assembleias (perseguição das obras); e quando falarem todo o tipo de mal contra vós, procurando denegrir a vossa reputação, amaldiçoando o vosso nome, ou melhor, o nome de cristão, e tentando limpá-lo da face da terra como odioso (perseguição das palavras)”. No entanto, não devemos concluir daí que cada um se deve expor a tais perseguições ou procurá-las, mas apenas que não deve ter tanto medo delas a ponto de negar a verdade, a justiça e a sã doutrina. Se temos uma tripla perseguição a suportar aqui na terra, devemos também opor-nos com uma tripla paciência, que consiste em suportar com resignação o ódio do coração, as palavras ultrajantes e os maus tratos corporais, perdoar os insultos, suportar as faltas do nosso próximo e rezar por ele para que se converta e tenha os seus pecados perdoados. É este triplo inimigo que a Igreja de Deus tem de combater continuamente, e ao qual ela se opõe esta tríplice paciência.

Jesus Cristo, portanto, depois de ter falado em geral à multidão reunida, dirigiu-se especialmente aos seus apóstolos, embora o que lhes disse pudesse ser adequado para todos, anunciando-lhes antecipadamente o que teriam de suportar por causa do seu nome, e prevendo que os sofrimentos que lhes estavam reservados deveriam elevá-los acima dos outros. Ele sabia, como bom Mestre, que ia enviá-los como cordeiros no meio de lobos, e que eles precisavam de um encorajamento especial. Quão longe estamos de ser como aqueles homens que, ao saírem das assembleias, se alegraram por terem sido considerados dignos de sofrer algum opróbrio pelo nome de Jesus!

Nem todo o tipo de perseguição faz uma pessoa feliz, mas apenas aquela que é suportada com alegria e em nome da justiça, ou seja, em nome de Cristo, o Filho da Santíssima Virgem. Por isso, o divino Salvador acrescenta: “Deixai-os perseguir-vos injustamente e por mim, que sou o Filho do Homem”. De fato, para que os sofrimentos nos façam felizes, é necessário que eles nos sejam infligidos injustamente e em nome de Jesus Cristo; é apenas com esta condição que os nossos sofrimentos serão transformados em alegria quando Deus der aos seus santos a recompensa pelo seu trabalho. Caso contrário, o sofrimento apenas agrava as nossas mágoas, longe de nos darem recompensas. É por isso que Santo Agostinho diz:

“Se sofres porque pecaste, então sofres por ti e não por Deus; mas se sofres pela lei do Senhor e para cumprir os seus preceitos, então sofres pelo próprio Deus, e uma recompensa eterna é garantida”.

Esta recompensa já é usufruída antecipadamente por aqueles que podem dizer: “Gloriamo-nos nos nossos sofrimentos”. Para sermos dignos disso, não basta sofrer, temos de sofrer por Jesus Cristo, e não só com paciência, mas também com alegria. Assim, para nos encorajar a sofrer, o Salvador coloca diante dos nossos olhos qual deve ser o preço dos nossos sofrimentos. Diz São Jerônimo:

“A esperança da recompensa faz-nos suportar o trabalho, e a visão da recompensa suaviza a dor”.

Alegrai-vos, portanto, diz Jesus Cristo, regozijai-vos interiormente, isto é, nos vossos corações, e deixai que a vossa alegria se manifeste exteriormente, para dar o exemplo e mostrar as vantagens da paciência e da glória que devem ser o seu fruto; regozijai-vos, porque a vossa recompensa não é apenas grande como a de todos os eleitos, mas porque é abundante e exaltada acima de tudo em ambos. Sim, esta recompensa no reino celestial será proporcional à grandeza dos tormentos aqui sofridos para o bem da justiça. Sim, esta recompensa é grande, é abundante, é preciosa, é duradoura. É tão grande que não pode ser concebida; tão abundante e tão vasta que a sua extensão não pode ser calculada; tão preciosa que o seu valor não pode ser estimado; tão duradoura que nunca irá terminar. Será tanto mais rico quanto mais devotada e alegremente as tribulações forem suportadas. Deus não considera tanto a magnitude da obra e o número de boas ações como o princípio que as produz. O cêntimo da viúva é mais precioso aos seus olhos do que metade da fortuna de Zaqueu. Diz Santo Agostinho em seu Sermão da Festa de Todos os Santos:

“Sabem apreciar esta recompensa aqueles que têm prazer em desfrutar dos bens espirituais; mas apreciá-la-ão ainda mais quando, a partir desta vida, tiverem alcançado a verdadeira imortalidade”.

Mas, infelizmente, deixamo-nos enganar pelos bens do mundo e pelos louvores dos vulgares, e entregamo-nos à alegria quando deveríamos estar a gemer e a chorar; pois a prosperidade é mais temível do que a adversidade, e o louvor é mais culpado do que a culpa. Juntemo-nos, pois, aos santos apóstolos e regozijemo-nos com eles no fato de o seu divino Mestre lhes ter ensinado a encontrar no opprobrium e na perseguição uma razão e um tema de alegria e felicidade. Diz São Jerônimo:

“Quem entre nós é capaz de sofrer a mancha da sua reputação e de se regozijar com ela por amor de Deus? Não é, certamente, aquele que persegue a vanglória”.

No entanto, devemos regozijar-nos em Deus com o mal que se diz de nós, se quisermos merecer a nossa recompensa eterna. Li algures esta frase admirável: “Não procures a vanglória, e nunca gemerás por te ver desprezado”. Diz São Crisóstomo:

“Quanto mais se tem prazer no elogio dos homens, mais se entristece com a sua censura e a sua culpa. Aquele que, por outro lado, procura apenas a glória celestial, não teme de todo o desprezo do mundo”.

Diz Sêneca:

“Não ficarás feliz até te teres tornado o motivo de riso do mundo. Quer alcançar esta felicidade? Aprende a desprezar o próprio desprezo; sê um homem bom, franco e de boa fé; sofra para ser envergonhado e ridicularizado; deixa que todos à vontade abusem de ti e te insultem, suportarás tudo isto com paciência se a verdadeira virtude habita no teu coração”.

O divino Salvador, desejando suavizar a severidade das perseguições que prevê aos seus apóstolos, e ao mesmo tempo animá-los e encorajá-los a sofrer com paciência, não só coloca diante dos seus olhos a glória que deve ser o prêmio, mas também lhes propõe os exemplos dos profetas que os precederam. “Os santos profetas”, diz-lhes Ele, “como Jeremias, Isaías e outros, não sofreram também os maiores tormentos para a defesa da verdade? O que há de tão surpreendente e novo que não seja possível suportar? Segui os seus passos e, como eles, saber sofrer e morrer para a defesa da fé”. Mais privilegiado do que eles, tem diante dos seus olhos os exemplos dos seus antecessores que eles próprios não tinham. Para despertar a coragem dos elefantes no momento da batalha, é lhes apresentado aos olhos sangue ou alguma cor vermelha; da mesma forma, para nos encorajar a sofrer, são nos oferecidos os exemplos de Jesus Cristo e dos mártires. Contemplemos, portanto, a glória prometida aos que sofrem, e seguindo o exemplo dos profetas e dos santos apóstolos, estejamos preparados, como eles, para enfrentar a fúria dos nossos inimigos, e mereceremos participar no seu triunfo. Que ninguém abandone a verdade por medo de perseguição, mas adira a ela corajosamente, pois é o próprio Jesus Cristo que é a sua causa. São Paulo Apóstolo diz-nos que todos os que desejam viver santos em Cristo Jesus devem sofrer perseguição; se sofrerem, é uma prova de que estão a viver para Cristo Jesus; mas se não quiserem sofrer, não estão a viver para Ele. Diz Santo Ambrósio:

“Se nos recusarmos a suportar perseguição é uma marca de reprovação; o oráculo do Apóstolo é positivo: aqueles que querem viver em santidade em Jesus Cristo devem sofrer perseguição; evitar isso seria recusar viver para Jesus Cristo, seguir o nosso Mestre da forma como ele próprio se foi; a fé e a devoção não podem existir sem luta”.

Mas, podem perguntar, quem será capaz de alcançar felicidade e glória eternas por meio de perseguição? Não reina a paz em todo o lado? A Santa Igreja já não está sujeita aos ataques dos seus adversários? E no próprio seio da Igreja, não vemos todos os dias Caim levantar-se contra Abel, Ismael contra Isaac, Esaú contra Jacó, ou seja, os ímpios contra os justos? E se não tem nenhuma perseguição a suportar por parte de estranhos, não tem nenhuma de tantos falsos irmãos? E se não tem batalhas externas, não tem as batalhas internas que os poderes do inferno estão constantemente a travar contra si? Não, as perseguições nunca nos faltarão; precisamos, portanto, de paciência para as ultrapassar e obter as recompensas prometidas. Ai daqueles que perdem a paciência nas tribulações, pois também perdem o prêmio. Não murmuremos, portanto, se tivermos de sofrer qualquer dificuldade, pois isso irá ganhar-nos uma coroa eterna.

São Mateus menciona oito bem-aventuranças, enquanto São Lucas conta apenas quatro; mas, de acordo com Santo Ambrósio, as oito estão incluídas nas quatro, e as quatro também estão contidas nas oito. De fato, a mansidão e a paz estão unidas com paciência, pureza de coração com a pobreza voluntária, e misericórdia com o desejo de justiça. O nosso divino Mestre, depois de ter encorajado os seus ouvintes à prática da virtude pela visão das recompensas que lhes são reservadas no céu, procura também afastá-los de todos os pecados, mostrando-lhes os tormentos com que os pecadores são ameaçados. Por conseguinte, acrescenta Ele: “Ai de vós que sois ricos, não de todos vós em geral, mas de vós que tendeis todos os confortos e consolos que desejais aqui embaixo; de vós que abusais das vossas riquezas para obter para vós todos os prazeres da terra; não tereis alegria nesta vida ou na próxima”. Pela palavra rico, Jesus Cristo designa aqueles que passam a vida na posse e nos prazeres dos bens da terra, pois não são as riquezas, mas o amor e o abuso das riquezas que tornam um homem culpado. Anteriormente Ele tinha dito que o reino dos céus estava reservado aos pobres voluntariamente; aqui, em contraste, Ele mostra-nos que se está a afastar deste reino que, em bens temporais, procura, não um remédio e alívio para as misérias e necessidades desta vida, mas o prazer e satisfação dos sentidos; para que um dia ele ouça esta palavra do Juiz Soberano: “Meu filho, lembra-te que já recebeste os bens enquanto eras vivo?”. Diz Santo Ambrósio:

“Aqueles que receberam consolações nesta vida, serão eternamente privados delas na próxima”.

Ai de vós que estais satisfeitos, ou seja, que vos entregais aos prazeres da comida e do vinho aqui embaixo, e que viveis em deleite, pois no próximo mundo sofrereis fome, não especialmente a fome material, mas a privação de todas as coisas boas. Como o homem rico de quem fala o Evangelho, que todos os dias se sentava à mesa esplêndida e deliciosamente servida, que angústia não suportou quando foi reduzido a implorar a piedade do pobre Lázaro que desprezara, e a implorar-lhe que lhe fornecesse uma gota de água na extremidade do dedo! Aqueles que se entregaram aos excessos da mesa sofrerão um jejum rigoroso; não será apenas que as faltas cometidas devem ser punidas com punições opostas? Este é o método que devemos seguir nós próprios, se quisermos fazer uma verdadeira penitência. Diz São Beda:

“Se aqueles que têm fome e sede de justiça neste mundo são proclamados felizes, aqueles que são complacentes nos seus pensamentos e nunca sentem o desejo do verdadeiro bem, mas que se convencem de que são felizes enquanto não forem privados das suas próprias satisfações, devem ser considerados infelizes”.

“Ai de vós”, acrescenta Jesus Cristo, “que riem demasiadamente e se alegram com os prazeres vãos deste mundo, pois chegará o dia em que chorareis e lamentareis; chorareis porque sereis privados de todas as coisas boas, e lamentareis porque sereis sobrecarregados com todos os males nos fogos eternos do inferno, onde nada mais haverá senão choro e ranger de dentes. Pois se aqueles que choraram aqui deveriam ser felizes e confortados na vida seguinte, não será correto que aqueles que riram sejam atormentados e infelizes?”

Diz o sábio Salomão:

É melhor a tristeza do que o riso”.

Diz São Basílio:

“Se o nosso divino Mestre culpa assim aqueles que se regozijam, é óbvio que o cristão nunca deve entregar-se à alegria, especialmente quando vê tantos dos seus irmãos morrerem nos seus pecados, o que deveria ser para ele uma causa contínua de lágrimas”.

Diz São Crisóstomo:

“Que motivo poderia ter para rir e alegrar-se quando em breve comparecerá perante o tribunal do Juiz Soberano para dar conta de todas as suas obras?”

“Ai de vós”, continua o Evangelho, “quando os homens vos bendizeis”, isto é, quando vos lisonjeiam nos vossos pecados com os seus louvores e aplausos, mantendo-vos assim no mal e cegando-vos, para que já não vos conheçais a vós mesmos, e esqueçais as palavras do Apóstolo: “Se agradasse ainda aos homens, não seria servo de Cristo”. Foi assim que os falsos profetas agiram, procurando ganhar o favor e o aplauso do povo, a quem apenas anunciavam mentiras, porque falavam por si próprio e não por inspiração do Espírito Santo. Foi este abuso que o Salmista lamentou quando disse: “O pecador é louvado nos desejos perversos do seu coração, e aquele que comete a iniquidade é abençoado”. Mas ai daqueles que prodigalizam elogios desta forma, pois a língua do bajulador é mais mortífera do que a espada do carrasco. Lisonjear o pecador desta forma é colocar uma almofada macia debaixo da sua cabeça, para que, embalado pelos elogios, possa adormecer no seu crime. Se o Evangelho proclama felizes aqueles que são amaldiçoados pelos homens, devemos, no sentido oposto, considerar como infelizes aqueles que são aplaudidos. Quando o pecador é elogiado pelos seus vícios como se tivesse feito boas ações, não se corrige a si próprio, e este é o sinal mais claro da ira e vingança do Senhor; pois então esta lisonja mantém-no na sua cegueira e leva-o ao terrível castigo da eternidade. Depois de descrever as quatro bem-aventuranças, São Lucas acrescenta as várias frases que acabamos de ver, para nos fazer compreender melhor a verdade, expondo-nos os castigos reservados às faltas que se opõem a estas bem-aventuranças.