domingo, 14 de maio de 2023

Vita Christi – Do Sermão e da Oração do Senhor na Ceia – Ludolfo da Saxônia, O.Cart.

 


Comentários aos capítulos XIV, XV, XVI e XVI do Evangelho segundo São João

A quinta circunstância da última ceia do Salvador que ainda deve atrair nossa atenção é o discurso que Ele dirigiu a seus apóstolos, no qual lhes deu a prova mais clara de sua afeição e ternura. Quando Judas saiu e Jesus se viu sozinho com os seus apóstolos, todos puros e sem mancha, pois ele mesmo lhes tinha lavado os pés, quis consolá-los, dirigindo-lhes estas palavras cheias do fogo sagrado do amor divino, palavras que São João, o discípulo predileto do Salvador, nos conservou no seu Evangelho. Diz Santo Anselmo:

“Foi então, ó doce Jesus, que a santa companhia dos vossos apóstolos saciou a sua sede na fonte sagrada do amor, ouvindo as vossas palavras cheias de afeto e de ternura, palavras que o infame Judas, que acabava de sair, não era digno de ouvir”.

Neste discurso de Jesus Cristo aos seus apóstolos, devemos notar especialmente cinco pontos principais, sobre os quais meditaremos sucessivamente. Em primeiro lugar, consideremos a maneira pela qual o Salvador, depois de ter predito a seus discípulos sua morte próxima, procura consolá-los e fortalecê-los contra essa terrível provação. Diz-lhes: “Filioli, adhuc modicum vobiscam sum” – Filhinhos, ainda esou convosco um pouco” –, isto é, até à sua morte, pois devia ser-lhes tirado nesse momento, ou, segundo alguns doutores, até à sua Ascensão, pois até aí se lhes manifestava no corpo. Com esta expressão: filioli, filhinhos, mostra-lhes toda a sua ternura, amizade e dileção, pois, segundo Prisciano, nas Sagradas Escrituras, os diminutivos só são usados para assinalar o amor e a familiaridade. Da mesma forma, neste mundo, quando os amigos estão prestes a se separar, eles dão um ao outro tantos sinais de ternura quanto possível, a fim de preservar a lembrança deles após a separação. E acrescenta: “Por mais algum tempo, o mundo, isto é, os amantes do mundo, já não me verão; mas vós ainda me vereis a mim e a todos os justos”. Porque, depois da sua ressurreição, Jesus Cristo só se manifestou corporalmente aos verdadeiros fiéis. “Não se perturbe o vosso coração”, non turbetur cor vestrum; “não vos entristeçais com a notícia da minha morte; se eu morrer, é para minha glória, e também para vos enviar o Espírito Santo”. Aprendamos com isto a não nos entristecermos com a perda dos nossos amigos que morrem na fé católica; a morte é para eles o caminho que os conduz à felicidade e à glória; não deixam por isso de nos ser úteis; no seio de Deus, onde repousam, podem ajudar-nos mais eficazmente do que o teriam podido fazer enquanto viveram neste mundo. “Não vos perturbeis, pois, com o pensamento da minha morte próxima; pelo contrário, tranquilizai-vos com a esperança da minha futura ressurreição; não temais as penas e tribulações que vos ameaçam, mas permanecei constantes na vossa fé e perseverai até ao fim”. Com isto, o Salvador quer fortalecer os seus discípulos tanto contra o medo da sua morte como contra as apreensões dos males que teriam de suportar no futuro. “Acreditais em Deus, isto é, acreditai também em mim, que sou Deus, como vós mesmos tendes proclamado muitas vezes e em alta voz”. Jesus assume aqui, para os seus discípulos, a fé na Divindade, como Ele próprio os tinha instruído, e ordena-lhes que acreditem também naquele que é, ao mesmo tempo, Deus e homem. Diz Santo Agostinho:

“Para que seus discípulos não se perturbassem com o simples pensamento de sua morte como a de um homem comum, Nosso Senhor os consola afirmando que ele é Deus, e que nessa qualidade ele mesmo pode ressuscitar o homem após sua morte”.

“Na casa de meu Pai há muitas moradas”, isto é, diferentes graus de recompensa, de acordo com a diversidade e os graus de mérito. Como se lhes dissesse: “Estais certos da minha paixão e da minha morte iminente, esperai de mim, com a mesma certeza, a felicidade eterna que vos prometo depois desta vida”. Diz Santo Agostinho:

“Os apóstolos ficaram assustados quando ouviram o seu divino Mestre dizer que São Pedro, que era o mais fervoroso deles, teria de o negar três vezes, mas saíram da sua ansiedade e alegraram-se quando o ouviram falar das moradas celestiais, certos como estavam de que, depois dos perigos e provações desta vida, reinariam eternamente com Ele”.

“Pela minha morte, pela minha ressurreição e pela minha ascensão, eu prepararei para vós essa morada mais bela e desejável, mas voltarei novamente no grande dia do julgamento; então vós me vereis e eu vos conduzirei à felicidade eterna da alma e do corpo, de modo que, onde eu estiver, vós podereis estar comigo”. Essas moradas celestiais de que fala Jesus Cristo foram preparadas antecipadamente em virtude da predestinação, mas Ele teve de prepará-las novamente pela obra da redenção, e os apóstolos também tiveram de prepará-las eles mesmos pela cooperação de seus trabalhos e méritos. “Não vos deixarei órfãos”, mostrando com isto que era verdadeiramente seu pai; “vou-me embora, mas volto imediatamente para vós, enviando-vos o Espírito Santo”; ensinando-lhes com estas palavras que o Espírito Santo não podia ser-lhes enviado sem ele. Depois acrescenta: “Deixo-vos a paz do coração”, a tríplice paz, a paz do homem consigo mesmo, com Deus e com o próximo. “Dou-vos a minha paz”, que é a paz eterna, “se perseverardes constantemente na primeira”. Diz Santo Agostinho:

“Jesus Cristo deu-nos neste mundo a paz que nos permite triunfar sobre os nossos inimigos e pela qual amamos uns aos outros, mas no tempo futuro dar-nos-á a sua paz, quando no céu reinaremos sem perturbação e sem inimigos”.

Ele diz a minha paz, e com razão, para distinguir a paz de que gozam os santos da paz do mundo, que é muitas vezes apenas aparente, enganadora e não real. “Eu dou-vos a minha paz, não como o mundo a dá; porque a paz do mundo é apenas carnal, a minha é espiritual; a paz do mundo é apenas temporária, a minha é eterna; a paz do mundo é apenas exterior, a minha é interior, no coração e na consciência. Se me amásseis, alegrar-vos-íeis com a minha partida, porque vou para a glória, isto é, para junto de meu Pai, que é maior do que eu”. Diz Santo Agostinho:

“Ó admirável privilégio da natureza humana, de que o Verbo incriado quis revestir-se para a tornar imortal e a sentar à direita de Deus, seu Pai! Quem ama verdadeiramente Jesus Cristo não pode alegrar-se ao ver que a sua própria natureza foi imortalizada n'Ele e que, por Ele e n'Ele, pode esperar alcançar essa gloriosa imortalidade?”

“É útil, é necessário, que Eu vá embora e volte para o meu Pai, para que aprendais a conhecer-me e a amar-me espiritualmente, e deixeis de me amar segundo a carne, como tendes feito até agora. Se Eu não for embora, o Espírito Santo não virá a vós, mas se Eu for embora, Eu o enviarei a vós. Se eu não destruir nos vossos corações, pela minha ausência, essa afeição carnal que me tendes, não sereis dignos de receber o Espírito Santo”. Isto não quer dizer que Jesus Cristo, estando na terra, não pudesse dar o Espírito Santo aos seus apóstolos, mas não lho deu, porque eles não estavam bem dispostos. O Espírito Santo é o espírito de toda a pureza; só se comunica aos corações puros, verdadeiramente desprendidos de todas as consolações humanas e terrenas. Diz São Bernardo:

“A consolação divina é sensível e não será dada a quem admite outra”.

Diz Hugo de São Vítor:

“Nosso Senhor retira-se corporalmente do afeto dos seus apóstolos, para que eles aprendam a amá-lo espiritualmente; sobe ao céu, para atrair atrás de si os corações daqueles que lhe são devotados. Se a presença do corpo de Jesus Cristo era um obstáculo para que os apóstolos vissem o Espírito Santo, o que devemos pensar dos muitos afetos humanos e terrenos com que os nossos corações estão manchados? Não é de admirar que o Espírito Santo não habite em nós? Foi assim que as palavras do Salvador penetraram na alma dos seus apóstolos e os entristeceram, pois não podiam ouvir falar da sua morte sem ficarem muito angustiados”.

O segundo ponto em que devemos fixar a nossa atenção, e sobre o qual meditaremos seriamente, é a maneira pela qual Jesus Cristo, neste discurso, exorta os seus discípulos à prática da caridade cristã. Eis que vos dou um mandamento novo, que é o de vos amardes uns aos outros como eu vos amei. É assim que devemos seguir o nosso divino Mestre. Este preceito é chamado novo, não na sua substância, pois já existia na antiga Lei, que também prescrevia o amor ao próximo, embora não a ponto de morrer por ele, mas na sua fórmula: “Assim como Jesus Cristo nos amou, Ele que se dignou sofrer a morte por nós”. Quando um vinho está demasiado velho, perde o gosto e a cor; depois renova-se, misturando-lhe vinho novo, forte e generoso, e logo recupera a cor e o gosto. Do mesmo modo, o preceito do amor ao próximo envelheceu, tornou-se insípido, caiu em desuso; a paixão do Salvador veio renová-lo e devolver-lhe toda a sua força e vigor. É também chamada nova pelos efeitos que produz em nós; renova a alma e, a partir do homem velho, faz um homem novo. Com isto, ou seja, com o cumprimento deste preceito, todos os homens saberão claramente que sois meus discípulos, ensinados pelas minhas lições, formados pelos meus exemplos, e não por vos verem expulsar demônios ou fazer outras maravilhas. Amai-vos uns aos outros, é o que Deus vos pede e deseja. Aquele que se alista sob a bandeira de um rei da terra não tem de usar a sua insígnia? Pois bem, a insígnia do cristão é a caridade; quem quiser alistar-se ao serviço do Rei dos reis deve ter como padrão a caridade. Diz Santo Agostinho:

“É como se Jesus dissesse: ‘Todos os homens partilham contigo os meus dons; como tu, eles possuem a vida do corpo e dos sentidos, a razão, a saúde; como tu, eles podem participar dos Sacramentos, da fé, do conhecimento das Sagradas Escrituras; como tu, eles podem distribuir os seus bens aos pobres, até mesmo expor-se ao martírio, mas, porque não têm caridade, são apenas címbalos que retinem; todas as suas obras estão perdidas para a vida eterna. A caridade é uma fonte da qual nenhum estrangeiro pode saciar a sua sede; só ela distingue os filhos de Deus dos filhos do demônio. Todos se marcam com o sinal da cruz, todos respondem amém, todos cantam aleluia, todos são batizados, todos entram igualmente nas igrejas; como distinguir os verdadeiros filhos de Deus dos filhos dos homens? Só pela caridade. Tende todas as virtudes que puderdes, se não tiverdes a caridade, de nada vos servirão; quando, pelo contrário, não tiverdes nenhuma outra virtude, se tiverdes a caridade, tereis cumprido a lei’”.

Este é o meu mandamento: “que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei”, isto é, não fazendo aos outros o que não faríeis a vós mesmos, mas fazendo aos outros o que gostaríeis que eles vos fizessem.

Notemos aqui que o nosso divino Salvador nos amou de três maneiras diferentes. Em primeiro lugar, amou-nos com um amor totalmente voluntário e livre; não esperou para nos amar enquanto nós próprios não o amássemos. Seguindo o seu exemplo, devemos também amar os nossos irmãos e não esperar que eles nos avisem com os seus bons ofícios. Da mesma forma, e ainda mais, devemos amar a Deus que nos amou primeiro. Jesus Cristo veio a este mundo como um ato gratuito de amor por nós, para nos redimir dos nossos pecados; amemo-lo, pois, por nossa vez, para que, pela mesma caridade que o fez descer até nós, também nós subamos até ele. Em segundo lugar, o nosso divino Salvador amou-nos efetivamente, isto é, pelas suas obras, uma vez que se dispôs a sacrificar-se e a dar a sua vida por nós. O verdadeiro amor manifesta-se pelas suas obras. “Amemo-nos também uns aos outros, não de palavra”, como diz o apóstolo João, “mas efetivamente e em verdade”. Do mesmo modo, e ainda mais, amemos a Deus para cumprirmos os seus mandamentos e a sua lei. Em terceiro lugar, Jesus Cristo amou-nos segundo a ordem e a justiça, para nos atrair a si e nos conduzir à bem-aventurança celeste. Do mesmo modo, devemos amar-nos uns aos outros, não por benefícios temporais, mas unicamente por Deus, para que todos alcancemos a felicidade eterna. A caridade fraterna contém, sem dúvida, o amor de Deus, que é o seu princípio, pois só devemos amar o próximo em vista de Deus e em relação a ele. Mas o Salvador fala aqui apenas do amor do próximo e não do amor de Deus, pois diz: “Amai-vos uns aos outros”. A razão disso é que Ele queria exortar seus apóstolos a confortar os fiéis e a suportar as perseguições com paciência e coragem, o que não pode ser praticado sem o amor fraterno que está contido no amor de Deus.

O Salvador acrescenta em seguida: “Ninguém neste mundo pode dar um testemunho mais evidente do seu amor do que sacrificar a sua vida pelos seus amigos”; este é, de facto, o sinal mais evidente da verdadeira caridade, e ninguém pode ir além dele. Jesus Cristo, portanto, deu-nos a prova desse imenso amor, pois se dispôs a sofrer e a morrer por nós. Se, para nos redimir, o Salvador não teve medo de sacrificar a sua vida, também nós, seguindo o seu exemplo, devemos estar prontos a sacrificar a nossa pela salvação dos nossos irmãos. Quatro coisas em particular devem atrair e fixar o nosso amor: Primeiro Deus, depois a nossa alma, depois o nosso próximo e, por fim, o nosso próprio corpo. Esta é a ordem que deve ser mantida nos nossos afetos. Assim, devemos amar a Deus acima de tudo e estar prontos a sacrificar tudo por seu amor e glória. Devemos preferir a salvação das nossas almas aos interesses do nosso próximo e ao bem-estar do nosso corpo. Por fim, devemos estar prontos a sacrificar a nossa vida, mesmo que seja necessário, por causa dos nossos irmãos, quando se trata da salvação das suas almas. “O que vos recomendo é que vos ameis uns aos outros; só nisso encontrareis alegria e consolação; sem esta caridade mútua, não encontrareis nem contentamento nem repouso neste mundo”. Jesus Cristo parece falar apenas do único preceito da caridade, como se não houvesse outros mandamentos; pois, segundo São Gregório, todos os outros mandamentos, por mais diversas que sejam as suas prescrições, estão relacionados com o grande preceito da caridade, que é o seu fundamento e princípio. O Salvador acrescentou muitas outras coisas relativas ao amor ao próximo, que São João regista no seu Evangelho ou nas suas Epístolas, pois ninguém entre os apóstolos falou mais de caridade fraterna do que ele. Lemos dele que, tendo atingido uma idade avançada, fez com que os seus discípulos o levassem à igreja para instruir os fiéis, aos quais repetia constantemente estas palavras: “Meus filhinhos, amai-vos uns aos outros, nisto consiste toda a perfeição cristã”. São João foi chamado o discípulo amado do Salvador, não só por causa da sua virgindade, mas também pelo afeto e ternura excessiva que tinha pelo seu divino Mestre.

O terceiro ponto em que devemos nos deter e meditar seriamente nesse discurso do Salvador é a maneira pela qual Ele compromete seus discípulos a observar seus preceitos. “Se me amais", disse Ele, “guardai os meus mandamentos pelas vossas obras”. É como se lhes dissesse: “Não procureis demonstrar o vosso amor por mim com as vossas lágrimas, mas procurai demonstrá-lo com a vossa obediência”. Os grandes e poderosos deste mundo reconhecem os seus verdadeiros amigos e servos fiéis pelo zelo e prontidão com que cumprem as suas ordens e vontades; o sinal mais claro do amor é fazer a vontade de quem se ama. “Aquele que me ama verdadeiramente recebe os meus mandamentos e observa-os não só em palavras, mas também em atos e em conduta”. O verdadeiro amor manifesta-se em atos, caso contrário não passa de um nome vão. “Aquele que diz amar a Deus”, diz São João, “e não cumpre os seus preceitos, é um mentiroso”. “Por isso, quem me ama verdadeiramente guardará a minha palavra, isto é, os meus mandamentos, porque a obediência é o resultado do amor que está no coração”. Guardamos a palavra de Deus quando fazemos o que Ele nos manda, quando amamos o que ele nos promete. Aquele, pelo contrário, que se contenta em guardar esta palavra na sua memória, sem se dar ao trabalho de a praticar na sua conduta, trabalha para a sua própria perdição e não para a sua salvação. Diz São Gregório:

“Nós amamos verdadeiramente a Deus se observamos os seus preceitos, se por amor a Ele reprimimos todos os desejos sensuais; aquele que se entrega aos prazeres dos sentidos não ama verdadeiramente a Deus, pois a sua vontade está então em oposição à vontade divina; quanto mais nos afastamos do afeto das coisas terrenas, mais nos aproximamos também do amor de Deus. Se observardes fielmente os meus preceitos, permanecereis no meu amor, isto é, sabereis que sois verdadeiramente meus amigos, que permaneceis no meu amor e na minha graça, se observardes os meus mandamentos”.

A observância dos preceitos do Senhor é o efeito e o sinal do amor divino, não só daquele amor com que nós o amamos, mas também daquele com que ele próprio nos ama, pois ajuda-nos então na prática dos seus mandamentos, que não poderíamos cumprir sem a sua graça. Diz Santo Agostinho:

“Com essas palavras, nosso divino Salvador quer nos ensinar não qual é a fonte e a origem, mas quais são as notas do verdadeiro amor, de modo que ninguém pode ser enganado dizendo que ama a Deus, se ao mesmo tempo não observa seus preceitos. Quanto mais amamos a Deus, mais nos sentimos inclinados a observar a sua lei; quanto menos observamos essa lei, menos amamos a Deus”.

“Sois meus amigos se fizerdes o que vos mando, isto é, se provardes pelas vossas obras a amizade e o afeto que me tendes”. A obediência do homem é o sinal manifesto do seu amor; o preceito é o sinal da vontade de Deus; se não fizermos o que Deus nos manda, a nossa vontade está em desacordo com a sua vontade e, portanto, não merecemos ser chamados seus amigos. Diz São Gregório:

“O verdadeiro amigo é como o guardião da alma daquele que ama, por isso é com razão que aquele que faz a vontade de Deus, guardando os seus mandamentos, é chamado seu amigo. Que ninguém, portanto, imagine que ama verdadeiramente a Deus, a não ser que o prove pelas suas obras”.

Diz também São Gregório:

“O amor de Deus nunca está ocioso. O homem que o possui verdadeiramente no seu coração, entrega-se sem arrependimento à prática das boas obras; se deixa de agir, é porque o amor de Deus não está nele. Quando se pergunta a um cristão se ele ama verdadeiramente a Deus, ele responde imediatamente e sem hesitação: ‘Sim, eu amo-o’. Se queres saber se amas verdadeiramente a Deus, pergunta primeiro ao teu coração. O coração está constantemente ocupado com o objeto dos seus afetos; o avarento pensa continuamente nos seus tesouros, o voluptuário nos seus prazeres, o homem ambicioso nas honras e na glória; do mesmo modo, o homem verdadeiramente espiritual pensa constantemente em Deus. Se, pois, o vosso coração está mais ocupado com o mundo e com as coisas do mundo, é evidente que amais mais o mundo do que o próprio Deus. Em segundo lugar, examinai a vossa linguagem. As palavras são a expressão dos sentimentos do coração; o homem fala com prazer do objeto dos seus afetos; se, portanto, vos alegrais mais em falar das coisas da terra do que das coisas do céu, deveis concluir que amais mais o mundo do que Deus. Finalmente, perguntai pelas vossas obras. A propriedade essencial do fogo é arder; portanto, se o fogo sagrado do amor divino arde nos vossos corações, manifestar-se-á essencialmente pelas vossas obras, mas se permanecerdes indiferentes à prática do bem, esse fogo divino está evidentemente extinto em vós. Saberemos, pois, que amamos verdadeiramente a Deus, se O preferirmos a todas as coisas do mundo, se amarmos o nosso próximo como a nós mesmos, e se Lhe manifestarmos esse amor pelos nossos sentimentos, pela nossa linguagem e pelas nossas obras”.

O quarto ponto sobre o qual devemos nos deter neste discurso é a maneira pela qual nosso divino Salvador procura proteger seus discípulos e encorajá-los contra os sofrimentos e perseguições que lhes havia anunciado, para que não cedam ao desânimo e ao desespero. Dizia-lhes: “Se o mundo, isto é, se os amantes do mundo, que só procuram as alegrias, as honras e as riquezas da vida presente, vos odiarem e detestarem, não vos admireis; antes, para vossa consolação, sabei que eles me odiaram e detestaram antes de vós”. Diz São Crisóstomo:

“Como se lhes estivesse a dizer: ‘Sei bem que o que vos anuncio aqui é duro e difícil de ouvir; mas não vos entristeçais; é por minha causa que ireis sofrer’”.

Não é então consolador para os discípulos sofrerem algumas tribulações por causa do seu Mestre? Diz Santo Agostinho:

“Porque é que os membros se recusam a participar nas dores da sua Cabeça? Recusais fazer parte do corpo de Jesus Cristo se não quiserdes, como Ele e com Ele, suportar o ódio do mundo”.    

O Salvador explica então aos seus apóstolos a razão desse ódio: porque eles não são do mundo e nada têm em comum com ele, eles que são agora cidadãos do céu; por isso mesmo, devem suportá-lo com resignação e paciência. Diz São Gregório:

“O opróbrio dos maus é um elogio da nossa vida; podemos acreditar que temos algumas virtudes, quando começamos a desagradar àqueles que não podem de modo algum ser agradáveis a Deus”.

Jesus exorta-os então, com o seu próprio exemplo, a suportar este ódio aos mundanos: “Lembrai-vos”, acrescenta Ele, “das palavras que já vos disse: Se o mundo me perseguiu a mim, vosso Mestre, porque não vos perseguirá a vós, meus discípulos?”. Diz São Crisóstomo:

“Como se lhes dissesse: Não vos perturbeis nem vos entristeçais, se participais das minhas dores e dos meus sofrimentos; não sois maiores do que eu”.

“O mundo regozijar-se-á enquanto estiverdes aflitos, mas em breve a vossa dor se transformará em alegria”. Porque, quando o Salvador morreu, os judeus ficaram radiantes, acreditando que tinham destruído nele todos os seus seguidores; os apóstolos, pelo contrário, ficaram angustiados e desolados, mas, no momento da ressurreição do seu divino Mestre, a sua tristeza transformou-se em alegria, e essa alegria foi ainda aumentada pela sua gloriosa ascensão e pela descida do Espírito Santo no dia de Pentecostes. Deus, de fato, depois das aflições e das lágrimas, dá-nos felicidade e alegria abundantes. Se uma pessoa poderosa e digna de confiança nos prometesse transformar em ouro todas as pedras que lhe trouxéssemos, com que avidez, com que ardor, não nos poríamos a trabalhar? Pois bem, Deus, que é omnipotente, é todo-poderoso. Deus, que é omnipotente e infalível na verdade, promete-nos que as dores, os sofrimentos e as tribulações desta vida, se as sofrermos com paciência e por amor dele, também se transformarão para nós em alegria e consolação; devemos, portanto, aceitá-las com resignação e até com gratidão. Jesus Cristo não disse aos seus discípulos: “Depois das dores e das aflições, gozareis de felicidade e de alegria”, mas disse-lhes: “A vossa dor transformar-se-á em alegria”, mostrando-nos que a alegria futura será proporcional às dores e aos sofrimentos que suportámos nesta vida.

Para tornar essa verdade mais clara para seus apóstolos, o Salvador usa uma comparação que já havia feito. “Quando uma mulher está para dar à luz, sente dores cruéis e terríveis; mas logo esquece o seu sofrimento na alegria que sente por ter dado à luz um filho. Do mesmo modo, agora estais aflitos e tristes com a ideia da minha paixão e da minha morte; mas eu hei de ver-vos de novo, e então o vosso coração rejubilará e ninguém poderá tirar-vos a alegria”. Pois quando Jesus Cristo se mostrou aos seus discípulos após a sua ressurreição, eles regozijaram-se ao vê-lo revestido daquela vida imortal que nunca mais lhe seria tirada, e na esperança de que um dia partilhariam com Ele daquela gloriosa ressurreição, regozijaram-se por terem sido considerados dignos de sofrer por causa do seu divino Mestre. Como conclusão final de tudo o que havia dito anteriormente aos seus apóstolos para fortalecê-los contra as dores e perseguições que os aguardavam nesta vida, o Salvador acrescenta: “Tudo o que vos disse até agora, disse-vos para que tenhais paz em Mim quando chegar a hora da tribulação para vós”. O coração do homem só pode encontrar repouso em Deus. Os mundanos, cujos corações estão separados de Deus, no meio das penas que os atingem, estão privados de toda a consolação, de toda a paz; os santos, pelo contrário, cujos corações estão unidos a Deus pelo amor, provam a felicidade e a alegria mesmo no meio das adversidades e das maiores perseguições. Como um pai cheio de ternura e afeto pelos seus filhos, o Salvador termina o seu discurso com estas palavras, reservando assim para a conclusão o que lhes seria mais útil, isto é, aquela verdadeira paz de coração que só se pode encontrar nele e para a qual nos convida a todos.

Tudo o que Jesus Cristo disse e fez, não só na Última Ceia, mas durante toda a Sua vida mortal, todos os ensinamentos que nos deu, foram dirigidos para este único fim, que era o de obter para os homens paz de coração nesta vida e paz eterna na outra. É por esta razão que somos cristãos; é com vista a esta paz que participamos dos Sacramentos da Igreja; é como penhor desta paz que recebemos o Espírito Santo; é a esperança de alcançar esta paz que nos sustenta nas tribulações desta vida, para que, depois de termos sido consolados por ela no meio de provações e sofrimentos, possamos nela reinar para sempre com Deus. O Salvador conclui o seu discurso com isto, porque esta paz é a consumação da vida presente e o penhor e a garantia da bem-aventurança eterna. Diz Santo Agostinho:

“Esta paz nunca terá um fim neste mundo; pelo contrário, é ela mesma o fim de todos os nossos pensamentos, de todos os nossos desejos e de todas as nossas obras”.

“Tereis muitas tribulações”, acrescenta Jesus Cristo, “muitos tormentos a suportar dos ímpios, vossos perseguidores; mas em mim tereis paz. Tranquilizai-vos e confiai em mim; por vós venci o mundo e Ele nunca prevalecerá contra vós”. Como se lhes dissesse: “No meio das vossas tristezas, da vossa dor, do vosso sofrimento, recorrei a mim, lançai-vos nos meus braços; em mim encontrareis sempre descanso e paz”. Jesus Cristo, por nós, venceu o mundo, tirando-lhe as armas com que ele luta contra os homens, e essas armas são as concupiscências desta vida. “Tudo o que há neste mundo”, diz o apóstolo São João, “ou é concupiscência da carne”, e Jesus Cristo destruiu-a pelos seus trabalhos e sofrimentos; “ou concupiscência dos olhos”, e Jesus destruiu-a pela sua pobreza; “ou soberba da vida”, e o Salvador espezinhou-a pelas suas humilhações e abaixamentos. É esta vitória de Jesus Cristo sobre o mundo que deve excitar a confiança dos justos durante esta vida; que eles lancem os olhos sobre o seu divino modelo; animados, encorajados pelo seu exemplo, triunfarão como ele sobre todas as provas, todas as tentações do mundo. “Jesus Cristo” - diz o apóstolo São Pedro – “sofreu na sua carne, para que, com o seu exemplo, aprendêsseis a sofrer”. Aquele que, seguindo as pegadas do Salvador, triunfa sobre todas as concupiscências mundanas, venceu o mundo. “Esta vitória”, diz São João, “é fruto da nossa fé”, porque a fé, que é a substância dos bens espirituais e eternos que esperamos, faz-nos desprezar os bens efémeros e perecíveis desta vida.

O quinto ponto sobre o qual devemos meditar é a oração que Jesus Cristo, depois de falar aos seus apóstolos, dirige a Deus, seu Pai, em favor deles. Quando nosso divino Salvador terminou de falar a seus discípulos, levantou-se e, voltando seus olhos para o céu, começou a orar. Se ele reza, não é tanto para obter para si mesmo algum favor de seu Pai celeste, mas para nos dar um exemplo que devemos imitar; é por isso que vamos considerar aqui esta oração de nosso divino Mestre em suas três circunstâncias principais. Em primeiro lugar, em relação às coisas precedentes: Jesus Cristo, depois de ter falado durante muito tempo aos seus discípulos e de os ter instruído com as suas lições, começa a rezar. Provavelmente queria mostrar-nos que devemos recorrer a Deus para obter d’Ele a realização de todas as nossas boas obras, e também ensinar-nos que devemos ajudar com as nossas orações aqueles que instruímos com as nossas palavras. Com efeito, a palavra de Deus nunca penetra mais eficazmente no coração daqueles que a ouvem do que quando é sustentada e reforçada pela oração ardente daquele que ensina. Em segundo lugar, e em relação às coisas atuais, Jesus Cristo, enquanto reza, ergue os olhos para o céu para nos mostrar que, na oração, devemos ter os nossos afetos e sentimentos fixos apenas em Deus. Diz São João Damasceno:

“A oração é uma elevação dos nossos pensamentos e do nosso coração a Deus. De todas as partes do nosso corpo, são sobretudo os olhos que refletem os sentimentos interiores da nossa alma”. Onde está o objecto do nosso amor, aí também se fixam os nossos olhos”.

Diz São Crisóstomo:

“Jesus Cristo, na sua oração, ergue os olhos para o céu para nos mostrar que também nós, na oração, devemos elevar a Deus não só os olhos do nosso corpo, mas sobretudo os da nossa alma. Os santos, por vezes, na oração, permanecem com os olhos fixos no céu, não por orgulho, mas por humildade, mostrando que só recorrem a Deus e que só aspiram aos bens espirituais e celestes”.

É isto que leva o salmista a dizer: “Levantei os meus olhos para ti, Senhor, que habitas nos céus”. Devemos elevar não só os nossos olhos para o céu, mas também todas as nossas obras, relacionando-as com a honra e a glória do Altíssimo, segundo as palavras do profeta Jeremias: “Levantemos os nossos corações e as nossas mãos para o Senhor que está nos céus”. As mãos são aqui o emblema das nossas obras. Em terceiro lugar, e em relação às coisas futuras: Aproximava-se a hora da paixão de Jesus Cristo; Ele acabava de predizer aos seus discípulos os males que teriam de sofrer; depois dirigiu ao seu Pai uma fervorosa oração. Ele queria ensinar-nos que o homem, no meio das provações e angústias desta vida, deve dirigir-se a Deus em oração, seguindo o exemplo de Moisés, de Susana e de várias outras personagens do Antigo Testamento, que, nas suas aflições, se dirigiram ao Senhor e obtiveram a libertação dos seus problemas.

Ora, Jesus Cristo reza primeiro por si próprio e depois pelos seus membros. Ele reza por si mesmo segundo a sua natureza humana e segundo a sua natureza divina. De acordo com a natureza humana, pede que, depois de ter sofrido as humilhações da cruz, seja glorificado pela sua ressurreição, pela sua ascensão e também no grande dia do julgamento geral. Segundo a natureza divina, Ele pede a manifestação da glória do Pai e do Filho e, portanto, do Espírito Santo, pois Ele é o elo, o amor que une o Pai e o Filho, e porque estas três Pessoas divinas têm a mesma natureza e o mesmo poder. Por isso, Jesus pede que esta glória, que desde toda a eternidade Ele tem de Deus, seu Pai, seja manifestada aos homens. Sem isso, os seus discípulos, considerando-o como um homem, abismados com a ignomínia da sua paixão e desesperados com a glória da sua ressurreição, poderiam ter falhado na sua fé. Depois reza pelos seus membros, e isto de duas maneiras: primeiro pelos seus membros atuais, que estão unidos a ele pela fé; depois pelos seus membros futuros, que, pela palavra dos primeiros, hão de chegar mais tarde à fé do Evangelho. Por isso, reza primeiro pelos seus discípulos e por todos os seus membros que agora acreditam nele e recomenda-os ao Pai celeste, dizendo: “Pai Santo, guarda-os de todo o pecado, para que permaneçam na fé e na verdade do meu nome. Estes são os que me deste para serem o fundamento da Igreja que vim estabelecer na terra; que eles permaneçam unidos a mim e uns aos outros no amor, para que, assim como Tu e Eu somos um por natureza, eles também sejam um comigo e uns com os outros pelo amor, e que, como eu sou teu filho por natureza, eles também sejam teus filhos e meus irmãos pela tua graça”. Ou ainda, segundo Santo Agostinho:

“Assim como o Pai e o Filho são iguais por natureza e têm uma só e mesma vontade, assim Jesus Cristo requer que seus discípulos não só sejam um e o mesmo por natureza, mas também que sejam um em Deus e unidos pelos laços da caridade. Porque a perfeição da criatura consiste na sua maior semelhança com Deus, e quanto mais justos e santos formos, tanto mais nos aproximaremos dessa semelhança divina”.

“Eu rogo por eles, ó Pai, porque são teus pela tua eterna predestinação; mas não rogo pelo mundo, isto é, pelos amantes do mundo, que, na tua presciência, estão destinados à condenação eterna”. Sem dúvida, a oração do Salvador poderia ser eficaz para todos, mas os ímpios não têm parte nela porque a obstruem continuamente. “Não te peço, Pai, que os afastes das dores e misérias deste mundo; é necessário que permaneçam nele para a salvação dos outros e também para o seu próprio bem, pois não são perfeitos”. Como se estivesse a dizer, segundo o venerável São Beda:

“Aproxima-se o tempo em que serei levado deste mundo, por isso é necessário que eles próprios permaneçam nele para anunciar o vosso nome e o meu aos homens; mas, peço-vos, guardai-os de todo o pecado e fazei-os perseverar com constância na minha fé e no meu amor”.

Aprendamos com isto que os santos, por mais perfeitos que sejam, nunca devem pedir para deixar este mundo, enquanto a sua vida puder ser útil aos seus irmãos. Santificai-os cada vez mais, isto é, fortalecei-os na verdade da fé evangélica, numa vida santa e na verdadeira doutrina. Deus cumpriu esta oração do Salvador quando, no dia de Pentecostes, enviou o seu Espírito Santo aos apóstolos.

O Salvador reza então por todo o povo fiel, dizendo: “Ó meu Pai, não rogo somente por eles, mas também por todos aqueles que, obedecendo às suas instruções, crerão no meu santo Evangelho”. Diz Santo Agostinho:

“Nosso Senhor, com estas palavras, entende não só os fiéis que então viviam, mas também todos os bons cristãos que hão de vir à fé”.

O Evangelho foi pregado pelos apóstolos antes de ser escrito, e, no entanto, todos os que acreditavam em Jesus Cristo naquele tempo acreditavam verdadeiramente no Evangelho. “Peço-te, pois, ó meu Pai, que todos eles, unidos pela mesma fé e pelo mesmo amor, formem um só corpo, assim como nós somos um em nossa natureza e substância, para que o mundo inteiro, instruído pela pregação deles, conheça e creia que Tu me enviaste; que a doutrina que eu lhes preguei é a tua doutrina, e para que todos sejam um”. A prova mais evidente e manifesta da verdade evangélica é a caridade mútua dos fiéis entre si. Diz São Crisóstomo:

“Não há nada mais escandaloso neste mundo do que ver os cristãos divididos entre si, mas não há nada mais edificante do que vê-los unidos pelos laços da verdadeira e sincera caridade”.

“A glória que me destes, eu os revesti”. Porque Jesus Cristo deu aos seus apóstolos o poder de fazer milagres, poder que só neste mundo podia manifestar aos homens a divindade do Salvador.

Nosso Senhor pede então a seu Pai que os membros sejam unidos à cabeça, razão pela qual acrescenta: “Todos aqueles, ó meu Pai, que me deste por tua eterna predestinação, quero, isto é, desejo que estejam onde eu mesmo estarei na eterna bem-aventurança, e que vejam a glória com que me revestiste, isto é, a minha divindade, pela qual sou semelhante a ti, e a minha gloriosa humanidade”. No céu, de fato, os eleitos contemplarão a divindade e a santa humanidade do Salvador. “Ó meu Pai, desde toda a eternidade e antes da criação do mundo, Vós me amastes com um amor de predileção”. Com efeito, desde toda a eternidade, Deus amou o seu Filho divino e, enquanto homem, predestinou-o para a glória e honra da sua santa humanidade. Desde toda a eternidade, amou-nos também com um amor predestinado, como futuros membros do seu Filho bem-amado, porque Jesus Cristo habita em nós como no seu templo, e nós estamos unidos a ele como os membros à sua cabeça. Diz Santo Agostinho:

“Jesus Cristo esforça-se por inspirar aos seus discípulos as mais altas e sublimes de todas as esperanças; escutai, pois, e alegrai-vos, para que possais suportar com resignação e paciência os males que vos acontecerem”.

Ouvi estas palavras do vosso divino Mestre: “Ó meu Pai, quero que aqueles que me destes estejam comigo onde quer que eu esteja”. Que são, pois, aqueles que Deus Pai deu ao seu divino Filho, senão aqueles de quem ele diz noutro lugar: “Ninguém pode vir a meu Pai, se meu Pai, que me enviou, não o atrair a si”?

Como é doce e consoladora para o coração do cristão esta oração do nosso divino Salvador! É para nós um remédio eficaz contra todos os nossos pecados e todas as nossas penas. Do princípio ao fim, ela é paz e amor. Ó homens, se meditásseis atenta e fervorosamente neste último discurso de Jesus Cristo aos seus apóstolos, não sentiríeis o vosso coração arder no fogo sagrado do amor divino, à vista de tanta bondade de um Deus para conosco, suas pobres criaturas? Aí encontraríeis um antídoto seguro para todas as tentações, e uma abundante consolação em todas as provações e misérias desta vida. É aí, de facto, nesta última ceia do Salvador com os seus discípulos, que o verdadeiro Cordeiro Pascal, aquele que é o único a apagar verdadeiramente todos os pecados do mundo, foi oferecido, foi imolado sob as espécies sacramentais do pão e do vinho. É aí, nesta festa admirável, que o Filho eterno do Altíssimo fez brilhar toda a sua bondade, toda a sua doçura, dignando-se sentar à mesma mesa que os seus pobres discípulos e o próprio Judas, que o havia de trair. Foi aí que o Rei da glória nos deu o mais admirável exemplo de humildade, rebaixando-se diante de miseráveis pecadores, a ponto de lhes lavar os pés. Foi ali que mostrou a sua infinita generosidade para conosco, dando-se a si mesmo como alimento, através da instituição do augusto Sacramento do seu precioso corpo e sangue. Foi aqui, finalmente, que manifestou todo o excesso do seu amor pelos seus discípulos, que amou até ao fim, procurando consolá-los com as suas suaves exortações, e especialmente por São Pedro, cuja fé reavivou, e por São João, que fez repousar sobre o seu próprio coração nesta última ceia. Quanta consolação e quanta doçura contém esta meditação para o verdadeiro cristão que a ela se quiser dedicar com ardor! Então, inflamado de amor, clamará com o salmista: “Como a corça sedenta anseia pela água das fontes, assim a minha alma anseia por vós, ó meu Deus!”. Contemplai, pois, o nosso divino Salvador; vede com que bondade e delicadeza Ele se esforça por fazer chegar as suas palavras ao coração dos seus discípulos; fixai n’Ele os vossos olhos e uni-vos a Ele por amor. Considerai os discípulos que estão desolados e em lágrimas; estão dominados pela tristeza, como o próprio Jesus Cristo testemunha com estas palavras: “Porque vos disse todas estas coisas, a tristeza apoderou-se dos vossos corações e gemem ao ouvir que em breve me separarei de vós”. Considerai especialmente o apóstolo São João, o discípulo predileto do Salvador. Com que cuidado recolheu ele todas as palavras do seu bom Mestre, que nos conservou e registou nos seus escritos. Bendito São João, que repousava no coração de Jesus e que tirava dessa fonte fecunda todos os segredos do amor divino! Ninguém entre os apóstolos foi mais fiel ao seu Mestre do que ele. Embora fosse o mais jovem de todos, sentou-se ao lado de Jesus na Última Ceia; seguiu-o com firmeza até à casa do sumo sacerdote e acompanhou-o até ao Calvário; esteve presente na sua crucificação e morte, e não o deixou até ser depositado no túmulo.

Mas quando o Salvador viu que os seus discípulos estavam aterrorizados e assustados, primeiro porque era de noite, e depois porque ainda estavam em Jerusalém e podiam ter medo de ser presos, e porque estavam tão preocupados que já não prestavam atenção suficiente às suas palavras, e vendo que se aproximava a hora em que seria entregue nas mãos dos seus inimigos, e querendo ir ele próprio de antemão ao lugar onde seria traído, disse-lhes: “Levantai-vos e vamos embora”. “Vamos para um lugar mais seguro e isolado, onde podereis ouvir melhor o que tenho para vos dizer. Vamos para o lugar onde vou ser entregue aos judeus e separado de vós em corpo. Quem quiser vir depois de mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. Ó alma cristã, implora com lágrimas ao teu Senhor que não te deixe separar d’Ele; agarra-te ao seu lado; pede-lhe a graça de o seguires na vida e na morte. Oh, como era imensa a desolação dos apóstolos naquela hora, que não sabiam para onde iam e que temiam ser separados do seu bom Mestre a cada momento. Mas, antes de deixar a mesa do banquete, Jesus Cristo quis dar graças a Deus, seu Pai, como tinha feito antes de se sentar, ensinando-nos que também nós devemos bendizer a Deus antes e depois das nossas refeições. Diz São Crisóstomo:

“Ensinai-vos com este exemplo, vós que, como animais imundos, deixais a mesa onde acabais de comer, por vezes até em excesso, sem pensar em agradecer a Deus”.

Aprendei e aproveitai este exemplo, vós, cristãos, que deixais a Igreja antes das últimas orações da Missa, que se realizam em memória da ação de graças do Salvador. Jesus Cristo quis, antes e depois da Última Ceia, quando se deu como alimento aos seus discípulos, dar solenes graças a Deus, para nos ensinar a bendizer a Deus no princípio e no fim de todas as nossas ações. Diz São Beda:

“O nosso divino Senhor ao dar graças a Deus, seu Pai, no momento em que ia ser entregue às mãos dos seus inimigos, mostra-nos que se expunha voluntariamente à morte por nossa causa, e ensina-nos também com isto que, quando estamos na dor e na aflição, não devemos ficar perturbados nem desanimados, mas devemos rezar a Deus para que se digne ajudar-nos”.

Assim, depois de ter dado graças a Deus pela instituição do augusto sacramento da Eucaristia e pelo estabelecimento da nova lei evangélica, o Salvador saiu com os seus discípulos da casa onde se encontrava e da cidade de Jerusalém, para o mesmo lugar onde devia ser preso e entregue nas mãos dos seus carrascos, mostrando mais uma vez que a sua morte era voluntária e demonstrando o grande desejo que tinha de sofrer para realizar a nossa redenção. Sigamos o nosso divino Salvador com os olhos da fé e sigamos os seus passos; Ele vai primeiro, acompanhado pelos seus discípulos, que se aglomeram à sua volta como pintainhos à volta da mãe. Suporta com bondade e paciência as suas importunações e, pelo caminho, fala-lhes e instrui-os melhor. Segue com eles para leste, passando pelo ribeiro de Cedrom e pelo vale de Josafá, entre Jerusalém e o Monte das Oliveiras. A torrente de Cedrom atravessa este vale, que recebeu o nome do rei Josafá, cujo túmulo foi construído em forma de torre; no mesmo lugar havia dois outros túmulos: o do velho Simeão e o de São José, esposo da Virgem Maria e pai adotivo de Jesus. O Salvador foi com os seus discípulos para uma pequena casa de campo chamada Getsêmani, situada no sopé do Monte das Oliveiras. Mais tarde, foi construída uma igreja neste mesmo local, encostada à rocha sob a qual os discípulos adormeceram durante aquela noite terrível. Esta igreja pertenceu outrora aos cônegos regulares da ordem de Santo Agostinho, que viviam sob a direção de um abade. Jesus entrou então com os seus discípulos no jardim contíguo a esta casinha e aí esperou a chegada do seu discípulo infame, que viria prendê-lo à frente de homens armados. Espera aquele a quem Deus, seu Pai, deu todo o poder, mesmo sobre os seus perseguidores, e que se deixará levar de bom grado e sem qualquer resistência. Judas conhecia perfeitamente este lugar, porque o Salvador ia lá muitas vezes com os seus discípulos para meditar em oração e instruir os seus apóstolos mais tranquilamente, longe do barulho e do tumulto do mundo. Diz São Crisóstomo:

“Jesus Cristo, sobretudo nas grandes solenidades, costumava levar os seus discípulos, depois da ceia, para um lugar calmo e sossegado, longe do tumulto dos homens, a fim de os instruir mais facilmente e de lhes revelar segredos que ainda não eram conhecidos por todos”.

Era a hora das Completas. Dizemos “Completas” porque é o momento em que o dia terminou, completou o seu curso. Dizemos “Completas” também porque Nosso Senhor, depois de ter terminado a sua pregação, depois de ter celebrado com os seus apóstolos a Última Ceia, na qual instituiu o augusto Sacramento dos nossos altares, veio para este lugar, onde devia ser entregue nas mãos dos seus perseguidores. Foi também aí que se cumpriram as palavras do profeta: “Ferirei o pastor e as ovelhas dispersar-se-ão”. Ó alma cristã, vai também com Jesus Cristo, sem nunca O abandonares para que Ele não te abandone.

De acordo com o sentido místico, Jesus Cristo, ao deixar a cidade de Jerusalém para ir ao Getsêmani, ensina-nos que também nós devemos deixar o mundo, deixar a conversa dos homens, quando queremos oferecer corretamente o Santo Sacrifício a Deus. Ensina-nos também que, quando queremos dedicar-nos à oração e tratar com Deus o importante assunto da nossa salvação, devemos fugir do tumulto do mundo e retirar-nos para um lugar calmo e tranquilo. Quando Ele saiu, foi para além da torrente Cedrom, que significa dor e tristeza, e representa o caminho, o percurso da paixão que Jesus Cristo estava disposto a percorrer. Pois assim como a torrente, depois de ter sido seca no Verão pelo calor do sol, rola com impetuosidade as suas águas aumentadas e inchadas pelo Inverno, assim o Salvador, abrasado pelo fogo divino da caridade e cheio da luz da verdade, suportou voluntariamente a fúria impetuosa dos seus carrascos. Jesus Cristo foi ao Getsêmani na hora em que devia começar a sua paixão, para nos ensinar que todo o cristão que se prepara para o martírio deve pensar antecipadamente na violência dos tormentos que o esperam e armar-se de paciência para os suportar corajosamente, porque, como diz São Gregório, os males que se previram são mais fáceis de suportar. O Salvador rezou e quis ser agarrado pelos seus inimigos num jardim, para nos mostrar, sem dúvida, que tinha vindo a este mundo para expiar o pecado dos nossos primeiros pais, que também tinha sido cometido num jardim, isto é, no paraíso terrestre; ou talvez para nos ensinar que, pela sua paixão, devia introduzir-nos no jardim das verdadeiras delícias, que é a casa celeste. O Salvador foi rezar no Monte das Oliveiras logo após a última ceia; é o que os religiosos nos apresentam quando vão do refeitório à capela em procissão para dar graças a Deus. Depois da ação de graças, segundo Orígenes, o Salvador e os seus discípulos foram para o Monte das Oliveiras, mostrando-nos que todo o bom cristão, depois de receber a Sagrada Comunhão, não deve mais ocupar-se das coisas terrenas, mas deve, segundo São Jerônimo, subir ao Monte das Oliveiras, isto é, elevar-se às virtudes mais sublimes; é aí que encontrará a recompensa dos seus trabalhos, a consolação de todas as suas penas e as luzes da verdade. Jesus Cristo reza no Monte das Oliveiras e também no jardim ao pé do monte, e isto por várias razões. Ao rezar no monte, ensina-nos que, na oração, devemos elevar o nosso coração a Deus e pedir-lhe apenas os bens espirituais e celestes. Ao rezar no jardim ou no vale, ensina-nos que as nossas orações devem ser acompanhadas de uma verdadeira humildade de coração e de espírito. Também não foi sem razão que o Salvador, antes da sua paixão, se dirigiu ao Monte das Oliveiras, de onde mais tarde subiria triunfalmente ao céu. Ele quis mostrar-nos que só as provações e os sofrimentos desta vida nos podem conduzir ao repouso da felicidade celeste. Diz São Jerônimo:

“Jesus Cristo, no Monte das Oliveiras, vigiou e rezou, foi agarrado pelos seus inimigos e garroteado e dali subiu ao céu para nos ensinar que quanto mais vigiarmos e rezarmos neste mundo, quanto mais formos perseguidos por amor de Deus, mais facilmente chegaremos à pátria celeste”.

Este Monte das Oliveiras é famoso por muitas razões: era ali que Jesus Cristo vinha muitas vezes rezar; foi também ali que realizou um grande número de milagres. Mais tarde, foi ali construída uma igreja, ocupada por monges negros sob a direção de um abade.

Para concluir tudo o que dissemos neste capítulo, lembrai-vos, almas cristãs, das cinco virtudes principais de que o nosso divino Mestre nos deu aqui o exemplo. Ensina-nos a humildade, lavando os pés dos seus apóstolos; a caridade, instituindo o augusto Sacramento do seu corpo e do seu sangue; a oração, rezando três vezes neste horto; a paciência, suportando a traição do seu infame discípulo e os maus tratos dos seus perseguidores; a obediência, submetendo-se com os seus sofrimentos e a sua morte à vontade do seu Pai. Esforcemo-nos, pois, por imitá-lo e caminhar corajosamente nas suas pegadas.