domingo, 3 de março de 2024

Vita Christi – Do endemoniado cego e mudo – Ludolfo da Saxônia, O.Cart.

 


Depois do que acabamos de relatar, foi trazido a Jesus um endemoninhado que também era cego e mudo. Segundo São Lucas, era apenas cego; mas São Mateus, que se debruça mais pormenorizadamente sobre este assunto, diz que era cego e mudo. A mudez e a cegueira deste homem eram simplesmente o resultado de estar possuído pelo demônio, assim que o demônio foi expulso, ele passou a ver e a falar. É por isso que o Evangelho diz: “E Jesus curou-o”, isto é, expulsou dele o demônio, “e logo lhe foi restituída a vista e a fala”. Diz São Jerônimo:

“Jesus Cristo operou três milagres neste homem, pois libertou-o do demônio com que estava possuído e, ao mesmo tempo, restituiu-lhe a fala e a visão. O milagre, que então se realizou fisicamente a favor deste infeliz, renova-se moralmente todos os dias a favor do pecador. Quando se converte, o demônio é expulso do seu coração, do qual se tinha tornado dono, é então subitamente iluminado pelas luzes da fé, e a sua língua, até então muda, é solta para proclamar os louvores do Senhor”

Diz Santo Agostinho:

“O pecador é ao mesmo tempo endemoninhado, cego e mudo. É endemoninhado, porque, em vez de se submeter a Deus, se submete ao império de Satanás; é cego, porque se recusa a professar a verdadeira fé; é mudo, porque não dá graças a Deus pelos benefícios de que foi cumulado”

Diz São Crisóstomo:

“Para nos fazer compreender que não basta ao cristão conhecer Deus para se salvar, mas que deve também louvá-lo e confessá-lo, Jesus Cristo quis curar este homem cego e mudo, dando-lhe o uso da vista para conhecer e o uso da palavra para confessar o Todo-Poderoso. Pois aquele que conhece Deus, mas não proclama a sua grandeza, embora iluminado interiormente, não é menos mudo e aquele que, conhecendo Deus, não cumpre os seus preceitos, e que, embora proclamando os seus louvores, não conforma a sua conduta com a sua linguagem, é, em relação a Deus mudo e cego, pois conhecer a Deus é temê-lo e amá-lo”

Este homem endemoninhado representa o pecador que persevera no mal. Enquanto o pecado reinar nos nossos corações, somos escravos de Satanás, e o demônio domina-nos de três maneiras diferentes: o nosso espírito pela soberba, a nossa carne pela concupiscência e todo o nosso ser pela concupiscência dos bens terrenos; pois, como diz São João, tudo neste mundo ou é concupiscência da carne, ou concupiscência dos olhos, ou soberba da vida, e é isso que nos torna mudos. Deus deu a palavra ao homem por três razões principais: para o louvar e bendizer; para proclamar a verdade e edificar o próximo; para confessar os seus pecados e pedir perdão. Ora, a soberba, levando o homem a atribuir a si próprio o louvor que só a Deus é devido, rouba-lhe o primeiro dom da palavra; a avareza, fazendo-o preferir os seus interesses aos do próximo, rouba-lhe o segundo; e a concupiscência, os prazeres dos sentidos, tiram-lhe o terceiro, ao mesmo tempo que o cegam para tudo o que diz respeito à sua salvação e o afastam da verdadeira luz, daquele que disse: “Eu sou a luz do mundo, aquele que não me segue anda nas trevas”. Mas se este endemoninhado mudo e cego for apresentado ao Senhor, ou seja, se o pecador arrependido se voltar para Deus, Jesus curá-lo-á, expulsando dele o demônio e devolvendo-lhe a vista e a fala. A malícia de Satanás abundava neste infeliz possesso, pois abraçava-o por todos os lados e tinha-o tornado cego, mudo e até surdo, acrescenta São Crisóstomo. Mas a misericórdia de Deus transbordou, pois o Salvador, depois de ter expulsado o demônio, devolveu-lhe a vista, a audição e a fala. Este endemoninhado é a figura do pecador a quem Deus justifica e em cujo favor realiza os mesmos milagres que o Salvador operou em favor deste homem possesso. Devolve-lhe o uso da palavra, porque o pecador, depois da sua conversão, confessa os seus pecados, proclama os louvores de Deus e edifica o próximo; abre-lhe os olhos, iluminando-lhe o entendimento sobre a gravidade das suas faltas, o rigor do juízo futuro e a vaidade dos bens temporais; finalmente, abre-lhe os ouvidos tornando-o dócil aos conselhos, benefícios e ameaças do Senhor.

Ao ver este prodígio que o Salvador acabava de realizar, a multidão do povo, isto é, a gente simples, ficou espantada e admirada, e dizia uns aos outros: “Não é este o Cristo, o Messias prometido que deve nascer da família de David?”. Os escribas, pelo contrário, e os fariseus, isto é, os grandes doutores, indignados por ouvirem o povo proclamar, com base na evidência, que Jesus era o Cristo, diziam para si mesmos: “É por Belzebu, príncipe dos demônios, que ele expulsa os demônios”, blasfemando assim contra o Espírito Santo, a quem só compete expulsar os demônios e restituir aos homens a saúde corporal e espiritual. Como não podiam negar este fato maravilhoso, procuravam, pelo menos, depreciá-lo e até torná-lo odioso, dizendo que, se Jesus Cristo expulsava os demônios dos corpos dos possessos, era apenas pela virtude de um demônio mais poderoso com quem estava em comunicação. Diz São Crisóstomo:

“A inveja pouco se importa com o que dito, desde que as suas palavras possam prejudicar os outros”

Diz São Beda:

“O povo, na sua justa simplicidade admirava as obras do Salvador, mas os escribas e os fariseus procuravam negá-las ou, pelo menos, interpretá-las mal, dizendo que eram o efeito, não da virtude divina, mas do poder do demônio”.

Segundo São Beda, a origem da idolatria ou adoração do demônio, que atribui a Belus. O rei Ninus, diz-nos ele, fundador ou melhor, restaurador da cidade de Nínive, tendo perdido o seu pai, chamado Belus, primeiro rei dos assírios, ergueu uma estátua em sua honra. Os criminosos que puderam refugiar-se aos pés desta estátua foram perdoados, o que a tornou venerável aos olhos do povo e, pouco a pouco, com a ajuda do demônio, recebeu honras divinas. Em breve, seguindo o exemplo dos assírios, os outros povos erigiram uma estátua à qual deram nomes diferentes, de acordo com a diversidade da sua língua. Os caldeus chamavam-lhe Bel, os habitantes da Palestina Baal, os moabitas Belfegor; os judeus, que só adoravam o verdadeiro Deus, em escárnio dos gentios, deram a Baal o nome de Belzebu, que significa príncipe das moscas, por causa do grande número de moscas atraídas ao seu templo pelo sangue das vítimas ali imoladas. Afirmavam que o príncipe dos demônios residia neste ídolo, porque era a origem da idolatria, porque aí se realizavam certos feitos extraordinários e também porque o seu culto era o mais difundido entre as nações, pois, embora cada nação tivesse os seus deuses particulares, o culto de Baal era geralmente aceite por todos os povos. Por isso, os fariseus, querendo condenar os milagres de Jesus Cristo, acusaram-no de expulsar os demônios por virtude de Belzebu, príncipe dos demônios. Mas o Salvador, conhecendo os seus pensamentos, mostra-lhes por várias razões que, se ele expulsa o demônio, não é pelo poder de Belzebu, mas pela virtude do Espírito Santo, que é o dedo de Deus. Ora, o Espírito Santo é aqui comparado ao dedo da mão por três razões diferentes: em primeiro lugar, porque assim como o braço e a mão que comunicam com o corpo são alimentados pela sua substância, e o dedo, através da mão e do braço, também participa dela, assim em Deus o Filho procede do Pai, e o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. Em segundo lugar, porque, assim como no dedo as articulações e as falanges são distintas umas das outras, assim também os vários dons do Espírito Santo são diferentes uns dos outros. Finalmente, assim como o braço e a mão atuam e operam através dos dedos, assim o Filho de Deus, que é o braço e a mão do Pai eterno, opera através do Espírito Santo.

Jesus responde então aos seus pensamentos mais íntimos, pensamentos que, segundo São Crisóstomo, o medo do povo os impedia de exprimir exteriormente, dando-lhes uma prova clara da sua divindade, pois só Deus pode penetrar no fundo dos corações. Depois refuta estes pensamentos com este primeiro raciocínio: “Se é pela virtude do demônio que eu expulso os demônios, segue-se que eles estão divididos entre si e que, a partir daí, o seu poder não poderá subsistir por muito tempo”; segue-se também que o Messias chegou, porque é ele que, no seu acontecimento, deve aniquilar o poder do demônio. Depois acrescenta: “Todo reino dividido contra si mesmo pelas dissensões e incompreensões dos príncipes que o governam será destruído, e toda cidade, toda casa dividida contra si mesma pelas vontades opostas de seus habitantes cairá na ruína”. Diz Salústio:

“A união faz prosperar e crescer as pequenas coisas, mas a discórdia destrói até as maiores”

Diz São Jerônimo:

“Nada aqui em baixo é maior do que um reino, mas a discórdia e a dissensão destroem-no. Podemos, e ainda mais, dizer o mesmo de uma cidade, de uma casa, pois tudo o que está dividido contra si mesmo, grande ou pequeno, deve infalivelmente perecer”

Assim, se o reino de Satanás está dividido contra si mesmo, isto é, se os demônios se expulsam mutuamente dos corpos dos homens que possuem, o seu reinado está a chegar ao fim e será em breve destruído, porque o seu reinado consiste em cativar os mortais sob o seu poder, mas se os homens estão ainda sujeitos ao seu império, o seu reinado subsiste e não há divisão entre eles. Esse reino dividido contra si mesmo é a imagem da alma do pecador, cuja sensualidade se rebela contra a reta razão, esse reino, ou melhor, essa alma, cai em ruínas, porque Jesus Cristo, que é a verdade, se afasta dela e o diabo se faz seu senhor absoluto. É também a figura de qualquer comunidade religiosa em que a paz e a harmonia tenham desaparecido. Uma comunidade assim não pode sobreviver por muito tempo, tem de perecer. Os demônios, apesar do seu grande número, estão sempre de acordo no seu desejo de fazer o mal, mas, infelizmente, quão poucos homens se unem para fazer o bem e se encorajam mutuamente a fazê-lo!

Jesus rebateu os seus pensamentos com outro raciocínio: “O poder com que eu expulso os demônios tem a mesma origem que o poder que os vossos filhos usam, mas, como vós próprios reconheceis, não é pelo poder dos demônios que eles expulsam os demônios e, portanto, eu também não”. Então Ele disse-lhes: “Se eu expulso os demônios dos corpos dos endemoninhados por Belzebu, o príncipe dos demônios, por quem é que os vossos filhos os expulsam?”. Depois de ter combatido vitoriosamente o erro dos fariseus, Jesus estabeleceu a verdade, pois se não é pelo poder do demônio que Ele expulsa os demônios, é de fato pelo poder de Deus, pois não há meio-termo. “Se eu expulso os demônios pelo dedo ou pelo poder de Deus, é evidente que o Reino de Deus chegou até vós, isto é, eu sou o Cristo, o Filho de Deus, destinado a reinar sobre vós, e o céu está aberto com todas as suas recompensas e toda a sua glória para vós e para todos os que acreditam no meu nome”

Depois de ter demonstrado aos fariseus que o demônio não é o autor dos prodígios que realiza, Jesus Cristo voltou a provar-lhes, abundantemente, por várias razões, que Ele próprio não é ministro de Satanás. Em primeiro lugar: o servo não é mais poderoso do que o Mestre e Cristo é mais poderoso do que o demônio, pelo que não é nem seu servo nem seu ministro. Quando o homem forte e armado guarda a sua casa, tudo o que possui está em paz e ninguém lho pode tirar, mas se aparece alguém mais forte do que ele, acorrenta-o e apodera-se de todos os seus despojos. O diabo é esse homem forte e armado e, como está escrito no livro de Jó, nenhum poder na terra se pode comparar ao dele. As suas armas são os seus artifícios, a sua astúcia e toda a espécie de pecados, a sua casa é este mundo onde reinou como senhor até à vinda do Salvador, os seus vasos e os seus despojos são os homens que ele obseda e engana. Enquanto ele manteve a sua morada, tudo o que possuía estava em paz, pois ninguém ousava resistir-lhe, continua a ser assim agora, ele não atormenta os pecadores que estão sujeitos ao seu domínio. Mas um mais forte do que ele, Cristo, tendo descido do céu à terra, venceu o seu poder resistindo às suas várias tentações e suportando com paciência todas as dores da sua paixão, tirou as suas armas, revelando os seus ardis, e distribuiu os seus despojos convertendo os pecadores e atraindo-os a si para os tornar apóstolos, evangelistas, mestres e profetas na sua Igreja. Com isto, Cristo mostrou-se mais forte e mais poderoso do que o demônio, pelo que não é seu ministro e não age segundo a sua virtude. Daqui se conclui também que Cristo é o Messias, porque, segundo as profecias, o poder do demônio devia ser diminuído e acorrentado na sua vinda. Concluamos também daqui que nunca devemos estar demasiado confiantes em nós próprios e demasiado tranquilos, porque estamos perante um adversário poderoso, mas não desesperemos, o nosso protetor e o nosso chefe é mais forte do que ele. Diz São Crisóstomo:

“Não se deve temer um inimigo poderoso, que luta sob a bandeira de um rei que é mais forte, no entanto, estejamos atentos e resistamos com coragem, pois o nosso excesso de confiança seria a nossa ruína, a nossa negligência é a força do nosso inimigo”.

Diz São Gregório:

“O demônio é fraco como uma formiga quando lhe resistimos, mas se cedermos aos seus ataques, torna-se forte como um leão”

Diz São Jerônimo:

“As tentações, se olharmos apenas para a nossa própria fraqueza, podem parecer-nos grandes, mas se considerarmos a força de Deus que nos sustenta, em breve não passarão de brincadeira e fumo”

Jesus passa então a uma segunda razão, que é a seguinte: o patrão e o servo devem estar unidos na mesma vontade, mas Cristo e Satanás atuam com vontades opostas, pelo que um não é ministro do outro. É por isso que acrescenta: “Quem não estiver unido comigo na única vontade de fazer o bem, está contra mim”. É o que se passa aqui, Cristo só deseja a salvação das almas, Satanás só inspira a sua destruição. Jesus quer retirar os homens do vício e conduzi-los à virtude, o demônio faz todo o possível para os conduzir ao mal. Diz São Jerônimo:

“O Salvador não tem em vista senão a salvação das almas, o demônio, pelo contrário, faz todos os esforços para as manter nas suas cadeias, de modo que não há acordo possível entre eles”.

Finalmente, a terceira razão, as obras do Mestre e do servo devem assemelhar-se e tender para o mesmo fim, mas as ações de Cristo e as de Satanás têm um efeito completamente oposto, portanto, Jesus não é o ministro do diabo. É isto que o nosso Salvador nos faz compreender com estas palavras: “Quem não se reúne comigo na Comunidade da fé e no seio da Igreja, dissipa em vez de reunir, é o lobo no meio do rebanho, é o demônio que espalha erros, heresias e cismas no corpo dos fiéis”. Jesus Cristo reúne o que está disperso, o demônio, pelo contrário, dispersa o que está unido; o primeiro chama os homens à prática do bem, o segundo incita-os ao mal, estão, portanto, longe de concordar na mesma vontade e para o mesmo fim. Diz São Crisóstomo:

“Ele, que não está comigo e não se reúne comigo, não pode ser considerado como meu cooperador na expulsão dos maus espíritos, mas sim como meu inimigo que procura destruir o que Eu faço”

Quando o Salvador viu que os fariseus permaneciam insensíveis às suas palavras e endureciam os seus corações, passou da doçura às ameaças e disse-lhes que todos os pecados contra o Espírito Santo, que eles blasfemavam atribuindo os seus milagres ao poder do demônio, não seriam perdoados nem nesta vida nem na outra, a não ser que se arrependessem com uma penitência sincera. “Em verdade, em verdade vos digo que todos os pecados e blasfêmias que provêm da ignorância ou da fraqueza humana podem ser perdoados aos homens penitentes, porque esses pecados não são diretamente opostos ao amor de Deus que perdoa, mas pecados contra o Espírito Santo, que são O desespero, a presunção, a perseverança obstinada no mal, a impenitência final, a inveja à vista das graças concedidas aos outros e os ataques à verdade conhecida, não serão perdoados nem neste mundo nem no outro, porque aqueles que os cometem nunca se arrependem – ou quase nunca se arrependem – e não há perdão para as suas faltas”. Daí a diferença entre o pecado contra si mesmo ou contra os outros, a simples blasfêmia contra Deus e o espírito de blasfêmia. Os dois primeiros nascem da ignorância ou da fraqueza humana. Os fariseus eram culpados desta última, de fato, instruídos nas Sagradas Escrituras, lutavam contra a verdade conhecida, e foi apenas por inveja e pura malícia que blasfemaram contra Deus, atribuindo os milagres do Salvador ao poder do demônio. Quando pecamos por fragilidade ou fraqueza, ofendemos o poder do Pai, quando pecamos por ignorância, ofendemos a sabedoria do Filho, mas quando pecamos por malícia, atacamos o Espírito Santo, que é o amor do Pai e do Filho.

Assim, qualquer pecado contra o Pai e o Filho, por ter uma certa escusa na ignorância ou fraqueza que o produziu, pode ser perdoado tanto neste mundo quanto no outro, no sentido de que, se o pecador se arrepender aqui embaixo, ele pode obter alguma indulgência na satisfação imposta à sua falta, ou, se ele morrer em seu pecado, ele pode, na próxima vida, obter alguma mitigação das punições devidas ao seu crime. Mas, pelo contrário, aquele que peca por pura malícia não obterá nenhuma remissão, nem neste mundo, onde, se se arrepender, terá de cumprir integralmente a satisfação imposta ao seu pecado, nem no outro, onde, se morrer na impenitência, terá de sofrer integralmente todos os tormentos devidos aos seus crimes. É este pecado contra o Espírito Santo de que fala São João na sua epístola canônica, quando nomeia um pecado que dá a morte à alma. Segundo São Gregório, este pecado não é outro senão a perseverança no mal, pois o pecador que morre na impenitência não pode obter o perdão na outra vida, e daí em diante seria rezado indiferentemente.

O pecado contra o Espírito Santo é a obstinação, o endurecimento no mal, causado pela presunção ou desespero. Aquele que presume da misericórdia de Deus, prometendo a si mesmo a impunidade, endurece-se no mal e, assim, acumula pecado sobre pecado, ofendendo assim o Espírito Santo, cuja misericórdia não extingue a justiça que pune. Aquele, pelo contrário, que espera na bondade de Deus, imaginando que a grandeza dos seus pecados ultrapassa a grandeza da misericórdia de Deus, mergulha cada vez mais no crime e cai assim na condenação eterna. Qualquer pecado, seja ele qual for, opõe-se à Trindade no seu todo, mas a presunção e o desespero são especialmente contrários ao Espírito Santo, que é o amor do Pai e do Filho e a bondade de ambos, uma propriedade natural da essência divina pela qual todos os pecados são perdoados. Portanto, quem presume demasiado ou desespera da misericórdia de Deus é culpado de pecar contra o Espírito Santo, desprezando tanto a sua bondade como a sua justiça. Chamamos incurável a um doente que rejeita todos os remédios que lhe poderiam restituir a saúde e que, no entanto, Deus, pela sua omnipotência, pode curar. Do mesmo modo, aquele que peca contra o Espírito Santo priva-se de todos os meios para obter o seu perdão, que são o temor da justiça divina e a esperança na sua misericórdia, embora Deus, na sua infinita bondade, possa ainda ser-lhe benévolo. É neste sentido que dizemos que este pecado é irremissível, isto é, difícil e quase impossível obter o perdão.

O Salvador, querendo confundir cada vez mais o erro dos fariseus, mostrou-lhes, por uma simples comparação, que os milagres que fazia não eram fruto do poder do demônio, mas da virtude divina. “Não podeis negar”, diz-lhes Ele, “que uma árvore boa dá bons frutos e que uma árvore má dá maus frutos”. Por árvore, entende-se o princípio de toda a ação, e por fruto, as próprias obras. Ora, entre a árvore e o seu fruto há uma identidade necessária, indispensável, de modo que, se a árvore é boa, produzirá infalivelmente bons frutos, e se é má, produzirá maus frutos. Da mesma forma, como as obras maravilhosas que o Salvador realizou eram boas e salutares, ele conclui com razão que elas derivam de um princípio bom e não mau, e que, consequentemente, eles o acusaram erradamente de expulsar demônios pelo poder de Belzebu, o príncipe dos demônios. Depois, aplicando a sua comparação aos fariseus, mostrou-lhes a fonte do seu erro, que era o ódio e a inveja. Os fariseus e os doutores da lei tinham inicialmente reconhecido Jesus como o Messias prometido, mas, logo que ele os censurou pelos seus vícios, conceberam ódio e ciúme contra ele e, cegos por essas paixões, caíram no erro, pois a própria natureza do ódio e do ciúme é corromper o julgamento e extinguir a razão. Desde então, começaram a interpretar mal todas as suas ações e a criticar a sua conduta. Disse-lhes: “Raça de víboras, herdastes o ódio dos vossos pais, assim como eles perseguiram os profetas, vós me perseguis a mim, como podereis dar bons frutos, se não sois senão malícia e corrupção?”. Diz São Crisóstomo:

“A árvore só pode produzir de acordo com a natureza da sua raiz, a vontade do homem é a raiz, as palavras e as ações são os seus frutos, portanto, se o coração de um homem é de um modo, as suas palavras e ações serão deste mesmo modo”.

E o Salvador acrescenta: “A boca fala da abundância do coração”, isto é, a fala é apenas a manifestação exterior dos sentimentos e pensamentos do nosso coração. Diz São Crisóstomo:

“Consideremos para confusão dos maus e louvor dos bons, o que Nosso Senhor diz, que a boca fala da abundância do bem ou do mal que há no coração, porque o que procede externamente pela fala vem do supérfluo que há no coração”

E foi por isso que repreendeu os fariseus, porque, se as suas palavras eram más, que pensar da malícia dos seus corações, da qual escapavam como de uma torrente? Diz São Gregório:

“Vigiemos e vigiemos bem para guardar o nosso coração de todo o mal, os nossos pensamentos mais secretos não podem escapar ao olhar de Deus, e nós prestar-lhe-emos contas de todos os momentos da nossa vida”.

Porque a boca fala da abundância do coração, Jesus Cristo acrescenta, e com razão: “o homem bom tira o bem do seu bom tesouro (que é o seu coração), mas o homem mau só pode tirar o mal do seu mau tesouro”; como se dissesse aos fariseus: “Porque sois maus, só podeis produzir o mal do fundo do vosso coração corrupto”. O tesouro do nosso coração é a nossa intenção, segundo a qual Deus aprecia e julga as nossas ações; muitas vezes, as grandes ações são menores aos olhos de Deus do que outras muito mais pequenas; tudo depende do grau de amor que anima a pessoa que as pratica, é por isso que a viúva do Evangelho que dá duas moedas é mais louvada do que o rico que derrama moedas de ouro, Deus não olha para a grandeza da ação, mas para a intenção com que agimos, e recompensa-nos segundo a caridade e a vontade que são o seu princípio e o seu motor.

Depois de ter refutado o erro dos fariseus, Jesus Cristo ameaçou mostrar-lhes que a maledicência e a calúnia são grandes vícios que serão severamente punidos. Diz-lhes que todos os homens darão contas a Deus, no dia do juízo final, não só das palavras más e criminosas, mas também das palavras vãs e inúteis e esse juízo será sem apelo nem esperança de perdão. Como se lhes dissesse,segundo São Jerônimo:

“Se cada homem tem de dar conta, no dia do juízo, das suas palavras vãs e inúteis, pelas quais não fez penitência neste mundo, que conta não tereis vós de dar, vós que caluniais as obras do Espírito Santo e o blasfemais, dizendo que é por Belzebu que eu expulso os demônios? Se Deus castiga até as palavras inúteis, que castigo não trarão eles sobre as suas cabeças?”.

Diz Orígenes:

“Toda a palavra que não tende para o amor de Deus e para a observância dos seus mandamentos, é vã e inútil”

Diz São Crisóstomo:

“Por palavras vãs, devemos entender, não as más palavras, mas aquelas que, sendo boas em si mesmas, são, no entanto, inúteis e infrutíferas para quem as diz e para quem as ouve. E se vamos ser julgados pelas nossas más palavras, que dizer das nossas más ações? Tenhamos, pois, cuidado com as palavras inúteis”

Lemos no livro dos Provérbios que a morte e a vida estão no poder da língua, de fato, cada um será justificado ou condenado diante de Deus segundo a sua própria língua, e com razão, pois cada um é mestre em falar ou calar.

Diz São Crisóstomo:

“E este juízo ser muito suave, pois cada um será julgado, não segundo o que os outros disseram dele, mas segundo o que ele próprio disse. Aprendamos, pois, a abster-nos não só de toda a linguagem má, mas também de todas as palavras inúteis, e repitamos com o Salmista: ‘Põe, Senhor, um freio na minha boca e uma guarda de prudência nos meus lábios’”

A conclusão moral de tudo o que precede é que devemos considerar cuidadosamente o que devemos dizer, a quem, onde, quando e como devemos falar. Estas são as cinco coisas que a nossa língua deve observar. Quanto ao que devemos dizer, o apóstolo São Paulo instrui-nos nestes termos: “A vossa linguagem seja sempre temperada com o sal da graça de Deus, isto é, seja útil e agradável”. Todas as palavras ociosas são inúteis, malsonantes ou prejudiciais. São inúteis quando não dão fruto nem para quem fala, nem para quem ouve; são malsonantes quando ferem a dignidade de um e de outro; são prejudiciais quando levam ao terror ou à depravação. Com quem devemos falar? O sábio diz-nos: “Não fales longamente com um tolo”. Quando quisermos falar, consideremos se é para o nosso bem ou para o bem dos outros; se for para os outros, consideremos se eles precisam do nosso conselho e se aceitarão bem as nossas palavras. Onde é que podemos falar? Nalguns lugares, como as igrejas, devemos abster-nos de falar; noutros, devemos falar raramente, como no refeitório; finalmente, podemos falar, mas com moderação, na sala dos religiosos. Como vemos no Eclesiastes, há um tempo para calar e um tempo para falar. Por vezes, devemos calar-nos por causa da fraqueza dos ouvintes, por vezes para não nos precipitarmos nas nossas palavras; outras vezes, por respeito pelas pessoas a quem nos dirigimos, ou mesmo pela pouca consideração que merecem aqueles que nos ouvem. Finalmente, como devemos falar? Isto é, qual deve ser a nossa aparência, o som da nossa voz, o sentido das nossas palavras? Devemos ter um exterior humilde e modesto, dar à nossa voz um tom suave e dizer apenas coisas verdadeiras. E, para resumir em duas palavras tudo o que acaba de ser dito, devemos gostar de falar pouco, e devemos queixar-nos em silêncio. Eis o que Sêneca recomendava em particular ao seu discípulo:

“Não sejas rápido no falar, pensa bem antes de confiar um segredo aos outros, pois como podes exigir-lhes silêncio, se tu próprio não foste capaz de o guardar?”

Mas, infelizmente, como são poucos no mundo, e mesmo na religião, os que sabem seguir esta regra de prudência!